ensaios

O intelectual sem qualidades

paris 611

Walter Praxedes

Ainda não debatemos suficientemente sobre os limites do conhecimento científico e da capacidade dos cientistas. Até o presente, nenhuma teoria científica foi eficaz o bastante para expressar a densidade da vida, como os sentimentos envolvidos em um olhar, o olhar sobre o outro e sobre si mesmo. Nenhum esquema racional dá conta de esgotar os significados das relações entre as existências individuais e as sociedade e épocas em que transcorrem, os prazeres e sofrimentos provocados pelos nossos pequenos ou grandes vícios, o amor e o desamor, os sentimentos confusos em relação à morte, a alegria e a tristeza de viver, a crueldade e a piedade; enfim tudo que pode nos despertar os sentidos diante do que consideramos belo, que pode nos causar dor ou prazer, ou que nos leva à entrega da fé é estranho ao saber metódico e racional.

No entanto, persiste nas sociedades contemporâneas um verdadeiro culto ao cientista como um ser de exceção, a quem cabe o privilégio incontestado de viver para construir e analisar símbolos e significados para tudo explicar racionalmente. Um culto que é o produto de vários esquecimentos, dentre as quais é o bastante recordarmos a lista incompleta com os limites do conhecimento científico apresentada acima; e a singela constatação de que é a divisão do trabalho, que separa a teoria da prática social, que leva à supervalorização da mente em relação ao corpo, e por conseqüência da atividade de pensar em relação à de fazer.

É esse mesmo esquecimento que legitima a hierarquização dos membros da sociedade entre aqueles que se dedicam às atividades mentais e os demais, que dedicam o seu trabalho no campo ou na cidade, à produção das condições materiais necessárias para a existência de todos.

Muito mais adequada parece ser a idéia de Antonio Gramsci, para quem, “não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar” (Gramsci, 2006, p. 53). Em resumo, para Gramsci, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens tem na sociedade a função intelectual” (Gramsci, 2006, p. 18).

Nas sociedades contemporâneas a formação dos intelectuais profissionais ocorre nas relações que eles mantêm com os outros membros da sociedade, a exemplo da maneira como se formam todos os humanos, dos quais muitas vezes nos tornamos tão distantes que ignoramos as circunstâncias em que vivem.

Os pesquisadores e professores são formados, assim, através da disputa por cargos, que são posições no mercado de trabalho de prestação de serviços educacionais, ou no mercado nem tão dissimulado da venda de pesquisa considerada científica para o Estado ou para as empresas. Para sermos aceitos nos tornamos obsessivamente obedientes às normas da ABNT, da ortografia e gramática oficiais e das leis do Estado, nos submetendo à dominação simbólica baseada na autoridade da ciência.

Na produção científica universitária a cooptação dos intelectuais se traduz na obediência, convicta ou a contragosto, das normas vigentes nos órgãos oficiais de financiamento à pesquisa, comitês editoriais das revistas científicas e associações acadêmicas profissionais, que nas palavras de Edward Said, transforma os professores “em técnicos de sala, altaneiros e impossíveis de compreender, contratados por comissões, ansiosos para agradar a vários patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os não-especialistas” (Said, 2005, p. 77).

A disputa por prestígio é a competição por uma forma de reconhecimento que o narcisismo não dispensa como alimento da nossa vaidade. Um narcisismo autoengrandecedor das próprias capacidades de pensamento e elaboração que se alimenta da transformação de tudo e todos em objeto para o livre pensamento de um ser que se considera um sujeito acima dos simples mortais.

O resultado da concorrência no mercado acadêmico combina uma precária satisfação com a própria obra com o ressentimento em relação à obra que não realizamos, mas que acena da janela do currículo Lattes de um concorrente real ou imaginário.

A crença em uma liberdade de espírito fictícia se torna o fermento da vaidade da qual dificilmente escapamos e impede reconhecermos a nossa falta de independência em relação aos poderes estabelecidos do Estado e das empresas, graças a uma autocensura inconsciente e esterilizante que é ao mesmo tempo produto e produtora de um saber fragmentário e disciplinado que tenta se legitimar na especialização produtivista atestada pela quantificação matemática.

Por sinal, a matemática, de uma forma de lógica de pensar foi transformada em uma religião moderna, que “entrou em todos os campos de nossa vida como um demônio”, escreveu Robert Musil, para quem

“Foi a matemática que arruinou a alma, …a matemática é a fonte de uma inteligência perversa que faz do homem senhor da terra mas escravo da máquina. A secura interior, a monstruosa mistura de sensibilidade para os detalhe e indiferença para o todo, o enorme desamparo do ser humano num deserto de minúcias, sua inquietação, maldade, a incrível frieza do coração, cobiça, crueldade e violência que caracterizam nossa era, seriam, segundo estes relatos, resultado dos prejuízos que um aguçado pensamento lógico traz à alma […] a matemática, mãe da ciência natural exata, avó da técnica, também é mãe ancestral daquele espírito do qual finalmente brotaram gases venenosos e os pilotos de guerra”. (Musil, 2006, p. 58-59)

O mesmo Robert Musil redigiu um sensível e duro julgamento das conseqüências do avanço dos conhecimentos científicos nas sociedades modernas:

“Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; Também não devemos passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro: quando despertou a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho” (Musil, 2006, p. 58)

Infelizmente as vozes discordantes do modelo de intelectual produtivista a serviço do poder muitas vezes aceitam como destino a inação e o ressentimento.

Mas como alternativa ao silêncio, penso que o docente universitário e pesquisador científico pode realizar o seu trabalho intelectual como um artista amador se dedica a uma obra artesanal, atendendo a alguns apelos em sua atividade de ensino e pesquisa:
a) o apelo do conhecimento, que consiste no seu compromisso com as obras e metodologias construídas no passado, e que aguardam pela mediação do docente pesquisador para a sua persistência no futuro;
b) o apelo da imaginação, essencial para a formulação de novos problemas teóricos e empíricos que orientarão suas pesquisas;
c) o apelo da dúvida, que coloca o existente sob suspeição, abrindo o caminho para o aparecimento do pensamento crítico e para a aceitação dos limites da própria obra científica;
d) o apelo da ética, responsável pela conciliação entre sonho e realidade, através da defesa da igualdade e da democracia, em suma, da responsabilidade para com o outro;
e) o apelo do belo, que nos suspende do imediato para a fruição daquelas manifestações estéticas que contribuem para o desenvolvimento dos sentidos humanos;
f) o apelo do lúdico, que nos ensina a brincar e cada um a rir de si mesmo, nos protegendo contra os pensamentos pretensiosos;
g) o apelo da prática, que nos incita à comunicação e à articulação política para transformarmos intenções em realizações.

Uma possibilidade para eliminarmos o que tem de fictício na liberdade dos trabalhadores intelectuais, não é o retorno a um modelo messiânico de intelectual. Pode gerar melhores resultados a construção de um conhecimento livre das pressões dos poderes estabelecidos, uma busca que ao invés de esgotar-nos psiquicamente na competição dissimulada pelo “sucesso”, por dinheiro ou cargos, deverá ser sempre coletiva e legitimada pela solidariedade entre os trabalhadores intelectuais e as pessoas destituídas de poder, mas que criam as condições materiais de existência para todos com o seu trabalho cotidiano.

Referências
SAID, Edward W. Representações do intelectual – as conferências Reith de 1983. São Paulo : Companhia das Letras, 2005.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1988.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006.

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A compulsão pela leitura


Walter Praxedes

Meses atrás, enquanto aguardava o horário de embarque em um voo para Maringá, encontrei no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, um ex-professor dos tempos de graduação, que chegava de uma conferência em Portugal e esperava um voo para uma capital do Sul do País, onde receberia uma homenagem. Nossa conversa durou o tempo que faltava para o seu embarque, em torno de uma hora, e despertou-me para o problema da compulsão pela leitura entre os acadêmicos.

Para evitar constrangimentos, vou comentar o tema a partir de algumas confidências do meu estimado ex-professor, sem, contudo, apresentar detalhes que poderiam levar à sua identificação pelos leitores, uma vez que se trata de assunto de sua vida privada.

Depois de muitos anos de pesquisa e ensino em grandes universidades do Brasil e do exterior, e de ter publicado duas dezenas de obras que estão entre as mais prestigiosas das ciências humanas em nosso país, o Professor Z, é assim que vou nominá-lo, confessou-me que se cansou da disciplina intelectual que o levava a ler e a reler tudo que lhe caía nas mãos, de textos clássicos a artigos científicos e relatórios de pesquisas recentes, dissertações e teses, passando pelas infindáveis produções de seus alunos e orientandos, além das incontáveis mensagens que congestionavam o seu correio eletrônico.

Como um portador de obesidade mórbida que realiza uma intervenção cirúrgica para a redução do tubo digestivo, o Professor Z saiu de casa certa manhã e vendeu por qualquer preço todos os seus livros, incluindo os de sua própria autoria, para o primeiro sebo que se dispôs a retirar imediatamente o acervo de sua residência.

Foi, segundo ele, a maneira mais rápida que encontrou para desobstruir dois quartos e os corredores do seu apartamento não tão pequeno, e de tornar o ambiente mais propício à habitação, sem o volume exagerado e os fungos da cultura ocidental impressa que acumulara.

A partir do raciocínio – singelo para um estudioso de ciências humanas – de que na maior parte da História os humanos não precisaram da escrita para se comunicarem entre si, e de que para bilhões de habitantes atuais do planeta a escrita simplesmente não existe, nosso professor tomou a decisão de ignorar por completo as imposições da indústria da palavra escrita, impressa ou virtual, e seus lançamentos contínuos.

O mais difícil, contou-me, foi livrar-se do vício obsessivo-compulsivo pela leitura. Desde a adolescência um dos princípios que orientavam a sua vida cotidiana era a máxima “se algo foi escrito e publicado, é necessário que seja lido”.

Quando decidiu desintoxicar-se dos efeitos da decodificação excessiva de sinais gráficos, para ele isso foi tão penoso como livrar-se da dependência química de álcool, nicotina ou comida.

Depois da venda da sua biblioteca resolveu cancelar suas várias assinaturas de jornais diários, revistas semanais de variedades e publicações especializadas nos cinco idiomas que domina. Também deixou de abrir as mensagens que recebia pela Internet. Passou, então, a se comunicar com os colegas de trabalho, amigos e alunos apenas por telefone ou pessoalmente.

O primeiro dia sem ler até que não foi difícil passar, segundo a descrição do Professor Z. Ele lecionou pela manhã uma aula há muito memorizada, almoçou em casa com a esposa e filhos e dormiu um pouco até o meio da tarde. Saiu, então, para passear pelas ruas da cidade, tomou um suco de goiaba em um quiosque, um café expresso em uma padaria, e nem percebeu que ao voltar para casa já era noitinha. Jantou em companhia dos filhos, pois a esposa havia saído para uma reunião profissional. Assistiu ao jornal da noite na televisão, um capítulo de telenovela e um documentário sobre golfinhos. Tomou um banho e dormiu assim que deitou, antes que a esposa tivesse chegado.

No dia seguinte não deu aulas e teve a primeira recaída. Ao sair novamente para passear pelo centro da cidade parou por incontáveis minutos diante dos jornais expostos em uma banca. Foi um dia que demorou muito para passar, segundo suas recordações, deixando-o entediado e irritadiço. No terceiro dia do regime de restrição total à leitura a que se impusera, passou o dia todo em reunião na congregação de sua faculdade e chegou em casa exausto, jantou pouco, conversou com o filho mais velho que precisava de dinheiro para pagar o conserto da moto e assistiu televisão até se recolher para o banho e o sono. A esposa estava em casa e sua companhia ajudou-o a não se lembrar dos livros. No quarto dia percebeu que estava se acostumando à nova vida.

Ao final do primeiro mês sentiu-se livre e com um ânimo novo. Por conta própria deixou de tomar a medicação anti-depressiva receitada pelo seu médico contra o seu permanente humor intratável. Com isso melhorou a sua convivência com os familiares e amigos de todas as horas. Escrevo “amigos de todas as horas” porque antes do seu rompimento com a palavra escrita só mesmo esses o suportavam na intimidade, reconheceu o professor em suas confidências, que já me pareciam surpreendentes e excessivamente detalhadas.

Atualmente o Professor Z participa de um grupo de ajuda mútua que se reúne semanalmente para conversar e, assim, contribuir para que os seus membros se libertem da compulsão pela leitura. Nestes tempos de ditadura da palavra escrita o lema do grupo não poderia ser mais surpreendente e inviável para um professor: “evite a primeira palavra escrita”.

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Buon “Pranzo di Ferragosto”!

 

WALTER PRAXEDES

O filme italiano Pranzo di Ferragosto foi escrito, dirigido e interpretado por Gianni de Gregorio (2008), e inspirado na sua experiência pessoal de filho único que viveu com sua mãe idosa dos 80 aos 90 anos.

O filme ensina, sensibiliza, conforta e diverte ao focalizar dois dias na vida de Gianni e sua mãe, que vivem em um pequeno apartamento em Roma.

Para viajar no feriado, o síndico do edifício, de quem Gianni é devedor de taxas de condomínios atrasados, e o médico da família o convencem a cuidar também de suas mães. O Síndico aproveita a situação e leva junto a sua tia Maria.

(No dia 15 de agosto, data em que se comemora o feriado de Ferragosto – literalmente o dia do repouso de Augusto – e a Assunção de Maria, também se iniciam as férias italianas, segundo a tradição).

O síndico e o médico viajarão de férias, enquanto Gianni terá que ficar em casa para cuidar da mãe idosa, mas também por falta de dinheiro.

O filme mostra a convivência desse pequeno grupo de senhoras idosas e adoentadas. Para comemorar o Ferragosto, as senhoras pedem que Gianni prepare um almoço especial. Antes e durante o almoço a convivência se torna tão afetiva e lúdica que elas não aceitam voltar para as suas casas naquele dia, como estava combinado por seus filhos com Gianni.

No final do filme até coletam 300 euros entre si para dar a Gianni e, assim, convencê-lo a cuidar delas por mais um tempo. Ele, desempregado e sem dinheiro, acaba concordando, apesar do cansaço da noite mal dormida, do excessivo trabalho doméstico sob a sua responsabilidade e da teimosia de suas hóspedes.

Resumi assim a trama do filme, mas as imagens, a música, as situações são muito expressivas e emocionam pela profundidade e pela leveza.

Gosto muito desse filme. Já o vi várias vezes para ouvir a língua italiana falada no cotidiano; para rever as imagens de algumas ruas de Roma em que Gianni passeia na garupa de um motorino – e pelas quais também passei quando estive lá com o meu filho Felipe, em 2013; e, evidente, pela situação de um homem maduro cuidando de idosos com atenção, disponibilidade, paciência e carinho. Aprendi muito o assistindo.

Pranzo de Ferragosto também pode ser interpretado como um contraponto ao clássico filme italiano Il Sorpasso, de 1962, que mostra dois amigos vivendo inúmeras aventuras em pleno feriado de Ferragosto, mas que termina com a morte trágica de um deles, após um acidente de automóvel provocado pela imprudência do amigo que sobrevive.

Talvez a escolha de mostrar um feriado de Ferragosto sendo vivido rotineiramente por Gianni em meio a inúmeras tarefas domésticas, seja uma valorização das necessidades de segurança, convivência, afeto e cuidados sentidas pelos idosos, e que uma vez satisfeitas devem ser celebrados com um agradabilíssimo e divertido almoço como aquele que termina o filme. Buon Ferragosto!

BLOG DA REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO

https://espacoacademico.wordpress.com/2017/08/02/buon-pranzo-di-ferragosto/comment-page-1/#comment-9324

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A crise política atual e uma nova sociedade brasileira

Walter Praxedes

As denúncias sem fim contra os agentes políticos corrompidos pelos agentes econômicos estão gerando um sentimento de perplexidade e insegurança em toda a sociedade brasileira.

Afinal, todo o nosso sistema político e as principais instituições do Estado brasileiro, incluindo os três poderes da República, estão envolvidos direta ou indiretamente nas denúncias de corrupção ou tráfico de influência.

Mas não podemos reduzir o País ao seu sistema político ou mesmo ao Estado, por mais tentacular e poderoso que seja.

Formamos uma sociedade muito complexa com mais de 200 milhões de seres humanos que convivem no cotidiano, trabalham, estudam e compartilham diferentes crenças religiosas, culturas, costumes e formas de comportamento.

Enfim, uma sociedade brasileira complexa e contraditória, composta por diferentes grupos e classes sociais, que é muito maior e mais pulsante do que as instituições dominantes do Estado brasileiro e seus dirigentes.

Não é o Brasil que está sendo destruído pela corrupção, mas, sim, a estrutura de dominação controlada pelos dirigentes do campo do poder e seus apoiadores, que competem entre si pelo saque dos recursos públicos gerados por toda a sociedade e concentrados no Estado brasileiro nas esferas municipal, estadual e federal.

Estamos vivendo uma conjuntura em que as formas práticas de operacionalização da atividade política para o relacionamento entre os agentes da sociedade civil e os agentes da sociedade política se tornaram transparentes.

Essa transparência é um acontecimento inédito na nossa história.

É também muito importante para quem sonha que o Brasil possa um dia se tornar um país verdadeiramente democrático e justo.

Evidencia-se como nunca como ocorre a associação entre empresários para a formação de cartéis, administração e superfaturamento de preços, eliminação dos concorrentes mediante fraudes em licitações de obras públicas, financiamento ilegal de campanhas políticas e pagamento de propina aos dirigentes políticos visando a aprovação de leis e políticas governamentais que atendam aos seus interesses corporativos.

A crise política e institucional pode ser uma oportunidade para reconstruirmos o Estado brasileiro como uma esfera pública democrática, a partir da participação da sociedade civil organizada, movimentos sociais e partidos políticos.

Para isso, será preciso o estabelecimento de uma nova legislação baseada na transparência e no controle do sistema político e do judiciário pelos cidadãos.

Também será imprescindível a contribuição de uma imprensa verdadeiramente livre das pressões corporativas e dos interesses dos seus proprietários.

A sociedade brasileira sobreviverá e vai reconstruir suas instituições.

Para isso, a crise atual prestará uma grande contribuição.

 

odiario.com

Maringá - Edição impressa de Terça-Feira, 13 de Dezembro de 2016.

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Das comunicações vigiadas à reconstrução da democracia

 

praxedesWALTER PRAXEDES*

Sempre pensamos que a globalização é a época das comunicações instantâneas entre todas as regiões do planeta. Agora precisamos acrescentar que essa instantaneidade é também vigiada via satélite.

Houve um tempo, não muito distante, em que a maior acusação que poderia ser feita contra os então chamados países comunistas da hoje já extinta União Soviética e do leste europeu, era a da falta de liberdade dos seus habitantes. Seus estados eram acusados de exercer uma vigilância policial sobre a vida das pessoas, violava suas correspondências, gravava suas conversas ao telefone e seguia os seus passos para onde quer que fossem. Os nomes da KGB soviética (sigla russa para Comitê de Segurança do Estado), e da temida Stasi, polícia política e secreta da Alemanha oriental, representavam as mais invasivas, opressivas e odiosas agências de espionagem da vida cotidiana dos indivíduos.

Mas os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, a União Soviética foi extinta, foi destruído o Muro de Berlin. O “comunismo” teria mesmo que fracassar, pois não respeitava os direitos humanos à liberdade e à privacidade. Seria impossível imaginarmos que os seres humanos se submeteriam indefinidamente à opressão de ter as suas correspondências lidas e viver sendo monitorados por anônimos agentes dos serviços secretos.

Então veio a difusão em larga escala das tecnologias informacionais e de comunicação. Seduzidos pela praticidade e pelo culto da tecnologia, bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta ingressaram em uma rede de informação e comunicação com seus computadores pessoais e telefones celulares dotados de acesso à Internet, redes sociais, correio eletrônico. E assim se submeteram espontaneamente à mais poderosa e eficiente rede de espionagem, franqueando aos estados e seus serviços secretos todas as informações que achávamos tão opressivo e odioso que os países da Cortina de Ferro roubassem dos seus habitantes.

Da mesma forma como acabou a ilusão no socialismo burocrático e policial da antiga União soviética, quem sabe agora ocorra o fim da ilusão na democracia ao estilo norte-americano, baseada em espionagem, terrorismo de estado, perseguição, tortura, guerra, massacre de populações civis como ocorreu no Iraque e no Afeganistão, patrocínio a golpes de estado no mundo todo e muito cinismo, afinal, os EUA ainda se intitulam os defensores da liberdade no mundo.

Já se falou que a democracia é uma forma de convivência social e política que deve ser reconstruída a cada geração. Chegou o momento e a nossa vez de a reconstruirmos sem monitoramento das comunicações, sem tortura e sem pobreza.

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Paralelos entre a música de Glenn Gould e a literatura de Alice Munro

Walter Praxedes

O canadense Glenn Gould tornou-se conhecido como um dos maiores pianistas do século XX pela sua forma bem pessoal de interpretar as Variações Goldberg, compostas pelo músico alemão Johann Sebastian Bach em 1741. Experimente ver e ouvir um dos seus inúmeros vídeos e gravações disponíveis na Internet. É quase impossível não se sentir tocado desde os primeiros acordes.

Glenn Gould nasceu em 1932 e a escritora Alice Munro em 1931. O pai de Alice trabalhava como produtor de peles de raposas que eram comercializadas por sua mãe. O pai de Gould também era proprietário de uma empresa de trajes de peles. Ambos nasceram em Ontario, Canadá, ela em Winghan e ele em Toronto, em famílias econômica e socialmente modestas.

Mas existem outras importantes afinidades entre ambos, como a origem escocesa, branca, e a religiosidade protestante, puritana e calvinista presentes em sua educação, herdadas dos seus familiares e ancestrais que emigraram para o Canadá, e que revelam uma importante característica histórica da formação daquele país.

Embora os pais geralmente tenham muito menos influência sobre a educação dos filhos do que gostariam, ocorreu diferente com Alice e Glenn. O músico ouvia a mãe ao piano antes de nascer e começou a receber lições para reconhecer de ouvido as notas musicais desde os três anos.

A mãe de Alice era professora primária e seu pai depois de abandonar o negócio de peles e o trabalho de vigilante em uma fundição, se “pôs a escrever. Começou a escrever reminiscências e a converter algumas delas em histórias, que eram publicadas em uma excelente, porém efêmera, revista local. E pouco antes de morrer ele concluiu um romance sobre a vida pioneira intitulado The Macgregors” (Munro, 2014, p. 175).

Florence Greig Gould, a mãe de Glenn, também foi por um tempo professora de canto e se considerava descendente “de uma tribo escocesa bárbara, conhecida como os MacGregor” (Friedrich, 2000, p. 26), e do músico Edvard Grieg. Para ela isso justificava sua ligação com a música e o empenho em transformar o filho em um grande músico. Desde a infância a mãe levava o filho para tocar nas reuniões da Igreja Presbiteriana, em Toronto. (Idem, p. 42).

Otto Friedrich, um dos biógrafos de Gould, relembra que a primeira gravação das Variações Goldberg ocorreu em 1955 em um estúdio da Colúmbia, em “uma igreja presbiteriana abandonada no número 207, da East Thiertieth Street, Nova York” (Idem, p. 59). Pode-se dizer que a obsessão de Gould pelas Variações Goldberg tenham como origem a recordações dos hinos presbiterianos que ele ouvia na juventude.

Ainda jovem, aos 31 anos, Gould ficou estressado demais com a rotina das apresentações em concertos e se recolheu para uma vida ascética de pouquíssimo contato com o público, mas de quase completa dedicação ao piano e à realização de discos e filmes que mudaram a maneira de tocar e ouvir música, até falecer precocemente após um derrame, aos 50 anos, no dia 4 de outubro de 1982.

O crítico literário palestino Edward Said, também pianista, era um entusiasta admirador de Gould, considerando suas execuções de Bach “…uma guinada sísmica (para os padrões pianísticos) nas ideias sobre a interpretação. Bach não mais seria ignorado em favor do repertório-padrão – Bethoven, Chopin, Liszt, Brahms, Schumann. Sua obra não mais seria tratada como material inofensivo de abertura para recitais. A interpretação de Gould era notável não apenas pelo mero virtuosismo no teclado. Ele executava cada peça como se a radiografasse, interpretando cada um de seus componentes com independência e clareza. O resultado era, em geral, um único processo belo e fluido, com muitas partes subsidiárias. Tudo parecia pensado e, no entanto, nada soava pesado, artificial ou forçado” (Said, 2003, p. 82-83).

Tansformando vida em ficção, a moral puritana também orienta o olhar de Alice Munro sobre os acontecimentos cotidianos e relações entre as personagens dos seus contos. Ela própria assume a ancestralidade do calvinismo puro radical da Igreja da Escócia no livro “A vista de Castle Rock”, que formou a visão de mundo que herdou dos seus antepassados que migraram para o Canadá ainda no século XVIII. Para Alice Munro (2014, p.26), “todo lar presbiteriano na Escócia estava fadado a ser um lar devoto. A constante investigação da vida pessoal e torturadas reformulações da fé eram a base para garantir isso”.

É um ponto de vista formado a partir da moralidade presbiteriana que orienta a construção do texto de Alice Munro, muitas vezes apenas de forma implícita e outras vezes explicitamente para julgar as condutas das suas personagens.

A atenção da autora é direcionada para selecionar os aspectos da vida, os acontecimentos que serão narrados, com um critério de seleção puritano na medida em que o que é narrado foi o resultado de um impulso provocado pelos seus princípios religiosos talvez agredidos.

A impressão que temos é que a matéria ficcional que desperta na autora o impulso para ser escrita provocou antes uma inquietação que a instigou a escrever.

A importância que a vida cotidiana tem para o puritanismo provoca uma atenção detalhista sobre a rotina diária de cada ser humano fiel à crença protestante, levando a um controle de cada indivíduo através de “uma regulamentação de toda a conduta, que, penetrando em todos os setores da vida publica e privada era infinitamente mais importuna e levada a sério”, nas palavras de Max Weber (1985, p. 20) no seu clássico estudo “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.

Na narrativa sobre a “vida querida” de Alice Munro é perceptível “essa poderosíssima manifestação do puritanismo de apego ao mundo, de valorização da vida secular como um dever, [que] teria sido inconcebível da parte de um autor medieval” (Weber, 1985, p. 59).

Podemos interpretar a atenção de Alice Munro ao comportamento dos seus personagens como uma tentativa de controle que pode “combater uma desordem que ofende continuamente a sensibilidade de Deus” (Taylor, 2005, p. 295)

E assim lembramos com Alice Munro que as situações mais singulares e rotineiras que vivemos fazem parte de um contexto que na maioria das vezes nem nos damos conta, mas que o influencia de forma insuportável, fazendo com que as nossas “vidas comuns” voem pela janela.

Talvez por isso ela descreva as situações cotidianas como se fossem muito importantes e ao mesmo tempo inteiramente banais.

Também algumas situações muito relevantes são descritas sem exagero ou afetação, enfim, sem sentimentalismo, como se não passassem de ocorrências rotineiras pouco importantes fadadas a sucumbir no tempo e no esquecimento, mas que deixam uma marca definitiva.

Nos textos ficcionais de Alice Munro o estilo narrativo quase sempre deixa o leitor sem saber se a consciência moral que orienta a construção do sentido de cada história narrada é expressão dos valores do narrador, de uma personagem ou da própria Alice Munro, como se fossem as muitas vozes que contraditoriamente orientam as ações de cada ser humano.

Alguns contos apresentam um desenlace totalmente esperado e até óbvio, que contrasta totalmente com a variedade conflituosa de circunstâncias que tiveram que se combinar de maneira totalmente improvável para que um resultado tão previsível pudesse prevalecer. Exatamente como acontece nas nossas vidas.

É até lamentável que se possa simplificar o conteúdo e o significado de um ou outro conto descrevendo o seu final, pois, assim como na vida de cada ser humano, o que menos conta não é como vai ser o final, mas sim como foi o seu transcurso até chegar ao desfecho óbvio.

Que o leitor confira como Alice Munro conta histórias que se assemelham às nossas e a tantas outras, como se estivesse guiada por um mandamento retirado de um poema do poeta puritano Milton, que escreveu em seu Paraíso Perdido,

Conhecer
O que está diante de nós na vida cotidiana
É a sabedoria suprema.

Talvez seja com esta sabedoria suprema que entramos em contato quando ouvimos o piano de Glenn Gould.

No Brasil a recepção da obra de Glenn Gould pode ser percebida e admirada na gravação das mesmas Variações Goldberg que tornou reconhecido o pianista João Carlos Martins, responsável, inclusive, pela inauguração do memorial Glenn Gould, em Toronto. A obra de Alice Munro está sendo conhecida aos poucos, no ritmo das edições dos seus livros de contos em língua portuguesa, principalmente após a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura, em 2013.

Referências

FRIEDRICH, Otto. Glenn Gould – uma vida e variações. Rio de Janeiro – São Paulo, editora Record, 2000.

MUNRO, Alice. A vista de Castle Rock. São Paulo, Globo, 2014.

______. Vida Querida. São Paulo Companhia das Letras, 2013.

SAID, Edward. “Em busca de cosias tocadas. Presença e memória na arte do pianista. (Sobre Glenn Gould”. In: SAID, E. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

TAYLOR, Charles. As fontes do self – a construção da identidade moderna. São Paulo, Loyola, 1997.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Pioneira, 1985.

 

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A voz de Pablo Neruda

 

Trocando em miúdos é uma canção de Chico Buarque e Francis Hime que tocava insistentemente no rádio no final da década de 1970.  Quase no final da canção tem um verso que eu não entendia, mas que me deixava pensativo e não me saía da cabeça:“Devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu…” O leitor pode recordar a canção clicando abaixo:

Meu irmão Valder, sete anos mais velho do que eu, um dia chegou em casa com um livro emprestado da Biblioteca Municipal de Maringá e o deixou sobre algum móvel, onde pude ver o nome do autor em letras enormes e o título um pouco menor: Pablo Neruda – Para nascer nasci.

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O verso que não entendia na canção Trocando em miúdos de repente se tornou compreensível para mim. Abri o volumoso livro justamente na página que contém a epígrafe:

… para nascer nasci, para conter o passo de quanto se aproxima, de quanto me golpeia o peito como um um novo coração tremente.

Li esses versos e fiquei parado, pensando….

A partir de então os livros de Pablo Neruda se tornaram uma presença obsessiva na minha adolescência. Depois de ler Para nascer nasci, consegui emprestar Confesso que vivi na mesma biblioteca pública. Um livro de memórias escrito em linguagem poética que me apresentou um painel sobre o envolvimento do autor na história política e literária do século XX, sobre seu país, um Chile que não conhecia, mas que passei a amar a distância através da poesia de Neruda, e sobre os incontáveis personagens que povoaram a vida do poeta.

Depois também li o Canto geral, um poema de amor à América Latina e de resistência à opressão política e econômica. Por coincidência, uma amiga chilena que estudava psicologia na Universidade Estadual de Maringá, Jeanette Navarro Escobar, me emprestou uma fita cassete em que estava gravada a voz do poeta narrando os poemas do Canto geral  e que o leitor  também pode ouvir com um click.

Quando recordo aquele início da década de 1980 ainda ouço na minha imaginação a voz do poeta buscando “o vento para alcançar meus ouvidos”.

 

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As aulas de literatura de

Julio Cortázar

Walter Praxedes
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Foi por acaso que encontrei Alguém que anda por aí em uma pequena biblioteca de bairro que frequentava quando tinha quinze anos. O título aparentemente despretensioso  me provocou o impulso imediato de emprestar e ler aquele livro.  Ansioso por logo chegar em casa e começar a lê-lo, caminhava pelas ruas segurando-o nas mãos e às vezes arriscando ler algumas linhas rapidamente.
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Já se passaram trinta e cinco anos desde aquela tarde do verão de 1980. Eu nem imaginava que aquele escritor que desconhecia, naquele mesmo ano dava as suas Aulas de literatura na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, ensinando a arte de contar histórias com significados infinitos, quer seja na forma do conto, do romance ou das curtas, irreverentes e divertidas narrativas que compõem a obra do escritor argentino Julio Cortázar.
E eis que recebo pelo correio um livro encomendado pela internet com aquelas Aulas de literatura (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015). Começo imediatamente a folhar o livro com a mesma ansiedade que não me deixou parar de ler até que chegasse ao fim a história de um ator de radionovelas na Buenos Aires da década de 1950.

Nunca entendi racionalmente como Cortázar consegue prender o leitor e torná-lo introspectivo e fascinado com suas narrativas sobre um congestionamento de carros em Todos os fogos o fogo ou, em O jogo da amarelinha, ao nos contar como Horacio Oliveira procurava a namorada na Pont des Arts, em Paris: Encontraria a Maga “andando de um lado para o outro da ponte” ou “imóvel, debruçada  sobre o parapeito de ferro, olhando a água”?

 

 

 

Oliveira e Maga teriam deixado um cadeado preso numa das grades do parapeito da ponte com os seus nomes gravados e depois lançado a chave na água? Uma das lições do professor Cortázar nas aulas em Berkeley é sobre a importância dessa ligação da literatura com vida cotidiana e não apenas com o virtuosismo estético.

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Em sua primeira aula Cortázar contextualiza a origem do seu impulso para escrever recordando que vivia “em um mundo em que o surgimento de um romance ou de um livro de contos significativo de um autor europeu ou argentino tinha uma importância capital para nós” (p. 16).

No Brasil também já houve um tempo assim. O exemplar de O jogo da amarelinha que ilustra este ensaio na foto abaixo, por exemplo, é de 1982 e pertencia à operária Nair Pinto Rosa, uma mulher que não teve oportunidade de passar pela educação escolar e mesmo assim era apaixonada pelos livros e pela literatura de qualidade.

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Mas os tempos são outros e até um livro como Aulas de literatura dependeu de subsídios governamentais da Argentina para chegar ao público leitor de língua portuguesa.

A escrita de Cortázar e suas histórias não são sempre divertidas como um jogo de amarelinha, um manual sobre como dar cordas em um relógio ou subir uma escada. O mais comum é nos depararmos com personagens que vivem em uma “angústia permanente”, e que compartilham com o escritor suas indagações sobre o “destino humano” e sobre os variáveis significados que a condição humana adquire nos diferentes povos espalhados pelo globo.

Não são muitos os escritores que conseguiram conciliar a qualidade literária do texto com a tentativa de participação ativa nos processos históricos. Cortázar o fez a partir de um sentimento de pertença a uma identidade latino-americana que temos dificuldade de compreender atualmente, mas que nos faz muita falta.