A compulsão pela leitura e outros ensaios insólitos

A compulsão pela leitura


Walter Praxedes

Meses atrás, enquanto aguardava o horário de embarque em um vôo para Maringá, encontrei no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, um ex-professor dos tempos de graduação, que chegava de uma conferência em Portugal e esperava um vôo para uma capital do Sul do País, onde receberia uma homenagem. Nossa conversa durou o tempo que faltava para o seu embarque, em torno de uma hora, e despertou-me para o problema da compulsão pela leitura entre os acadêmicos.

Para evitar constrangimentos, vou comentar o tema a partir de algumas confidências do meu estimado ex-professor, sem, contudo, apresentar detalhes que poderiam levar à sua identificação pelos leitores, uma vez que se trata de assunto de sua vida privada.

Depois de muitos anos de pesquisa e ensino em grandes universidades do Brasil e do exterior, e de ter publicado duas dezenas de obras que estão entre as mais prestigiosas das ciências humanas em nosso país, o Professor Z, é assim que vou nominá-lo, confessou-me que se cansou da disciplina intelectual que o levava a ler e a reler tudo que lhe caía nas mãos, de textos clássicos a artigos científicos e relatórios de pesquisas recentes, dissertações e teses, passando pelas infindáveis produções de seus alunos e orientandos, além das incontáveis mensagens que congestionavam o seu correio eletrônico.

Como um portador de obesidade mórbida que realiza uma intervenção cirúrgica para a redução do tubo digestivo, o Professor Z saiu de casa certa manhã e vendeu por qualquer preço todos os seus livros, incluindo os de sua própria autoria, para o primeiro sebo que se dispôs a retirar imediatamente o acervo de sua residência.

Foi, segundo ele, a maneira mais rápida que encontrou para desobstruir dois quartos e os corredores do seu apartamento não tão pequeno, e de tornar o ambiente mais propício à habitação, sem o volume exagerado e os fungos da cultura ocidental impressa que acumulara.

A partir do raciocínio – singelo para um estudioso de ciências humanas – de que na maior parte da História os humanos não precisaram da escrita para se comunicarem entre si, e de que para bilhões de habitantes atuais do planeta a escrita simplesmente não existe, nosso professor tomou a decisão de ignorar por completo as imposições da indústria da palavra escrita, impressa ou virtual, e seus lançamentos contínuos.

O mais difícil, contou-me, foi livrar-se do vício obsessivo-compulsivo pela leitura. Desde a adolescência um dos princípios que orientavam a sua vida cotidiana era a máxima “se algo foi escrito e publicado, é necessário que seja lido”.

Quando decidiu desintoxicar-se dos efeitos da decodificação excessiva de sinais gráficos, para ele isso foi tão penoso como livrar-se da dependência química de álcool, nicotina ou comida.

Depois da venda da sua biblioteca resolveu cancelar suas várias assinaturas de jornais diários, revistas semanais de variedades e publicações especializadas nos cinco idiomas que domina. Também deixou de abrir as mensagens que recebia pela Internet. Passou, então, a se comunicar com os colegas de trabalho, amigos e alunos apenas por telefone ou pessoalmente.

O primeiro dia sem ler até que não foi difícil passar, segundo a descrição do Professor Z. Ele lecionou pela manhã uma aula há muito memorizada, almoçou em casa com a esposa e filhos e dormiu um pouco até o meio da tarde. Saiu, então, para passear pelas ruas da cidade, tomou um suco de goiaba em um quiosque, um café expresso em uma padaria, e nem percebeu que ao voltar para casa já era noitinha. Jantou em companhia dos filhos, pois a esposa havia saído para uma reunião profissional. Assistiu ao jornal da noite na televisão, um capítulo de telenovela e um documentário sobre golfinhos. Tomou um banho e dormiu assim que deitou, antes que a esposa tivesse chegado.

No dia seguinte não deu aulas e teve a primeira recaída. Ao sair novamente para passear pelo centro da cidade parou por incontáveis minutos diante dos jornais expostos em uma banca. Foi um dia que demorou muito para passar, segundo suas recordações, deixando-o entediado e irritadiço. No terceiro dia do regime de restrição total à leitura a que se impusera, passou o dia todo em reunião na congregação de sua faculdade e chegou em casa exausto, jantou pouco, conversou com o filho mais velho que precisava de dinheiro para pagar o conserto da moto e assistiu televisão até se recolher para o banho e o sono. A esposa estava em casa e sua companhia ajudou-o a não se lembrar dos livros. No quarto dia percebeu que estava se acostumando à nova vida.

Ao final do primeiro mês sentiu-se livre e com um ânimo novo. Por conta própria deixou de tomar a medicação anti-depressiva receitada pelo seu médico contra o seu permanente humor intratável. Com isso melhorou a sua convivência com os familiares e amigos de todas as horas. Escrevo “amigos de todas as horas” porque antes do seu rompimento com a palavra escrita só mesmo esses o suportavam na intimidade, reconheceu o professor em suas confidências, que já me pareciam surpreendentes e excessivamente detalhadas.

Atualmente o Professor Z participa de um grupo de ajuda mútua que se reúne semanalmente para conversar e, assim, contribuir para que os seus membros se libertem da compulsão pela leitura. Nestes tempos de ditadura da palavra escrita o lema do grupo não poderia ser mais surpreendente e inviável para um professor: “evite a primeira palavra escrita”.

Carlos Saura sempre

Walter Praxedes

Carlos Saura (1932-)
Carlos Saura (1932-)

Assisti a alguns filmes do cineasta espanhol Carlos Saura na década de 1980. Voltei a assisti-los agora, após um intervalo de 30 anos.

A sensação de aceleração da passagem do tempo e a representação do espaço planetário como estreitado pela globalização, sentimentos que nos envolveram nestas últimas três décadas, não foram suficientes para que diminuísse o encantamento com a memória que os filmes de Saura nos transmite.

E é este encantamento com a memória o tema que transforma o reencontro com A prima Angélica em um poema cinematográfico; ou que nos faz duvidar que seja possível esquecer nossos ressentimentos com as situações trágicas da vida, como ocorre com as crianças órfãs de Cria Cuervos, tendo ao fundo o som tornado inesquecível de Por que te vás, da cantora Jeanette.

Para o cinema de Saura as décadas de 1980 e 90 não foram nada perdidas. Mas o sucesso hollywodiano de Carmen e o virtuosismo do cineasta pra retratar as sucessivas crises vividas pela sociedade espanhola em filmes como Deprisa, Deprisa e Taxi, não suplantaram a sua capacidade de transpor para a tela a dor e a desagregação social provocadas pela longeva ditadura do general Franco, nem o seu otimismo nada ingênuo com a lenta transição para a democracia no início de uma nova época para os espanhóis, como alegoricamente aparecem em Mamãe faz cem anos, que tanto nos comove como nos faz rir.

filmes carlos saura

Após recordar alguns dos mais conhecidos filmes de Carlos Saura, fico com a sensação de que são tantos e tão extraordinários aqueles não mencionados que gostaria de convidar o leitor a deixar de lado os lançamentos mais recentes da indústria cinematográfica para se reencontrar com a poesia na forma de cinema, e com um cineasta que aos 82 anos continua a trabalhar com a sensibilidade e a maestria estética que o tornaram para sempre inesquecível.


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Ódio, amizade, namoro, amor, casamento: a vida cotidiana nos contos de Alice Munro

Walter Praxedes

alice

Lemos lentamente os contos de Alice Munro. Aproximamo-nos aos poucos das vivências que habitam a sua escrita. De preferência em silêncio, com todos os eletrônicos dormindo seu sono quase impossível e depois que as crianças também dormiram. O cansaço que restou do esforço da rotina diária ainda não levou embora o mínimo de concentração. Foi também dessa maneira que muitos dos contos foram escritos por esta escritora que nos chega da zona rural de Ontário, no interior do Canadá.

Podemos permanecer assim por poucas páginas. Mas já é o bastante para nos envolvermos no estilo direto e detalhista da escrita de Alice Munro. Como se entre profundidade e leveza só pudesse existir conciliação.

O diálogo de duas amigas em uma praia remota do Canadá nos aproxima de toda a intimidade possível entre pessoas amigas que falam sobre seus sentimentos de angústia e esperança, lamento e aceitação, tentando sobreviver longe dos “surrados refúgios masculinos com seus odores furtivos mas penetrantes, a aparência acanhada mas resoluta de resistência aos domínios femininos”.

alice contosO ritmo lento da leitura também contribui para que não deixemos passar desatentamente algumas palavras, orações, parágrafos ou mesmo páginas inteiras que possam abreviar o fim da introspecção trazida pelos livros de Alice Munro, publicados com o título de uma brincadeira de criança: “Ódio, amizade, namoro, amor, casamento”; ou de um sonho convencional e às vezes impossível de muitos homens e mulheres: “O amor de uma boa mulher”.

A vida cotidiana de mulheres, homens e crianças de diferentes gerações e classes sociais transformados em suas personagens aparece em cada conto como “o próprio centro do bem viver”, levando ao paroxismo aquela idéia do filósofo Charles Taylor, discutida no livro As fontes do self, de que as civilizações modernas se baseiam na importância atribuída ao cotidiano na vida humana.

O pano de fundo dos contos de Alice Munro penso que é a idéia de que a vida cotidiana deva ser vivida com dignidade.  A própria família pode ser definida como uma forma de sociabilidade baseada na convivência cotidiana com vínculos de afetividade, comprometimento e cuidado. A menina que recebeu uma educação cristã presbiteriana se transforma na escritora atenta aos mínimos detalhes das vivências conflituosas e opressivas. Nada que contrarie as possibilidades de se conviver em família sem a perda da dignidade entre os seus membros deve permanecer velado.

Mas não vamos encontrar nos contos de Alice Munro generalizações que possam encobrir as sutilezas da busca de cada ser singular pelos vínculos fraternos, onde quer que eles possam ser mais inesperados ou ilusórios, em meio aos mais intensos conflitos no cotidiano familiar ou profissional.

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A tentação do plágio

Walter Praxedes

Para expiação do pecado capital do mundo do conhecimento que é o plágio, um primeiro passo pode ser a simples confissão. Nos livramos da culpa do plágio citando a fonte de uma informação ou argumento.

Quando um autor perde a capacidade de resistir ao mal o plágio se consuma. O ato de plagiar é então considerado um crime hediondo. Em seu julgamento o réu será acusado de premeditação, falta de escrúpulos, desonestidade, falta de ética profissional. Aos poucos os argumentos condenatórios resvalarão para o campo da moral. No comportamento anterior do réu serão buscados indícios de vileza, vulgaridade e lascívia. Com tão pungente peça acusatória o veredicto final só poderá ser a condenação ao ostracismo intelectual.

É claro que a defesa poderá sempre alegar que o crime foi passional, argumentando que o acusado não resistiu a um impulso irracional de apropriação indevida da criação alheia e agiu por amor, não por inveja ou cobiça.

Se um texto é uma espécie de filho que colocamos no mundo, a moral nos ensina que o melhor é que não seja fruto de um incesto. O plágio é um incesto que realizamos com um irmão ou irmã de ofício, que nos seduziu através do seu texto. A atração por plagiar é como um desejo incestuoso do qual nos afastamos se resignando à imperfeição do nosso próprio texto.

Quer seja o plágio considerado como um vulgar crime motivado pela falta de ética, ou como um ato passional, e até mesmo um incesto, no mundo das letras não conseguimos evitar um sentimento misto de repulsa e compaixão pelo criminoso plagiário, considerado mais uma pobre vítima de uma tentação demoníaca.

Ao autor considerado pelos pares como sério, consistente e inovador pode ser relevada uma falta até grave em sua vida privada. Dificilmente, porém, lhe será concedido o perdão por um plágio comprovado e às vezes apenas presumido.

Podemos, então, concluir que uma interdição tão severa como a que paira sobre o ato de plagiar só pode mesmo ser explicada pela existência de um desejo de transgressão que tenha a mesma intensidade.

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Das comunicações vigiadas à reconstrução da democracia


Walter Praxedes

Sempre pensamos que a globalização é a época das comunicações instantâneas entre todas as regiões do planeta. Agora precisamos acrescentar que essa instantaneidade é também vigiada via satélite.

Houve um tempo, não muito distante, em que a maior acusação que poderia ser feita contra os então chamados países comunistas da hoje já extinta União Soviética e do leste europeu, era a da falta de liberdade dos seus habitantes. Seus estados eram acusados de exercer uma vigilância policial sobre a vida das pessoas, violava suas correspondências, gravava suas conversas ao telefone e seguia os seus passos para onde quer que fossem. Os nomes da KGB soviética (sigla russa para Comitê de Segurança do Estado), e da temida Stasi, polícia política e secreta da Alemanha oriental, representavam as mais invasivas, opressivas e odiosas agências de espionagem da vida cotidiana dos indivíduos.

Mas os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, a União Soviética foi extinta, foi destruído o Muro de Berlin. O “comunismo” teria mesmo que fracassar, pois não respeitava os direitos humanos à liberdade e à privacidade. Seria impossível imaginarmos que os seres humanos se submeteriam indefinidamente à opressão de ter as suas correspondências lidas e viver sendo monitorados por anônimos agentes dos serviços secretos.

Então veio a difusão em larga escala das tecnologias informacionais e de comunicação. Seduzidos pela praticidade e pelo culto da tecnologia, bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta ingressaram em uma rede de informação e comunicação com seus computadores pessoais e telefones celulares dotados de acesso à Internet, redes sociais, correio eletrônico. E assim se submeteram espontaneamente à mais poderosa e eficiente rede de espionagem, franqueando aos estados e seus serviços secretos todas as informações que achávamos tão opressivo e odioso que os países da Cortina de Ferro roubassem dos seus habitantes.

Da mesma forma como acabou a ilusão no socialismo burocrático e policial da antiga União soviética, quem sabe agora ocorra o fim da ilusão na democracia ao estilo norte-americano, baseada em espionagem, terrorismo de estado, perseguição, tortura, guerra, massacre de populações civis como ocorreu no Iraque e no Afeganistão, patrocínio a golpes de estado no mundo todo e muito cinismo, afinal, os EUA ainda se intitulam os defensores da liberdade no mundo.

Já se falou que a democracia é uma forma de convivência social e política que deve ser reconstruída a cada geração. Chegou o momento e a nossa vez de a reconstruirmos sem monitoramento das comunicações, sem tortura e sem pobreza.

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Um país sem passado

Walter Praxedes

… O passado é cheio de vida e seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de querermos destruí-lo ou pintá-lo de novo. Só queremos ser mestres do futuro para podermos mudar o passado. Lutamos para ter acesso aos laboratórios onde se pode retocar as fotos e reescrever as biografias e a História.
Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento.

No dia do velório do ex-todo-poderoso empresário das telecomunicações vários ex-combatentes da luta pela democratização do país declararam publicamente seu pesar pelo falecimento daquele senhor que havia sido um verdadeiro nacionalista, alguém que amara o seu país mais do que todos, e que foi um dos principais artífices da democratização e da integração nacional, um grande defensor da cultura e da liberdade de expressão.

Vi e ouvi depoimentos com o conteúdo acima pronunciados por alguns companheiros que ocupam postos importantes no governo com o mesmo constrangimento que de vez em quando, por força do ofício de professor, revejo algumas gravações de depoimentos de militantes torturados em épocas passadas (não estou mais seguro de que tenha ocorrido nesse passado não tão distante algo que possa ser nomeado como “ditadura militar”, ou mesmo de que o empresário falecido tenha se beneficiado do apoio que dava ao regime ditatorial), que eram levados a público em rede de televisão para se declararem arrependidos pelo envolvimento em atividades subversivas contra a pátria e denunciarem ex-companheiros que continuavam realizando ações terroristas.

Penso que chega a ser uma obrigação ética de quem não foi torturado absolver de qualquer culpa os arrependidos que renegavam a própria trajetória em um depoimento à televisão para escapar da dor provocada pelas sessões de tortura e salvar a vida. Apesar disso, depois desses episódios, como forma de autopunição, vários arrependidos fugiram para o esquecimento e se transformaram em sombras de si mesmos.
Talvez tenhamos também o dever de relevar as palavras e gestos afoitos dos companheiros ocupantes de postos importantes no governo. Mesmo que esses atuais arrependidos não estejam sofrendo ameaças à sua integridade física. É possível que num futuro não muito distante os seus nomes sequer sejam lembrados, pois acho que eles estão se transformando em sombras de si mesmos.

Mas é provável que nesse mesmo futuro seja muito bem lembrado e estudado nas escolas o nome e a obra do grande empresário das telecomunicações que entrou para a História como o artífice da democratização e da integração nacional do país, um grande defensor da cultura e da liberdade de expressão.

P.S.: Para escrever sobre um país que reinventa diariamente o seu passado não é necessário citar nomes de pessoas, lugares ou datas que acabarão no esquecimento.

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Para que serve a literaturaWalter Praxedes

Conta-se que no final da Segunda Guerra Mundial, quando chegaram num campo de concentração que contava com inúmeros prisioneiros inocentes, os soldados de uma das divisões das tropas aliadas surpreenderam alguns dos seus inimigos nazistas sentados e calmamente lendo uma das obras mais importantes e humanistas da literatura universal: nada menos do que Fausto, de Goethe.

A leitura daquele livro não tornava seus leitores menos culpados pelo horror que estava sendo cometido por eles próprios. Também não impedia que cada um daqueles soldados literatos cumprissem  com suas atribuições de prender, torturar e matar seus semelhantes como nenhum outro animal além do humano é capaz de fazer.

Nada mais desconfortante para os defensores da literatura como forma de humanização do que a idéia de que o homem pode combinar a satisfação estética sentida após a leitura de uma peça de Shakespeare com uma prática anti-humana, perversa e cruel.

Apesar disso, como nos ensina o crítico literário Antônio Cândido, a literatura contribui para que se confirmem em cada um de nós “…aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

A literatura serve, por certo, para dar prazer e satisfação para todos, mas só os bons levam a sério suas mensagens humanistas: os demais permanecem indiferentes. Bons livros não convencem uma pessoa má a melhorar. Pode-se supor que alguém que tenha sido pago para assassinar, na sua infância tenha sido um leitor entusiasmado de Monteiro Lobato.

As mensagens humanistas dos livros só atingem as pessoas predispostas para a sua recepção. É provável que os romancistas estejam condenados a “pregar aos convertidos”, a convencer aos convencidos, como tinha o costume de escrever o sociólogo Pierre Bourdieu.

Mesmo assim, um pioneiro investigador dos segredos humanos como Freud não dispensava os conhecimentos propiciados pela literatura. Para o fundador da psicanálise “…os poetas e romancistas são aliados preciosos, e seu testemunho deve ser tido em alta estima pois eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas com as quais nossa sabedoria escolar não poderia sequer sonhar. Eles são para nós, que não passamos de homens vulgares, mestres no conhecimento da alma, pois se banham em fontes que ainda não se tornaram acessíveis à ciência.”

Com tudo isso, não deixo de pensar que após a leitura de um livro como Levantado do Chão, de Saramago, que descreve o sofrimento e a luta dos trabalhadores rurais portugueses, nenhum dirigente do Fundo Monetário Internacional deixará de impor aos países devedores as medidas econômicas que levam a fome e o sofrimento para milhões de pessoas em todo o mundo.

Talvez a literatura sirva mesmo é para convencer os convencidos a permanecerem contra todas as formas de opressão do humano. Se servem para tanto, isso já é um grande bem, pois, embora aqueles que não praticam o bem continuem difundindo o mal, não conseguirão jamais impor a idéia de que ser humano é ser apenas como são.

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Aos prolixos, excluídos e solitários que publicam na rede

Walter Praxedes

Os prolixos

É difícil percebermos quando nos tornamos prolixos. No dia de sua diplomação o nosso novo presidente até reconheceu que nunca havia falado por apenas cinco minutos. Foi uma exceção.

Escrever também pode tornar-se uma obsessão. Isso ocorre quando as palavras que digitamos e aparecem na tela não fazem concessão e exigem sempre mais. Cobram intermináveis complementações, esclarecimentos, adequações, aquela expressão exata. Muitas vezes tudo isso é desnecessário, pois o leitor vai sempre preencher os brancos do texto que lê com a sua imaginação e o seu discernimento. Mas não, o autor prolixo considera como essencial emendar, fundamentar e ilustrar até que o leitor se canse e descubra a verdade do mouse.

Pela escrita podemos fugir da realidade com o pretexto de investigá-la. É assim que suplantamos os limites do existente. Analisar, descrever, interpretar e explicar se revelam, então, vícios incorrigíveis.

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Os excluídos

No Brasil dos anos trinta, apenas algumas centenas de escritores publicavam nos jornais e revistas de norte a sul do país. Agora são centenas de milhares de escritores que reclamam o direito de expressão pública.

Tudo indica que a rede será transformada em um veículo perene, uma vez que vem crescendo o número de pessoas que escrevem, enquanto os canais de divulgação mais prestigiosos tendem para a centralização.

Escrever e publicar na Internet faz esquecermos que os veículos mais lidos e tomados a sério estão fechados para a turba de digitadores implacáveis que compomos.

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Os solitários

Quando publicamos na rede lançamos inúmeras garrafas ao mar com um  pedido de socorro. Esta imagem pode ser usual, mas me parece irresistível e apropriada. Desde o instante em que lançamos a primeira garrafa passamos a cultivar a esperança de que alguém a encontre. Isso quase aconteceu comigo quando uma leitora enviou-me uma mensagem instigante: “Li o seu artigo sobre o professor universitário e achei-o muito interessante numa primeira leitura”. Não é fácil se entregar a um desconhecido, reconheço.

Quando compramos um livro, podemos conferir a procedência da obra, a credibilidade da editora, o currículum do autor. Nas grandes editoras os autores são mais conhecidos. Acho impensável um raciocínio do tipo: “Li o livro de Saramago e achei-o muito interessante numa primeira leitura”. Simplesmente confiamos. Podemos ser efusivos, amar ou odiar um texto de um escritor célebre desde a primeira leitura das primeiras linhas. Quanto aos desconhecidos que habitam o mundo virtual é preciso evitar um engano. Nunca se sabe quem está do outro lado da rede.

Mas ocorre também de uma de nossas garrafas virtuais ser encontrada. Então, uma resposta que recebemos e interpretamos como sincera, substitui os leitores anônimos, sem rosto ou opinião que desconhecemos ou que nunca conquistaremos, nos livrando da sensação de esquecimento por algum tempo. Por isso continuamos lançando garrafas ao mar.

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