A educação reflexiva na teoria social de Pierre Bourdieu

 

 

A educação, os sistemas de ensino e as ações pedagógicas que ocorrem no interior das famílias e no cotidiano escolar ocupam um lugar central na teoria social e nas pesquisas do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). A abrangente teoria sociológica de Bourdieu trata a educação como um componente fundamental dos processos de constituição do mundo social, como podemos facilmente perceber ao estudarmos alguns dos conceitos que elaborou como habitus, prática, estratégia, campo, capital cultural, violência simbólica e reprodução social.

 

Pierre Bourdieu (assis au centre) entouré de ses élèves. Jacques Lefevre se tient debout, à droite (avec l'écharpe).

Pierre Bourdieu,  sentado ao centro, professor de filosofia no Liceu provincial Théodore-de Banville, Moulins, Auvergne, França, 1954.

Formado em Filosofia pela Escola Normal Superior, em 1954, com vinte e quatro anos, Pierre Bourdieu passa a lecionar a disciplina de filosofia no Liceu Provincial. Um dos seus primeiros alunos, Jacques Lefevre estudou com ele no segundo ano do Liceu e se recorda que aquele foi um dos seus  melhores anos  na escola. As aulas de filosofia de Bourdieu o influenciaram para que estudasse Ciência Política em Paris. Mas além de bom professor, Lefevre guarda na lembrança a disponibilidade e gentileza de Bourdieu, que jogava futebol com seus alunos, e nas aulas lia e comentava o Jornal Le Monde  para a turma.  O ex-aluno de Bourdieu o reencontrou em Paris, em 1989,  recebendo de presente um exemplar autografado do livro “A nobreza de Estado” ( La Noblesse de l’État, ainda inédito no Brasil). (1)

 

Pierre Bourdieu dans sa

Construídos gradativamente a partir do final da década de 1950 até a morte de Bourdieu em 2002, esses conceitos resultaram de uma original combinação entre uma teoria social geral e o desenvolvimento de pesquisas empíricas metodologicamente bem controladas sobre as sociedades argelina e francesa, abordando inúmeros problemas de pesquisa que colocaram em foco as comunidades camponesas cabilas do norte da África, as elites dirigentes francesas, as mulheres como vítimas da dominação masculina. Ao mesmo tempo em que estudava os sistemas de ensino e os estudantes franceses, Bourdieu investigava também por que os jovens camponeses tinham dificuldades para conseguir uma noiva na região rural do interior da França em que ele próprio havia nascido e que aceleradamente se modernizava na década de 1960. E, como o próprio autor reconhece em uma entrevista à professora Maria Andréa Loyola, “o fato de ser provinciano, de ter vindo de uma pequena cidade do interior, de ser mal integrado ao mundo parisiense, ao mesmo tempo por escolha e por destino, tem muita importância” (Bourdieu 2002, p. 17).

Resultado de imagem para pierre bourdieu

Para Bourdieu o sistema escolar confirma e reproduz as desigualdades “de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais”.

A concepção de pesquisa educacional Resultado de imagem para pierre bourdieuproposta por Bourdieu resulta de um conjunto de pressupostos científicos que o autor colocava em prática em suas investigações, ressaltando a importância da construção controlada e gradual do objeto de investigação e a importância da reflexividade para que tanto os pesquisadores como os educadores tenham sempre presente para si as influências sofridas no trabalho de busca do conhecimento sobre o mundo social e a educação.

Resultado de imagem para pierre bourdieuA teoria sociológica de Bourdieu pode contribuir tanto para a pesquisa como para a prática educativas, ao evidenciar aqueles mecanismos muitas vezes ocultos — ou que insistimos em não enxergar — presentes no cotidiano escolar, que fazem com que os sistemas de ensino contribuam para a reprodução das desigualdades sociais e formas de dominação política que hierarquizam as sociedades contemporâneas.

Resultado de imagem para pierre bourdieu
Como ensinou Pierre Bourdieu, apenas ao conhecermos os mecanismos que fazem com que a educação escolar contribua para a reprodução das desigualdades e privilégios é que poderemos trabalhar para construir alternativas pedagógicas críticas e reflexivas que os minimizem ou até mesmo os neutralizem, como nos sugerem alguns princípios pedagógicos propostos ao longo de sua obra.
Resultado de imagem para pierre bourdieu
O sociólogo Pierre Bourdieu nasceu em 1º de agosto de 1930, em Denguin, no interior da França. Seu pai foi funcionário dos correios, e sua mãe era proveniente de uma família de médios proprietários de terra. Como aluno empenhado, mesmo sem condições econômicas, Bourdieu estudou no prestigioso Liceu Louis-le-Grand, em Paris, e depois na Escola Normal Superior, formando-se em filosofia em 1954. Trabalha inicialmente como professor de ensino médio, mas entre 1955 e 1958 leciona na Faculdade de Letras de Argel, capital da Argélia, na época ocupada pelo exército francês, onde presta serviço militar obrigatório, realiza suas pesquisas sobre a sociedade cabila e publica o livro Sociologie de L’Algérie. Depois de realizar várias e importantes pesquisas sociais empíricas sobre a educação e a cultura, publica em 1964 o livro Os herdeiros — os estudantes e a cultura, em parceria com Jean-Claude Passeron. Em 1970 cria o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura e publica o livro La reproduction, éléments pour une théorie du système d’enseignement, também em parceria com Passeron.
Resultado de imagem para pierre bourdieu
Resultado de imagem para pierre bourdieu
Com sua trajetória voltada para a pesquisa científica em sociologia, Bourdieu elabora uma vasta e inovadora obra teórica e de investigação. Em 1975 funda a revista Actes de la recherche en sciences sociales e em 1980 é eleito para o Collège de France, como professor titular da cadeira de Sociologia, tornando-se um dos intelectuais mais conhecidos e respeitados no mundo, tanto por sua vasta obra científica quanto por sua ação política de apoio aos movimentos sociais contrários à globalização e ao neoliberalismo. Bourdieu foi casado com a cientista social e fotógrafa Marie-Claire Brizard e tiveram os filhos Jerome, Emmanuel e Laurent. Em 23 de janeiro de 2002 Pierre Bourdieu falece em Paris.

Referências

(2) http://www.lanouvellerepublique.fr/Indre-et-Loire/Communautes-NR/n/Contenus/Articles/2013/09/09/J-ai-ete-l-un-des-premiers-eleves-de-Pierre-Bourdieu-1604927#

Walter Praxedes é cientista social, mestre e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (PR).

Estudos culturais e ação educativa

Walter Praxedes

Resultado de imagem para walter praxedes

Estudos Culturais são estudos sobre a diversidade dentro de cada cultura e sobre as diferentes culturas, sua multiplicidade e complexidade. São, também, estudos orientados pela hipótese de que entre as diferentes culturas existem relações de poder e dominação que devem ser questionadas.

“O que distingue os Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é seu envolvimento explicitamente político. As análises feitas nos Estudos Culturais não pretendem nunca ser neutras ou imparciais. Na crítica que fazem das relações de poder numa situação cultural ou social determinada, os Estudos Culturais tomam claramente o partido dos grupos em desvantagem nessas relações. Os Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem como uma intervenção na vida política e social.” (Silva, 2002: 134).

Os Estudos Culturais podem fundamentar as ações educativas comprometidas com a construção de uma escola democrática fundada na convivência entre identidades culturais e sociais múltiplas.  Mas para que isso ocorra é necessário que sejam questionadas as relações de poder assimétricas que se manifestam nas atitudes preconceituosas e excludentes em relação às mulheres, indivíduos sem propriedades, diferentes aparências físicas, formas de orientação sexual e contra as etnias e raças de origens não-européias.

Um ponto de partida desse processo de democratização da escola pode ser o questionamento das reivindicações de universalidade das manifestações culturais europeias para, em seguida, contestarmos as narrativas eurocêntricas ainda dominantes na educação escolar brasileira, como bem demonstram os materiais didáticos e os processos formativos de professores nas faculdades e universidades.

Segundo Silva (2002), várias questões colocadas pelos Estudos Culturais desafiam os educadores no Brasil atual:

  • Em que medida a educação escolar e os currículos não estão comprometidos com a herança colonial e por isso possibilitam a manutenção do preconceito e da discriminação étnica e racial contra os afro-descendentes e índios?
  • Em que medida a noção de raça, forjada no século XIX pelo pensamento europeu, continua influindo sobre a formação das identidades de alunos e educadores?
  • Como os materiais didáticos, as narrativas literárias e os textos científicos continuam celebrando a soberania do sujeito imperial europeu?
  • Como as subjetividades de alunos e educadores de diferentes grupos étnicos e raciais são influenciadas pelos padrões culturais europeus?
  • Como tornar a escola um espaço de convivência democrática entre os diferentes segmentos étnicos e raciais da sociedade brasileira?

Os Estudos Culturais enfocam as relações de poder entre culturas, nações, povos, etnias, raças, orientações sexuais e  gêneros que resultam da conquista colonial européia, e como de tais relações assimétricas nascem processos de tradução, resistência e de mestiçagem ou hibridação cultural que levam à formação de múltiplas identidades.

De uma perspectiva metodológica a questão mais importante a desafiar os Estudos Culturais foi assim resumida por Linda Hutcheon:

“Como podemos construir um discurso que elimine os efeitos do olhar colonizador enquanto ainda estamos sob sua influência?”  (citada por Giroux, 1999: 32).

Responder efetivamente à indagação de Linda Hutcheon em termos teóricos, e também  na prática  política cotidiana, é uma tarefa imediata para aqueles que se dedicam a lutar pela alteração das relações de dominação e exploração existentes.

Um dos pressupostos do pensamento europeu é o pensamento através das oposições binárias que legitimam as relações de opressão, dominação e exclusão do outro. O pensamento bipolar estabelece uma hierarquia entre os dois pólos, ou seja, não concebe a diferença sem hierarquização, como demonstra o quadro abaixo, elaborado por Viola Sachs:

Esquema da identidade no imaginário do homem branco norte-americano no século XIX (ainda em vigor)

Deus……………………………………………………  Diabo / divindades pagãs

Cristianismo (protestante)……………………..  Outras religiões e crenças / paganismo

Civilização / ordem……………………………….. Selvático / labiríntico

Luz / dia / brancura ………………………………. Escuridão / noite / preto

Homem branco / masculino……………………..Mulher / feminino, o negro, o índio

(the white man)………………………………………(The black man, the red man, cores com conotação negativa)

Mente / razão…………………………………………Corpo / instinto / intuição / coração

A verdade / sentido único………………………..Mentira / erro / polissemia

Lado direto (right) / certo………………………..Lado esquerdo

Dinheiro / dólar / possuir ………………………..Amor / amizade / partilhar

Língua inglesa / escrita alfabética……………..Outras línguas / oralidade / pictogramas /hieróglifos

Fonte: Viola Sachs. Uma identidade americana pluri-racial e pluri-religiosa: a África negra e Moby Dick de Melville. In: Estudos Avançados 16 (45), 2002, p. 208.

Como superar tal polarização na nossa forma de raciocinar e admitir o diverso, diferente, múltiplo, complexo, heterogêneo? Na representação colonialista do outro, a diferença em relação ao europeu é classificada no polo negativo da oposição binária e por isso é reprimida e marginalizada. Como escreveu Giroux (1999: 23), “o outro é subjugado ou eliminado na violência das oposições binárias”.

Na ação educativa restringimos nossos juízos às maneiras de pensar permitidas pelas oposições como corpo ou mente, teórico ou empírico, clareza ou inacessibilidade, consistente ou inconsistente, certo ou errado, bonito ou feio, aluno bom ou aluno ruim, decente ou indecente etc. Raciocinamos de maneira dicotômica e com isso perdemos a capacidade de captar a diversidade do real nas representações que elaboramos sobre “nós” próprios, professores, e sobre os alunos,  os seus pais e a comunidade externa à escola, transformados em “outros”.

Conclusão

Uma escola democrática se constituirá a partir: a) do desenvolvimento de consciências críticas quanto aos processos de imposição de culturas e visões de mundo; e b) da convivência entre identidades culturais e sociais múltiplas. Para tanto, como nos ensina o educador Henry Giroux, é necessário que sejam questionadas as relações de poder assimétricas e que seja realizada a “desconstrução não apenas daquelas formas de privilégio que beneficiam os homens, os brancos, a heterossexualidade e os donos de propriedades, mas também daquelas condições que têm impedido outras pessoas de falar em locais onde aqueles que são privilegiados em virtude do legado do poder colonial assumem a autoridade e as condições para a ação humana” (Giroux, 1999: 39).

 

Referências

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999.

SACHS, Viola. Uma identidade americana pluri-racial e pluri-religiosa: a África negra e Moby Dick de Melville. In: Estudos Avançados 16 (45), 2002. São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2002.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade – uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.

A compulsão pela leitura e outros ensaios insólitos

A compulsão pela leitura


Walter Praxedes

Meses atrás, enquanto aguardava o horário de embarque em um vôo para Maringá, encontrei no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, um ex-professor dos tempos de graduação, que chegava de uma conferência em Portugal e esperava um vôo para uma capital do Sul do País, onde receberia uma homenagem. Nossa conversa durou o tempo que faltava para o seu embarque, em torno de uma hora, e despertou-me para o problema da compulsão pela leitura entre os acadêmicos.

Para evitar constrangimentos, vou comentar o tema a partir de algumas confidências do meu estimado ex-professor, sem, contudo, apresentar detalhes que poderiam levar à sua identificação pelos leitores, uma vez que se trata de assunto de sua vida privada.

Depois de muitos anos de pesquisa e ensino em grandes universidades do Brasil e do exterior, e de ter publicado duas dezenas de obras que estão entre as mais prestigiosas das ciências humanas em nosso país, o Professor Z, é assim que vou nominá-lo, confessou-me que se cansou da disciplina intelectual que o levava a ler e a reler tudo que lhe caía nas mãos, de textos clássicos a artigos científicos e relatórios de pesquisas recentes, dissertações e teses, passando pelas infindáveis produções de seus alunos e orientandos, além das incontáveis mensagens que congestionavam o seu correio eletrônico.

Como um portador de obesidade mórbida que realiza uma intervenção cirúrgica para a redução do tubo digestivo, o Professor Z saiu de casa certa manhã e vendeu por qualquer preço todos os seus livros, incluindo os de sua própria autoria, para o primeiro sebo que se dispôs a retirar imediatamente o acervo de sua residência.

Foi, segundo ele, a maneira mais rápida que encontrou para desobstruir dois quartos e os corredores do seu apartamento não tão pequeno, e de tornar o ambiente mais propício à habitação, sem o volume exagerado e os fungos da cultura ocidental impressa que acumulara.

A partir do raciocínio – singelo para um estudioso de ciências humanas – de que na maior parte da História os humanos não precisaram da escrita para se comunicarem entre si, e de que para bilhões de habitantes atuais do planeta a escrita simplesmente não existe, nosso professor tomou a decisão de ignorar por completo as imposições da indústria da palavra escrita, impressa ou virtual, e seus lançamentos contínuos.

O mais difícil, contou-me, foi livrar-se do vício obsessivo-compulsivo pela leitura. Desde a adolescência um dos princípios que orientavam a sua vida cotidiana era a máxima “se algo foi escrito e publicado, é necessário que seja lido”.

Quando decidiu desintoxicar-se dos efeitos da decodificação excessiva de sinais gráficos, para ele isso foi tão penoso como livrar-se da dependência química de álcool, nicotina ou comida.

Depois da venda da sua biblioteca resolveu cancelar suas várias assinaturas de jornais diários, revistas semanais de variedades e publicações especializadas nos cinco idiomas que domina. Também deixou de abrir as mensagens que recebia pela Internet. Passou, então, a se comunicar com os colegas de trabalho, amigos e alunos apenas por telefone ou pessoalmente.

O primeiro dia sem ler até que não foi difícil passar, segundo a descrição do Professor Z. Ele lecionou pela manhã uma aula há muito memorizada, almoçou em casa com a esposa e filhos e dormiu um pouco até o meio da tarde. Saiu, então, para passear pelas ruas da cidade, tomou um suco de goiaba em um quiosque, um café expresso em uma padaria, e nem percebeu que ao voltar para casa já era noitinha. Jantou em companhia dos filhos, pois a esposa havia saído para uma reunião profissional. Assistiu ao jornal da noite na televisão, um capítulo de telenovela e um documentário sobre golfinhos. Tomou um banho e dormiu assim que deitou, antes que a esposa tivesse chegado.

No dia seguinte não deu aulas e teve a primeira recaída. Ao sair novamente para passear pelo centro da cidade parou por incontáveis minutos diante dos jornais expostos em uma banca. Foi um dia que demorou muito para passar, segundo suas recordações, deixando-o entediado e irritadiço. No terceiro dia do regime de restrição total à leitura a que se impusera, passou o dia todo em reunião na congregação de sua faculdade e chegou em casa exausto, jantou pouco, conversou com o filho mais velho que precisava de dinheiro para pagar o conserto da moto e assistiu televisão até se recolher para o banho e o sono. A esposa estava em casa e sua companhia ajudou-o a não se lembrar dos livros. No quarto dia percebeu que estava se acostumando à nova vida.

Ao final do primeiro mês sentiu-se livre e com um ânimo novo. Por conta própria deixou de tomar a medicação anti-depressiva receitada pelo seu médico contra o seu permanente humor intratável. Com isso melhorou a sua convivência com os familiares e amigos de todas as horas. Escrevo “amigos de todas as horas” porque antes do seu rompimento com a palavra escrita só mesmo esses o suportavam na intimidade, reconheceu o professor em suas confidências, que já me pareciam surpreendentes e excessivamente detalhadas.

Atualmente o Professor Z participa de um grupo de ajuda mútua que se reúne semanalmente para conversar e, assim, contribuir para que os seus membros se libertem da compulsão pela leitura. Nestes tempos de ditadura da palavra escrita o lema do grupo não poderia ser mais surpreendente e inviável para um professor: “evite a primeira palavra escrita”.

Carlos Saura sempre

Walter Praxedes

Carlos Saura (1932-)
Carlos Saura (1932-)

Assisti a alguns filmes do cineasta espanhol Carlos Saura na década de 1980. Voltei a assisti-los agora, após um intervalo de 30 anos.

A sensação de aceleração da passagem do tempo e a representação do espaço planetário como estreitado pela globalização, sentimentos que nos envolveram nestas últimas três décadas, não foram suficientes para que diminuísse o encantamento com a memória que os filmes de Saura nos transmite.

E é este encantamento com a memória o tema que transforma o reencontro com A prima Angélica em um poema cinematográfico; ou que nos faz duvidar que seja possível esquecer nossos ressentimentos com as situações trágicas da vida, como ocorre com as crianças órfãs de Cria Cuervos, tendo ao fundo o som tornado inesquecível de Por que te vás, da cantora Jeanette.

Para o cinema de Saura as décadas de 1980 e 90 não foram nada perdidas. Mas o sucesso hollywodiano de Carmen e o virtuosismo do cineasta pra retratar as sucessivas crises vividas pela sociedade espanhola em filmes como Deprisa, Deprisa e Taxi, não suplantaram a sua capacidade de transpor para a tela a dor e a desagregação social provocadas pela longeva ditadura do general Franco, nem o seu otimismo nada ingênuo com a lenta transição para a democracia no início de uma nova época para os espanhóis, como alegoricamente aparecem em Mamãe faz cem anos, que tanto nos comove como nos faz rir.

filmes carlos saura

Após recordar alguns dos mais conhecidos filmes de Carlos Saura, fico com a sensação de que são tantos e tão extraordinários aqueles não mencionados que gostaria de convidar o leitor a deixar de lado os lançamentos mais recentes da indústria cinematográfica para se reencontrar com a poesia na forma de cinema, e com um cineasta que aos 82 anos continua a trabalhar com a sensibilidade e a maestria estética que o tornaram para sempre inesquecível.


***

Ódio, amizade, namoro, amor, casamento: a vida cotidiana nos contos de Alice Munro

Walter Praxedes

alice

Lemos lentamente os contos de Alice Munro. Aproximamo-nos aos poucos das vivências que habitam a sua escrita. De preferência em silêncio, com todos os eletrônicos dormindo seu sono quase impossível e depois que as crianças também dormiram. O cansaço que restou do esforço da rotina diária ainda não levou embora o mínimo de concentração. Foi também dessa maneira que muitos dos contos foram escritos por esta escritora que nos chega da zona rural de Ontário, no interior do Canadá.

Podemos permanecer assim por poucas páginas. Mas já é o bastante para nos envolvermos no estilo direto e detalhista da escrita de Alice Munro. Como se entre profundidade e leveza só pudesse existir conciliação.

O diálogo de duas amigas em uma praia remota do Canadá nos aproxima de toda a intimidade possível entre pessoas amigas que falam sobre seus sentimentos de angústia e esperança, lamento e aceitação, tentando sobreviver longe dos “surrados refúgios masculinos com seus odores furtivos mas penetrantes, a aparência acanhada mas resoluta de resistência aos domínios femininos”.

alice contosO ritmo lento da leitura também contribui para que não deixemos passar desatentamente algumas palavras, orações, parágrafos ou mesmo páginas inteiras que possam abreviar o fim da introspecção trazida pelos livros de Alice Munro, publicados com o título de uma brincadeira de criança: “Ódio, amizade, namoro, amor, casamento”; ou de um sonho convencional e às vezes impossível de muitos homens e mulheres: “O amor de uma boa mulher”.

A vida cotidiana de mulheres, homens e crianças de diferentes gerações e classes sociais transformados em suas personagens aparece em cada conto como “o próprio centro do bem viver”, levando ao paroxismo aquela idéia do filósofo Charles Taylor, discutida no livro As fontes do self, de que as civilizações modernas se baseiam na importância atribuída ao cotidiano na vida humana.

O pano de fundo dos contos de Alice Munro penso que é a idéia de que a vida cotidiana deva ser vivida com dignidade.  A própria família pode ser definida como uma forma de sociabilidade baseada na convivência cotidiana com vínculos de afetividade, comprometimento e cuidado. A menina que recebeu uma educação cristã presbiteriana se transforma na escritora atenta aos mínimos detalhes das vivências conflituosas e opressivas. Nada que contrarie as possibilidades de se conviver em família sem a perda da dignidade entre os seus membros deve permanecer velado.

Mas não vamos encontrar nos contos de Alice Munro generalizações que possam encobrir as sutilezas da busca de cada ser singular pelos vínculos fraternos, onde quer que eles possam ser mais inesperados ou ilusórios, em meio aos mais intensos conflitos no cotidiano familiar ou profissional.

***

A tentação do plágio

Walter Praxedes

Para expiação do pecado capital do mundo do conhecimento que é o plágio, um primeiro passo pode ser a simples confissão. Nos livramos da culpa do plágio citando a fonte de uma informação ou argumento.

Quando um autor perde a capacidade de resistir ao mal o plágio se consuma. O ato de plagiar é então considerado um crime hediondo. Em seu julgamento o réu será acusado de premeditação, falta de escrúpulos, desonestidade, falta de ética profissional. Aos poucos os argumentos condenatórios resvalarão para o campo da moral. No comportamento anterior do réu serão buscados indícios de vileza, vulgaridade e lascívia. Com tão pungente peça acusatória o veredicto final só poderá ser a condenação ao ostracismo intelectual.

É claro que a defesa poderá sempre alegar que o crime foi passional, argumentando que o acusado não resistiu a um impulso irracional de apropriação indevida da criação alheia e agiu por amor, não por inveja ou cobiça.

Se um texto é uma espécie de filho que colocamos no mundo, a moral nos ensina que o melhor é que não seja fruto de um incesto. O plágio é um incesto que realizamos com um irmão ou irmã de ofício, que nos seduziu através do seu texto. A atração por plagiar é como um desejo incestuoso do qual nos afastamos se resignando à imperfeição do nosso próprio texto.

Quer seja o plágio considerado como um vulgar crime motivado pela falta de ética, ou como um ato passional, e até mesmo um incesto, no mundo das letras não conseguimos evitar um sentimento misto de repulsa e compaixão pelo criminoso plagiário, considerado mais uma pobre vítima de uma tentação demoníaca.

Ao autor considerado pelos pares como sério, consistente e inovador pode ser relevada uma falta até grave em sua vida privada. Dificilmente, porém, lhe será concedido o perdão por um plágio comprovado e às vezes apenas presumido.

Podemos, então, concluir que uma interdição tão severa como a que paira sobre o ato de plagiar só pode mesmo ser explicada pela existência de um desejo de transgressão que tenha a mesma intensidade.

***

Das comunicações vigiadas à reconstrução da democracia


Walter Praxedes

Sempre pensamos que a globalização é a época das comunicações instantâneas entre todas as regiões do planeta. Agora precisamos acrescentar que essa instantaneidade é também vigiada via satélite.

Houve um tempo, não muito distante, em que a maior acusação que poderia ser feita contra os então chamados países comunistas da hoje já extinta União Soviética e do leste europeu, era a da falta de liberdade dos seus habitantes. Seus estados eram acusados de exercer uma vigilância policial sobre a vida das pessoas, violava suas correspondências, gravava suas conversas ao telefone e seguia os seus passos para onde quer que fossem. Os nomes da KGB soviética (sigla russa para Comitê de Segurança do Estado), e da temida Stasi, polícia política e secreta da Alemanha oriental, representavam as mais invasivas, opressivas e odiosas agências de espionagem da vida cotidiana dos indivíduos.

Mas os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, a União Soviética foi extinta, foi destruído o Muro de Berlin. O “comunismo” teria mesmo que fracassar, pois não respeitava os direitos humanos à liberdade e à privacidade. Seria impossível imaginarmos que os seres humanos se submeteriam indefinidamente à opressão de ter as suas correspondências lidas e viver sendo monitorados por anônimos agentes dos serviços secretos.

Então veio a difusão em larga escala das tecnologias informacionais e de comunicação. Seduzidos pela praticidade e pelo culto da tecnologia, bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta ingressaram em uma rede de informação e comunicação com seus computadores pessoais e telefones celulares dotados de acesso à Internet, redes sociais, correio eletrônico. E assim se submeteram espontaneamente à mais poderosa e eficiente rede de espionagem, franqueando aos estados e seus serviços secretos todas as informações que achávamos tão opressivo e odioso que os países da Cortina de Ferro roubassem dos seus habitantes.

Da mesma forma como acabou a ilusão no socialismo burocrático e policial da antiga União soviética, quem sabe agora ocorra o fim da ilusão na democracia ao estilo norte-americano, baseada em espionagem, terrorismo de estado, perseguição, tortura, guerra, massacre de populações civis como ocorreu no Iraque e no Afeganistão, patrocínio a golpes de estado no mundo todo e muito cinismo, afinal, os EUA ainda se intitulam os defensores da liberdade no mundo.

Já se falou que a democracia é uma forma de convivência social e política que deve ser reconstruída a cada geração. Chegou o momento e a nossa vez de a reconstruirmos sem monitoramento das comunicações, sem tortura e sem pobreza.

***

Um país sem passado

Walter Praxedes

… O passado é cheio de vida e seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de querermos destruí-lo ou pintá-lo de novo. Só queremos ser mestres do futuro para podermos mudar o passado. Lutamos para ter acesso aos laboratórios onde se pode retocar as fotos e reescrever as biografias e a História.
Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento.

No dia do velório do ex-todo-poderoso empresário das telecomunicações vários ex-combatentes da luta pela democratização do país declararam publicamente seu pesar pelo falecimento daquele senhor que havia sido um verdadeiro nacionalista, alguém que amara o seu país mais do que todos, e que foi um dos principais artífices da democratização e da integração nacional, um grande defensor da cultura e da liberdade de expressão.

Vi e ouvi depoimentos com o conteúdo acima pronunciados por alguns companheiros que ocupam postos importantes no governo com o mesmo constrangimento que de vez em quando, por força do ofício de professor, revejo algumas gravações de depoimentos de militantes torturados em épocas passadas (não estou mais seguro de que tenha ocorrido nesse passado não tão distante algo que possa ser nomeado como “ditadura militar”, ou mesmo de que o empresário falecido tenha se beneficiado do apoio que dava ao regime ditatorial), que eram levados a público em rede de televisão para se declararem arrependidos pelo envolvimento em atividades subversivas contra a pátria e denunciarem ex-companheiros que continuavam realizando ações terroristas.

Penso que chega a ser uma obrigação ética de quem não foi torturado absolver de qualquer culpa os arrependidos que renegavam a própria trajetória em um depoimento à televisão para escapar da dor provocada pelas sessões de tortura e salvar a vida. Apesar disso, depois desses episódios, como forma de autopunição, vários arrependidos fugiram para o esquecimento e se transformaram em sombras de si mesmos.
Talvez tenhamos também o dever de relevar as palavras e gestos afoitos dos companheiros ocupantes de postos importantes no governo. Mesmo que esses atuais arrependidos não estejam sofrendo ameaças à sua integridade física. É possível que num futuro não muito distante os seus nomes sequer sejam lembrados, pois acho que eles estão se transformando em sombras de si mesmos.

Mas é provável que nesse mesmo futuro seja muito bem lembrado e estudado nas escolas o nome e a obra do grande empresário das telecomunicações que entrou para a História como o artífice da democratização e da integração nacional do país, um grande defensor da cultura e da liberdade de expressão.

P.S.: Para escrever sobre um país que reinventa diariamente o seu passado não é necessário citar nomes de pessoas, lugares ou datas que acabarão no esquecimento.

***

Para que serve a literaturaWalter Praxedes

Conta-se que no final da Segunda Guerra Mundial, quando chegaram num campo de concentração que contava com inúmeros prisioneiros inocentes, os soldados de uma das divisões das tropas aliadas surpreenderam alguns dos seus inimigos nazistas sentados e calmamente lendo uma das obras mais importantes e humanistas da literatura universal: nada menos do que Fausto, de Goethe.

A leitura daquele livro não tornava seus leitores menos culpados pelo horror que estava sendo cometido por eles próprios. Também não impedia que cada um daqueles soldados literatos cumprissem  com suas atribuições de prender, torturar e matar seus semelhantes como nenhum outro animal além do humano é capaz de fazer.

Nada mais desconfortante para os defensores da literatura como forma de humanização do que a idéia de que o homem pode combinar a satisfação estética sentida após a leitura de uma peça de Shakespeare com uma prática anti-humana, perversa e cruel.

Apesar disso, como nos ensina o crítico literário Antônio Cândido, a literatura contribui para que se confirmem em cada um de nós “…aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

A literatura serve, por certo, para dar prazer e satisfação para todos, mas só os bons levam a sério suas mensagens humanistas: os demais permanecem indiferentes. Bons livros não convencem uma pessoa má a melhorar. Pode-se supor que alguém que tenha sido pago para assassinar, na sua infância tenha sido um leitor entusiasmado de Monteiro Lobato.

As mensagens humanistas dos livros só atingem as pessoas predispostas para a sua recepção. É provável que os romancistas estejam condenados a “pregar aos convertidos”, a convencer aos convencidos, como tinha o costume de escrever o sociólogo Pierre Bourdieu.

Mesmo assim, um pioneiro investigador dos segredos humanos como Freud não dispensava os conhecimentos propiciados pela literatura. Para o fundador da psicanálise “…os poetas e romancistas são aliados preciosos, e seu testemunho deve ser tido em alta estima pois eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas com as quais nossa sabedoria escolar não poderia sequer sonhar. Eles são para nós, que não passamos de homens vulgares, mestres no conhecimento da alma, pois se banham em fontes que ainda não se tornaram acessíveis à ciência.”

Com tudo isso, não deixo de pensar que após a leitura de um livro como Levantado do Chão, de Saramago, que descreve o sofrimento e a luta dos trabalhadores rurais portugueses, nenhum dirigente do Fundo Monetário Internacional deixará de impor aos países devedores as medidas econômicas que levam a fome e o sofrimento para milhões de pessoas em todo o mundo.

Talvez a literatura sirva mesmo é para convencer os convencidos a permanecerem contra todas as formas de opressão do humano. Se servem para tanto, isso já é um grande bem, pois, embora aqueles que não praticam o bem continuem difundindo o mal, não conseguirão jamais impor a idéia de que ser humano é ser apenas como são.

***

Aos prolixos, excluídos e solitários que publicam na rede

Walter Praxedes

Os prolixos

É difícil percebermos quando nos tornamos prolixos. No dia de sua diplomação o nosso novo presidente até reconheceu que nunca havia falado por apenas cinco minutos. Foi uma exceção.

Escrever também pode tornar-se uma obsessão. Isso ocorre quando as palavras que digitamos e aparecem na tela não fazem concessão e exigem sempre mais. Cobram intermináveis complementações, esclarecimentos, adequações, aquela expressão exata. Muitas vezes tudo isso é desnecessário, pois o leitor vai sempre preencher os brancos do texto que lê com a sua imaginação e o seu discernimento. Mas não, o autor prolixo considera como essencial emendar, fundamentar e ilustrar até que o leitor se canse e descubra a verdade do mouse.

Pela escrita podemos fugir da realidade com o pretexto de investigá-la. É assim que suplantamos os limites do existente. Analisar, descrever, interpretar e explicar se revelam, então, vícios incorrigíveis.

***

Os excluídos

No Brasil dos anos trinta, apenas algumas centenas de escritores publicavam nos jornais e revistas de norte a sul do país. Agora são centenas de milhares de escritores que reclamam o direito de expressão pública.

Tudo indica que a rede será transformada em um veículo perene, uma vez que vem crescendo o número de pessoas que escrevem, enquanto os canais de divulgação mais prestigiosos tendem para a centralização.

Escrever e publicar na Internet faz esquecermos que os veículos mais lidos e tomados a sério estão fechados para a turba de digitadores implacáveis que compomos.

***

Os solitários

Quando publicamos na rede lançamos inúmeras garrafas ao mar com um  pedido de socorro. Esta imagem pode ser usual, mas me parece irresistível e apropriada. Desde o instante em que lançamos a primeira garrafa passamos a cultivar a esperança de que alguém a encontre. Isso quase aconteceu comigo quando uma leitora enviou-me uma mensagem instigante: “Li o seu artigo sobre o professor universitário e achei-o muito interessante numa primeira leitura”. Não é fácil se entregar a um desconhecido, reconheço.

Quando compramos um livro, podemos conferir a procedência da obra, a credibilidade da editora, o currículum do autor. Nas grandes editoras os autores são mais conhecidos. Acho impensável um raciocínio do tipo: “Li o livro de Saramago e achei-o muito interessante numa primeira leitura”. Simplesmente confiamos. Podemos ser efusivos, amar ou odiar um texto de um escritor célebre desde a primeira leitura das primeiras linhas. Quanto aos desconhecidos que habitam o mundo virtual é preciso evitar um engano. Nunca se sabe quem está do outro lado da rede.

Mas ocorre também de uma de nossas garrafas virtuais ser encontrada. Então, uma resposta que recebemos e interpretamos como sincera, substitui os leitores anônimos, sem rosto ou opinião que desconhecemos ou que nunca conquistaremos, nos livrando da sensação de esquecimento por algum tempo. Por isso continuamos lançando garrafas ao mar.

Para educadores, é preciso evitar banalização de discurso racista (Entrevista ao jornalista Dojival Vieira)

11/02/2014

Dojival Vieira Afropress – Agência Afroétnica de Notícias

 Foto de Culturas Afro e Indígena nas Escolas.
Da Redação

Maringá/PR – O Brasil passa por um momento em que é preciso discutir novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo e em que os discursos de denúncia e a defesa das ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

A opinião é dos professores Rosângela Rosa e Walter Praxedes, graduados em Ciências Sociais e mestres e doutores, respectivamente, em Educação e Antropologia.

SAM_2270

Segundo Rosângela e Walter a consequência disso é que “as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção”.  “A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira. Temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país”, acrescentam.

Eles estão lançando o livro Educando contra o Preconceito e a Discriminação Racial, que faz parte de uma coleção das Edições Loyola, destinada à formação de educadores, coordenada pelo educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares.

O livro chama a atenção dos educadores para que prestem mais atenção nas relações entre negros e brancos  no cotidiano escolar, na perspectiva da superação dos preconceitos e da discriminação, como também fiquem alertas aos conteúdos curriculares de todas as disciplinas “que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar”.

Confira, em seguida, na íntegra, a entrevista dos professores Rosângela, que também tem Pós-Doutorado em Antropologia pela Universidade de Barcelona, na Espanha, e Walter, que é professor universitário e coautor, com Pilleti, dos livros “O Mercosul e a sociedade global; Dom Helder Câmara: o profeta da paz; e Sociologia da Educação: do positivismo aos estudos culturais”.

Afropress – Quais os aspectos mais importantes abordados na obra dentro da Série Caminhos da Formação Docente e como ela pode ser utilizada no dia a dia pelos professores?

Rosângela e Walter Praxedes – Os movimentos negros sempre alertaram para a existência do racismo na nossa sociedade. A Coleção Caminhos da Formação Docente das Edições Loyola está direcionada para a formação de professores, e como estudiosos da Educação e das Ciências Sociais o nosso trabalho visa demonstrar que o desempenho escolar dos alunos negros é prejudicado pela discriminação que ocorre diretamente na interação entre os agentes que se relacionam no cotidiano escolar, professores, alunos, funcionários, familiares.

O nosso livro contribui para o educador prestar atenção diretamente tanto nas relações entre negros e brancos no cotidiano escolar, para que os preconceitos e a discriminação sejam superados, como também nos conteúdos curriculares de todas as disciplinas escolares que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar.

Afropress – Como a Escola ainda contribui para a manutenção da cultura racista e discriminatória herdada do período do escravismo?

Rosângela/Walter Praxedes – Nas atividades didáticas em sala de aula, os educadores muitas vezes relevam ou deixam em segundo plano o fato de que as desigualdades de desempenho escolar das crianças e adolescentes negros em relação aos brancos que ocorre no cotidiano escolar, têm também raízes históricas que remontam ao passado escravista do nosso país.

Remontam, portanto, às relações de opressão entre colonizadores brancos e pessoas escravizadas, à política e ideologia do branqueamento da população brasileira do início da República, à ideologia do eugenismo das nossas elites intelectuais nas primeiras décadas do século XX, e à crença sempre difundida pelas classes dominantes brasileiras e até internacionais de que o Brasil sempre foi uma democracia racial na qual as chamadas “raças” interagem de forma pacífica sem animosidade ou violência.

Afropress – Qual o impacto que essa cultura escolar racista ainda tem na formação da criança negra?

Rosângela/Walter Praxedes – Quando discutimos em sala de aula os resultados da pesquisa realizada pela UNESCO no Brasil em 2006, e várias outras pesquisas, até os educadores militantes dos movimentos negros ficam surpreendidos com as informações que indicam que em todas as regiões do país e classes econômicas, tanto nas famílias mais pobres quanto nas mais abastadas e privilegiadas economicamente, nos estabelecimentos públicos ou particulares e diferentes disciplinas “os estudantes negros estão em condição de desvantagem em relação aos estudantes brancos”. E quanto maior a diferença de renda familiar, maior a desigualdade no desempenho escolar entre os dois grupos.

Isso quer dizer que mesmo com mais recursos econômicos, os alunos negros continuam sendo prejudicados pelo processo escolar. E isso demonstra precisamente que os preconceitos étnicos e raciais contra um indivíduo ou coletividade podem ter conseqüências práticas extremamente negativas. Os seres humanos são muito suscetíveis aos julgamentos que os outros realizam sobre eles.

Não é por acaso que inúmeras pesquisas na área de sociologia da educação indicam que, tanto no trabalho quanto na educação familiar e escolar, as expectativas que se tem sobre o desempenho dos indivíduos influenciam de fato no seu desempenho futuro.

A expectativa dos professores quanto ao desempenho dos alunos condiciona (embora não determine totalmente) o desempenho dos alunos. Aquilo que pensamos sobre as perspectivas de um aluno influi no seu desempenho escolar e na construção da sua identidade.

Afropress – Como estão vendo o cenário da luta antirracista no Brasil – desafios e perspectivas?

Rosângela/Walter Praxedes – Um problema muito relevante que teremos que discutir é a necessidade de novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo, pois os discursos de denúncia do racismo e a defesa de ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

Então as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção.  A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira.

Por isso temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país.

Afropress – Nas manifestações de junho, especialmente, em S. Paulo e Rio praticamente não se notou a presença do movimento negro organizado. A que atribuem essa desconexão da parcela organizada do movimento com a realidade? A vinculação à pauta partidária para maioria das lideranças teria alguma relação com essa ausência?

Rosângela/Walter Praxedes – Mesmo com todos os problemas que persistem na sociedade brasileira, nós estamos passando pelo maior período de democracia da nossa história.

Desde o fim do Regime Militar a democracia no Brasil vem se construindo de uma maneira que os movimentos sociais, partidos políticos e entidades acabam encontrando canais para negociar suas demandas com o Estado e mesmo para se fazerem presentes com cargos em um Governo de coalizão como é o caso das presidências de Fernando Henrique, Lula e Dilma.

Com isso os novos e mais complexos conflitos que surgem todos os dias muitas vezes não são percebidos pelos agentes que privilegiam a atuação junto às instâncias do Estado.

Os movimentos de junho de 2013 nos avisaram que existem imensas demandas de participação política que estão sendo represadas e não são representadas pelos agentes políticos convencionais.

Por enquanto estas manifestações estão sendo descaracterizadas pela infiltração de agentes provocadores. Mas vai passar este momento e os movimentos sociais vão se reaproximar das forças sociais populares que precisam ter suas reivindicações levadas em considerações, e vão redescobrir aquilo que sabíamos na época da ditadura, que a política não se faz apenas no âmbito do Estado, mas também na agregação paciente de força visando a construção de um projeto futuro de sociedade.

Afropress – Quando o livro será lançado? Onde? Qual a tiragem?

Rosângela/Walter Praxedes – O livro faz parte de uma coleção das Edições Loyola destinada à formação de educadores, que é coordenada pelo grande educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares, mas esperamos que o livro chegue ao maior número possível de educadores e ativistas da luta antirracista no Brasil.

Afropress – Falem um pouco da trajetória pessoal e profissional?

Rosângela/Walter Praxedes – Nós estamos estudando, trabalhando e compartilhando a vida há quase trinta anos. Quando iniciamos o curso de Ciências Sociais na USP visitávamos com freqüência o apartamento do querido e saudoso professor Clóvis Moura, que ficava na Avenida Angélica, e com ele aprendemos que a luta contra o racismo no Brasil passa também por esta dimensão da pesquisa acadêmica.

Em Maringá estamos há 22 anos e participamos da fundação de um cursinho pré vestibular articulado pelo movimento negro. Na Universidade Estadual de Maringá trabalhamos na realização de eventos com a participação de estudiosos e ativistas de todo o Brasil, como o prof. Kabengele Munanga, o jornalista Dojival Vieira, a ativista e filósofa Sueli Carneiro e tantos outros, além da organização de grupos de estudo, publicações e cursos sobre as relações raciais no Brasil. Este Educando contra o preconceito e a discriminação racial é uma síntese deste nosso trabalho simultaneamente acadêmico e político contra o racismo, a favor das ações afirmativas e da igualdade.

Afropress – Façam as considerações que julgarem pertinentes.

Rosângela/Walter Praxedes – Nós queremos agradecer a acolhida a este nosso trabalho e parabenizar o Afropress por estes 8 anos de sua competente luta contra o racismo e em favor da abertura de novos espaços para os negros em nosso país.

Serviço:

Livro: Educando contra o Preconceito e a discriminação racial

Autores: Rosangela e Walter Praxedes

Edições Loyola, 2.014 – S. Paulo

odiario.com

  • 20/11/2013

    O Dia da Consciência Negra e a luta pela igualdade

  • ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES* E WALTER PRAXEDES**

Embora biologicamente falando não existam raças humanas, os preconceitos que incorporamos na vida social continuam a nos ensinar a julgar e a avaliar as capacidades dos indivíduos e coletividades de acordo com a raça biológica na qual os classificamos.

Na prática, sempre que associamos um comportamento social à característica biológica de um indivíduo ou grupo estamos raciocinando de forma racista. Em outras palavras, mesmo desmentidos pelas ciências, os preconceitos racistas permanecem vivos nas mentes de muitos indivíduos e coletividades, tornando-os propensos a atitudes intolerantes.

Uma vez que uma realidade natural próxima ao que é classificado como raça não existe, o termo “raça” pode ser considerado uma ficção que adquire força de realidade quando é usado para classificar os seres humanos.

A concepção de raça e de identidade negra, empregada muitas vezes pelos movimentos sociais de combate ao racismo contra os negros, realiza pelo menos dois objetivos: a) uma tentativa de construção simbólica de um sentimento de pertencimento a uma coletividade discriminada e classificada racialmente; b) a busca do fortalecimento de uma solidariedade defensiva antirracista como uma forma de resistência contra a exploração, a perda de direitos, a exclusão social e a humilhação.

Os movimentos sociais negros atuam visando à conscientização da sociedade brasileira de que os negros são tratados há cinco séculos como raça inferior e de que atualmente essa discriminação persiste, apesar do discurso oficial do Estado brasileiro, favorável ao tratamento igualitário de todos os cidadãos, e do discurso racista “à brasileira”, que nega a existência do racismo em nosso país.

É mesmo um paradoxo que uma conquista importante do conhecimento científico e da cidadania democrática como o foi a constatação da igualdade universal da espécie humana apenas com muita dificuldade seja assimilada pelos seres humanos. Por isso o Dia da Consciência Negra nasceu para nos fazer recordar a importância da igualdade entre os humanos.

* Pós-doutora em Antropologia.
** Doutor em Educação.
Autores do livro “Educando contra o preconceito e da discriminação racial”.

***
odiario.com
  • 21/03/2009

    A catarse do Dia da Consciência Negra

Walter Praxedes e Rosângela Rosa Praxedes

Catarse é uma palavra de origem grega que dá nome a um processo de libertação do que nos é estranho, daquilo que nos perturba, nos incomoda e corrompe a nossa dignidade.

Ela tem origem na medicina da Grécia Antiga e tinha o significado de purgação. O filósofo Platão escreveu que a catarse é uma maneira do ser humano se purificar do que tem de pior e recordar o que tem de melhor.

Num dia de catarse vamos fazer celebrações para persuadir os cidadãos de que existem purificações para os nossos atos injustos, por meio de sacrifícios e festas agradáveis e alegres ¿tanto para os vivos como para os mortos¿.

Não é outro o significado da Sexta-Feira Santa, que recorda a paixão de Cristo para os cristãos; ou do dia 7 de setembro, em que celebramos a construção de uma nacionalidade independente que sonha em ser livre da opressão dos colonizadores.

Na história do Brasil a escravidão foi um processo econômico e político da mesma importância da conquista do nosso território pelos colonizadores e do extermínio dos moradores originários do lugar.

A cidade de Maringá nasceu cerca de 450 anos depois do início da conquista do território pelos colonizadores portugueses, e meio século após a abolição da escravidão em nosso País.

Mas a cidade e os seus moradores não podem ser considerados inocentes em relação às conseqüências do colonialismo e da escravidão. Em poucas décadas de história da nossa cidade as populações locais originárias foram também exterminadas, depois do território ser recortado e vendido pela ganância dos comerciantes de terra.

Também não podemos ser irresponsáveis diante da situação de preconceito e discriminação racista contra os cerca de 25% da população da cidade, formada por descendentes dos escravizados que trazem na cor da sua pele um sinal que dificulta em muito conseguir trabalho na nossa cidade, resultando para os trabalhadores classificados como negros os empregos mais desprestigiados e de menor remuneração, a moradia nos bairros periféricos sem infra-estrutura adequada e uma barreira invisível para o ingresso no ensino superior, o que possibilitaria uma melhor formação educacional cidadã e profissional.

O feriado do Dia da Consciência Negra em Maringá, dia em que recordaremos o sacrifício de Zumbi dos Palmares, será um momento de catarse no nosso calendário, para refletirmos sobre todas as injustiças que os negros sofreram e sofrem em nossa cidade.

Muito mais importante do que o interesse mesquinho de alguns segmentos econômicos e políticos, será um dia para a integração de todos os cidadãos no compromisso com a construção de uma cidade hospitaleira em que todos os seus moradores são tratados como iguais e os seus visitantes como bem-vindos.

 ***
REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO E UM NOVO SENSO COMUM: O TEMPO DA ORIGEM E A DANAÇÃO DE CAM

Rosângela Rosa Praxedes e Walter Praxedes

Observamos nos últimos anos uma preocupação com a valorização e o crescimento da participação dos negros em vários setores da sociedade brasileira, tanto nos meios de comunicação quanto nos espaços político-sociais. Ainda não obtivemos uma visibilidade à altura de nossa participação no conjunto da população brasileira e da contribuição que a população negra trouxe para esta sociedade, porém, como conseqüência da resistência negra, organizada ou não, estamos assistindo a uma lenta e consistente superação das representações eurocêntricas advindas da criação de um sujeito negro colonizado.

No centro da resistência negra, ao nosso ver, combinada com a ação política, deve figurar um trabalho contínuo de criação de novas representações sobre o negro.

As representações são idéias, conceitos, concepções, valores, princípios e imagens com os quais pensamos sobre a realidade, sobre nossas condições de existência. As nossas práticas, as nossas atitudes cotidianas são orientadas pelas representações que formamos em nossas mentes sobre quem somos, o que devemos fazer e como devemos interagir com as outras pessoas.

As representações estão entre os elementos que formam a identidade de cada um, mas não são pensamentos inatos que definiriam a essência de cada ser humano, ou seja, elas são construídas relacionalmente nas trocas intersubjetivas. Não é possível viver sem representar, isto é, sem construir um conjunto de idéias em nossas mentes a respeito de tudo que se apresenta para nós.

As representações podem surgir do contexto contemporâneo, das relações sociais, manifestações culturais e nas relações econômicas em vigência, mas podem também ter uma origem histórica anterior, em sociedades anteriores, mitologias e religiões do passado que chegaram até a atualidade.

Um exemplo de representação sobre os negros, ainda vigente no nosso imaginário de origem judaico-cristã, foi assim sintetizado e analisada por Alfredo Bosi:

O TEMPO DA ORIGEM: A DANAÇÃO DE CAM

O destino do povo africano, cumprido através dos milênios, depende de um evento único, remoto mas, irreversível: a maldição de Cam, de seu filho Canaã e de todos os seus descendentes. O povo africano será negro e será escravo: eis tudo… Transcrevo, em seguida, o passo bíblico fundamental onde a lenda encontrou sua formulação canônica:

Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam é o pai de Canaã. Esses três foram os filhos de Noé e a partir deles se fez o povoamento de toda a terra.

Noé, o cultivador, começou a plantar a vinha. Bebendo vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e advertiu, fora, a seus dois irmãos. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no sobre os seus próprios ombros e, andando de costado, cobriram a nudez de seu pai; seus rostos estavam voltados para trás e eles não viram a nudez de seu pai. Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse:

– Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos.

E disse também:

– Bendito seja Iahweh, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate a Jafé. Que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja teu escravo!

(Genesis, 9, 18-27)

A narração da Escritura prossegue dando o elenco das gerações de Cam, Sem e Jafé. “Camitas” seriam os povos escuros da Etiópia, da Arábia do Sul, da Núbia, da Tripolitânia, da Somália (na verdade, os africanos do Velho Testamento) e algumas tribos que habitavam a Palestina antes que os hebreus as conquistassem. (Bosi, 1996: 257-258)

O filósofo Cornel West também interpreta a narrativa bíblica comentada por Bosi, considerando que “… dentro desta lógica, a pele negra é uma maldição divina devida ao desrespeito e à rejeição da autoridade paterna” (West citado por Giroux, 1999: 136).

Como no exemplo acima, podemos analisar as representações investigando o que elas simulam e o que dissimulam sob o manto da origem religiosa e mítica da inferiorização dos humanos considerados negros.

Pesquisar as representações é investigar como foram geradas historicamente, quais as influências que receberam de outras representações, e quais as influências que exercem sobre a maneira como vivemos e nos relacionamos uns com os outros. Podemos estudar criticamente as representações sobre o negro para entendermos como se formam, o que elas mostram, o que escondem e como influenciam as nossas ações cotidianas.

Não podemos esquecer que ao elaborarmos as nossas representações somos influenciados pela cultura da sociedade e do meio cultural específico em que vivemos, mas também construímos idéias próprias, novas, a partir da nossa imaginação e de como pensamos a nossa vivência com os outros indivíduos. As representações formam um conjunto de saberes sociais incorporados pelo sujeito em sua vivência, mas reformulados e colocados em ação através de sua prática cotidiana. Ninguém pode, portanto, se considerar inocente em relação às representações que cultiva.

Os negros estão lutando pela alteração das representações presentes na identidade nacional brasileira segundo as quais são ainda vistos como cidadãos inferiores. Precisamos continuar o trabalho de desconstrução das representações dominantes sobre o ser negro em nosso país, que quase sempre nos associam às situações hierárquicas econômicas, religiosas, culturais e estéticas herdadas de nosso passado colonial. A associação do termo negro à crise, feiúra, pobreza, ignorância e marginalidade deverá ser revertida.

Como nos demonstra o estudo de Alfredo Bosi citado acima, a crítica cultural pode dar uma grande contribuição para a superação das representações que dominam as nossas identificações e para a construção de um novo senso comum sobre os negros brasileiros.

Referências

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, UFMG/ UNESCO, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000.

Texto publicado originalmente em PRAXEDES, Rosângela R.; PRAXEDES, W. Representações sobre o negro e um novo senso comum. Revista Espaço Acadêmico. N. 32 – Janeiro de 2004. http://www.espacoacademico.com.br/032/32rwpraxedes.htm

Barack Obama, racismo e meritocracia

Walter Praxedes  e Rosângela Rosa Praxedes

O resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos merece uma análise que não embarque no otimismo ingênuo. Para início de conversa, cabe pedirmos licença para lembrarmos o óbvio: dois dos problemas mais graves da sociedade norte-americana foram a escravidão e a imposição de estereótipos negativos sobre os seres humanos classificados como negros naquele país.

Nos Estados Unidos, uma pessoa que seja imaginada como descendente de negro é considerada negra e inferior pela sociedade branca racista e isso teve conseqüências devastadoras para toda a sociedade, como também ocorreu no Brasil, apesar das diferenças entre as formas de preconceito e discriminação existentes nos dois países.

Para levarmos em consideração tais diferenças, podemos recordar a forma como o saudoso professor Oracy Nogueira diferencia em duas modalidades os pressupostos valorativos que orientam as atitudes discriminatórias, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, como podemos observar a seguir:

“Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem” (NOGUEIRA, 1979, p. 79).

No uso desta caracterização, Oracy Nogueira (1979, p.78) chega à conclusão que o preconceito e as atitudes discriminatórias, nas formas em que se apresentam no Brasil, podem ser tipificados como sendo um “preconceito de marca”, em contraposição às situações correlatas que ocorrem nos Estados Unidos às quais ele reserva a designação de “preconceito de origem”.

Pois bem, a vitória de Obama pode contribuir para manter o preconceito racial nos Estados Unidos, mas, agora, camuflado como uma forma de discriminação contra os mais vulneráveis: mulheres e homens negros marginalizados, desempregados pela crise econômica, que perderam suas casas e raízes comunitárias e junto toda a esperança. Milhões de negros estão nas prisões ou cumprindo algum tipo de pena naquele país. A partir da última eleição, os racistas brancos podem dizer com todas as letras que os negros que aceitarem as regras do jogo merecem ocupar posições importantes. Quem não tiver competência vai ser responsável pelo próprio destino porque a sociedade dá oportunidades iguais para todos. Bem, é óbvio que essa não é mais do que uma versão da velha e sempre sedutora ideologia do culto ao mérito individual.

O discurso da vitória que foi pronunciado por Obama, e que está sendo amplamente utilizado pelas elites conservadoras, reafirmou esta ideologia meritocrática de valorização do esforço e da competência. Isso quer dizer que se alguém for considerado negro nos Estados Unidos (e também no Brasil, é claro), é melhor que seja um Barack Obama ou um Pelé. O problema é que ninguém vive com dignidade sob tamanha pressão. Uma sociedade justa e decente para se viver respeita as pessoas como elas são, independentemente da cor da sua pele ou do formato do seu nariz, mas em virtude de sua dignidade inerente à condição humana. Hoje, quem não é racista concorda com tal raciocínio, mas ainda precisamos reafirmar que temos o direito de viver com dignidade mesmo que não sejamos julgados como os mais inteligentes, os mais capacitados ou mais bonitos dos seres humanos ou que sabem fazer gol de bicicleta. O ideal é vivermos bem e sermos respeitados pelos outros, mesmo não tendo nenhuma capacidade considerada extraordinária.

Uma hipótese que deriva deste raciocínio é que a vitória de Obama, que contou com o apoio do eleitorado e dos movimentos sociais negros dos Estados Unidos, pode passar a ilusão de que o sistema é justo e de que basta você trabalhar com competência que você chega “lá”. Então, podemos avaliar que do ponto de vista das pessoas que não participam da vida política em organizações, movimentos sociais e partidos políticos, que é a maioria tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a vitória de Obama pode fortalecer a ideologia individualista de culto ao mérito de que dá para superar todos os obstáculos através do esforço individual e não é necessário uma organização anti-racista.

Por outro lado, não desconsideramos que a presença de um agente político que é considerado como “negro” na presidência da maior potência militar e econômica do planeta ajuda a quebrar os preconceitos mais simplistas e ignorantes daqueles que avaliam as capacidades dos seres humanos pela cor da sua pele. Evidentemente, Barack Obama não ganhou a eleição porque é negro, da mesma forma que ninguém ganha uma maratona ou a corrida de São Silvestre porque é negro. Ganhou porque teve a capacidade política extraordinária de juntar todos os apoios necessários para a sua vitória, do mais anônimo eleitor aos donos de jornais de maior prestígio nos Estados Unidos, assessores estrategistas e patrocinadores. Infelizmente ele tem o apoio de organizações militares e empresariais imperialistas e não foi colocado lá para questionar o imperialismo norte-americano, e sim para torná-lo mais eficiente e aceitável perante o mundo.

Muitos ainda associam a esperança de mudança depositada no novo presidente norte-americano ao que ocorreu no Brasil com a vitória de Lula. Mas esta é uma correlação baseada apenas na aparência e na simbologia que envolve os dois dirigentes, em virtude de suas origens populares e também pelo fato de que ambos são lideres políticos que passam confiança para os seus apoiadores que surgem de todos os segmentos sociais. A eleição do nosso presidente foi o ponto culminante dos movimentos sociais organizados na luta contra a ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Lula é respeitado pelo eleitorado pelas suas características pessoais, mas ele representa também a força da sociedade civil organizada em instituições como associações, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, igrejas. Barack Obama se viabilizou inicialmente a partir de sua atuação comunitária, mas nos últimos anos ele se credenciou como o representante das elites econômicas e políticas prejudicadas pelo governo Bush e que precisavam de uma liderança que representasse novidade e angariasse o apoio da maioria do eleitorado para o Partido Democrata.

Conclusão

Como dizia o poeta Bertolt Brecht, triste de um povo que necessite de heróis. Em nossa opinião, não precisamos de lideranças carismáticas ultra-competentes dotadas de méritos extraordinários. Precisamos é que todas as pessoas participem em condições de igualdade da vida social, econômica, cultural e política. Se estivermos sentindo a necessidade de heróis míticos como Dom Sebastião, Homem Aranha ou Barack Obama, isso quer dizer que cada um de nós, na verdade, se sente incapaz, sem poder e sem a esperança de que pode individualmente contribuir para que a vida humana de todos seja digna de se viver. Enfim, contra as nossas ilusões messiânicas, o ideal é que todas as formas de poder sejam descentralizadas e todos participem direta ou indiretamente de sua gestão.

Referências

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.

WEST, Cornel. Questão de raça. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

Texto publicado originalmente em. PRAXEDES, W. ; PRAXEDES, Rosângela R. Barack Obama, racismo e meritocracia. Em:

http://www.espacoacademico.com.br/091/91wrpraxedes.htm

Serenidade em favor dos excluídos (Entrevista ao jornalista Dalwton Moura)

Resultado de imagem para walter Praxedes Dom Helder Camara imagens

diario do nordeste

Fortaleza/CE. Suplemento Especial: “Os Pacifistas”, 10.09.2006

Entrevista ao jornalista Dalwton Moura*

O Diário do Nordeste publica neste domingo, Dia Municipal da Paz, uma edição especial da série “Os Pacifistas”. Desta vez o enfocado é dom Hélder Câmara, o primeiro cearense a estar entre os escolhidos na coleção.

Arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder foi uma voz altiva e ativa em defesa dos excluídos, principalmente durante a ditadura militar, de 1964 a 1985.

No caderno, que estará encartado gratuitamente no jornal, os leitores poderão conhecer mais detalhadamente sua história, bem como uma entrevista exclusiva com o co-autor do livro “Dom Hélder Câmara – Entre o Poder e a Profecia”, Walter Praxedes.
Resultado de imagem para walter Praxedes Dom Helder Camara imagens
O escritor denuncia o complô do governo brasileiro, tendo como presidente Emilio Garrastazu Médici, para evitar que o religioso fosse indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Como surgiu o projeto de um livro sobre a vida de Dom Hélder Câmara?

A idéia do livro surgiu de um projeto de dissertação de mestrado, que foi concluída e aprovada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na qual busquei pesquisar a trajetória de Dom Hélder Câmara como um sacerdote envolvido com a área educacional do Ceará e do Brasil, e sua influência sobre a participação dos católicos, sacerdotes e leigos, em projetos voltados para a educação dos mais pobres. O meu orientador foi o historiador Nelson Piletti. Como tivemos acesso a fontes inéditas de pesquisa decidimos juntos ampliar  o projeto para a elaboração de uma biografia de Dom Hélder, que contextualizasse a sua trajetória religiosa e política na história da Igreja católica e da sociedade brasileira, mas que não descuidasse de sua vida pessoal e familiar, para não reduzirmos o ser humano Hélder Câmara à personagem conhecida publicamente. Desde os anos sessenta, o Nelson, que foi seminarista, tinha uma verdadeira adoração pela figura de Dom Hélder. Como nasci em 1965, só conheci a trajetória de Dom Hélder nos anos oitenta. Como fiquei fascinado por sua obra, tentei realizar um trabalho científico de recuperação da memória de sua vida para as gerações futuras. No final também me envolvi emocionalmente com o trabalho de resgate histórico da vida de Dom Hélder, que se tornou o trabalho intelectual mais gratificante que realizei na minha vida.

O livro “Entre o Poder e a Profecia” surpreendeu ao revelar o início de militância de Dom Hélder entre os integralistas, nos anos 30. Como se deu essa aproximação?

Para começar, gostaria de esclarecer a escolha do título do livro, “Dom Hélder Câmara – entre o poder e a profecia”, que só apareceu no final do trabalho, quando já tínhamos uma idéia de conjunto sobre a trajetória religiosa e política de Dom Hélder. Quem ler o livro vai perceber que durante toda a sua vida de sacerdote, Hélder Câmara manifestou uma vocação para o profetismo. Mas o profetismo é fundamentalmente a atitude de um indivíduo independente que quer propagar uma verdade que acredita revelada por Deus, para ajudar na salvação dos fiéis e na melhoria de sua condição de vida. A profecia deve ser realizada de  forma independente, sem apoio de qualquer instituição religiosa ou estatal, como fizeram os profetas do Antigo Testamento. No entanto, quer como seminarista, quer como jovem padre ou como bispo,  Hélder Câmara jamais optou pela profecia de forma incondicional e independente, sempre evitou desobedecer aos seus superiores na hierarquia da Igreja, o poder eclesiástico, e boa parte de sua vida ele manteve uma forte atitude de colaboração com os governos e com os donos do poder econômico. Em resumo, no nosso ponto de vista, Dom Hélder viveu sempre no meio caminho entre o poder e a profecia, jamais optando incondicionalmente por um ou por outro destes pólos. Mas esta é uma interpretação sociológica e política de sua trajetória. Reconheço que a dimensão espiritual e religiosa não está contemplada nesta interpretação. Quando era jovem Hélder Câmara teve uma formação doutrinária muito conservadora, anticomunista, antiliberal, antidemocrática. Nos anos trinta muitos jovens talentosos e honestos acreditavam que o caminho para solucionar os problemas do país passava por um regime de governo totalitário, como o de Mussolini, na Itália. Entre estes estavam os amigos mais próximos do jovem Hélder e ele próprio. Por isso ele optou pela militância política fascista, que no Brasil era representada pela Ação Integralista Brasileira (AIB), comandada por Plínio Salgado, de quem Hélder se tornou amigo.

E de que modo o jovem hélder foi se afastando dos ideais integralistas, em busca da direção mais humanista que acabaria por consagrá-lo?

Foi um longo e demorado percurso de conversão para as idéias democráticas e humanistas. O radicalismo fascista dos integralistas tornou-os inconvenientes até para um regime ditatorial como o de Getúlio Vargas que colocou a AIB na ilegalidade. A Igreja Católica tinha um pacto informal de colaboração com o Governo de Vargas e isso fez com que o Cardeal Sebastião Leme, do Rio de Janeiro,  na época a maior autoridade eclesiástica no país, ordenasse que o jovem Padre hélder Câmara deveria se afastar da Ação Integralista Brasileira. Mas houve também uma influência intelectual muito importante sobre o padre Hélder que foi a leitura da obra Humanismo Integral de Jacques Maritain, e a convivência com Alceu Amoroso Lima, no Rio de Janeiro, que também passava por uma transição intelectual para um pensamento democrático.

De que modo a formação clerical de Dom hélder o influenciou, de que modo a própria Igreja foi influenciada por ele?

A formação católica conservadora e autoritária que Hélder recebeu no Seminário da Prainha, em Fortaleza, o influenciou profundamente até o fim dos anos trinta, quando então ele começa a desenvolver concepções baseadas na tolerância e na convivência democrática. Mas até meados dos anos quarenta o padre Hélder ainda não havia se tornado um sacerdote com propostas inovadoras e divergentes em relação às idéias da cúpula conservadora da Igreja. Foi a partir do seu envolvimento nos movimentos de Ação Católica que ele teve que enfrentar questões políticas e organizacionais práticas, que envolviam credenciar a Igreja católica para manter e ampliar a sua influência em um país que estava se urbanizando rapidamente, com grandes movimentos migratórios do campo para as cidades, que estava se industrializando, e que após o fim da ditadura de Getúlio Vargas em 1945, estava também democratizando a sua vida política, com uma influência crescente dos movimentos sociais no campo e na cidade e do Partido Comunista. No campo religioso a Igreja católica começava a se deparar com a expansão das denominações protestantes. Então o Padre Hélder Câmara propôs e organizou uma vigorosa participação do laicato católico na vida política do país, através dos Movimentos de Ação Católica, particularmente os voltados para a juventude, e agregou os bispos brasileiros na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que ele funda e comanda como Secretário Geral até 1964, e que viria a se tornar a instituição que mais influência teve sobre a atualização da inserção política e social da Igreja católica no Brasil nos últimos 50 anos. Só até este momento da fundação da CNBB, em 1952, já bastaria para que fosse marcante a sua influência sobre o catolicismo e a sociedade brasileira. Mas ele ainda conseguiu difundir entre os católicos a idéia de uma missão temporal, de  responsabilidade de todos com o cuidado com as condições de vida, com a integridade dos mais pobres, ao invés da preocupação exclusiva com a salvação da alma dos fiéis, que caracterizava o ideário católico até então. Mas Dom Hélder na década de 1950 ainda estava só começando… O melhor de sua atuação ainda estava por vir nos seus anos de maturidade.

O papel de Dom Hélder na resistência às agruras do regime militar e na denúncia das arbitrariedades do regime é sempre ressaltado. Por que o nome de Dom Hélder foi especialmente associado a essa luta?

Porque ele era uma autoridade eclesiástica institucional, como arcebispo e exercia uma autoridade carismática como pessoa. Na década de 1960 ele era reconhecido na prática como a principal liderança política da Igreja Católica no Brasil, mesmo sem ser Cardeal, por pessoas de dentro e de fora da Igreja, pelos movimentos sociais de oposição, pelos militares que comandavam o governo e pelas elites econômicas. Desde o Concílio Vaticano II ele conquistou uma projeção na Igreja Católica internacional, entre sacerdotes, teólogos e leigos. Mesmo com toda a responsabilidade e até o cerceamento de sua liberdade para manifestar livremente suas opiniões que este reconhecimento público implicava, ele teve a coragem de dizer “não” aos poderosos, em denunciar publicamente que o Regime Militar promovia torturas e o extermínio físico de membros da oposição ao governo. Sua atuação foi de fato heróica e destemida, um exemplo extraordinário de um homem indignado com as circunstâncias em que viviam os seus semelhantes em nosso pais.

Que conseqüências essa atitude custou a Dom Hélder, dentro e fora da comunidade religiosa?

Em primeiro lugar ele se tornou esta figura emblemática inesquecível pelo seu exemplo de vida. Publicamos a sua biografia em agosto de 1997 e desde então, em nove anos de história deste livro, nunca houve um mês sequer que o livro deixou de ser procurado nas livrarias até ficar com a sua edição esgotada na editora nesse último mês de julho. A cineasta Erika Bauer declarou que após ler a biografia que escrevemos resolveu fazer esse documentário maravilhoso que atualmente está em cartaz sobre Dom Hélder. Freqüentemente recebo mensagens solicitando informações sobre como pesquisar a trajetória de Dom Hélder. Inúmeros outros pesquisadores escreveram estudos, ensaios, artigos científicos e o interesse pela sua obra é crescente entre pesquisadores dentro e fora do país.

O silenciamento que Dom Hélder sofreu por anos, por parte do Regime Militar brasileiro, que promoveu a censura aos meios de comunicação; o fato dele ter sido preterido várias vezes para ganhar o Prêmio Nobel da Paz e até mesmo o silenciamento que o Vaticano impôs, restringindo suas viagens internacionais e suas manifestações públicas,  considero que são secundários diante da grandeza de sua obra e do seu legado. Ele não deixou de fazer o que acreditava que fosse a sua missão enquanto teve condições para isso. Avalio que mesmo que tivesse sido mais difundida a sua influência religiosa e política no Brasil, as forças conservadoras que comandavam o governo no país e a reação conservadora que se deu no Pontificado de João Paulo II não teriam sido menos perniciosas para a vida social, política e religiosa. Então ele fez o que pode e não fez mais porque as circunstâncias em que vivemos também restringem as influências das nossas ações. A despeito de tudo isso ele deixou um legado e por isso estamos conversando sobre sua obra neste momento.

A comunidade internacional reagiu de que modo às denúncias feitas por Dom Hélder, quanto às violações dos direitos humanos pelo regime militar no Brasil?

Não podemos esquecer  que as atitudes autoritárias e de intolerância do comando do IV Exército em Recife fez com que ocorresse uma ruptura entre Dom Hélder e o Regime Militar. Logo após o Golpe Militar, em março d 1964, Dom Hélder manteve um extraordinário relacionamento com os presidentes Castelo Branco e depois com Costa e Silva e vários oficiais bem graduados. A partir de 1966, a defesa que Dom Hélder fazia dos presos políticos, inclusive visitando vários na cadeia e tentando libertá-los, tornou-se inaceitável para os militares de Pernambuco. Não podendo atingir Dom Hélder diretamente, os seus inimigos atingiram um dos seus principais colaboradores, o padre Antonio Henrique, que foi assassinado em 1969. A partir daí, em suas conferências no estrangeiro, Dom Hélder passou a denunciar os abusos contra os direitos humanos praticados pelo regime ditatorial. Dom Hélder descrevia publicamente os casos de tortura que tomava conhecimento, e por isso tornou-se um forte candidato a receber o Prêmio Nobel da Paz, como grande defensor dos direitos humanos e da paz mundial.

A pesquisa documental empreendida para o livro revela que olhar do regime militar sobre Dom Hélder? Nas ações do religioso, o que era considerado particularmente perigoso aos interesses do governo?

Combinado com o fato de que Dom Hélder foi considerado adversário do Regime Militar por ter sido o grande animador do engajamento dos católicos na busca de soluções para os problemas sociais e políticos do país, que envolveu iniciativas como o Movimento de Educação de Base, a atuação importante da Juventude Universitária Católica e depois do movimento Ação Popular, o aspecto central desta questão, ao meu ver, se refere à falta de legitimidade política do Regime Militar, e o receio de que a inserção social de Dom Hélder entre as classes dominantes, seu prestígio internacional e a sua influência sobre os movimentos sociais comandados pelo laicato católico o credenciassem como uma alternativa civil para comandar um governo de transição para a democracia, colocando fim ao comando militar do Estado brasileiro. Daí a necessidade de neutralizar sua influência, silenciando-o e isolando-o politicamente dos movimentos sociais, muitos dos quais colocados na ilegalidade e sofrendo forte perseguição política.

O livro também revela informações inéditas sobre as relações entre Igreja e governo, ao longo da ditadura militar. Poderia fazer um resumo dessas revelações? Comenta-se uma ingerência dos militares para evitar que o religioso fosse laureado com o Nobel da Paz. É fato? Há planos para novas edições do livro ou continuidade da pesquisa?

Como demonstramos no livro apresentando farta documentação que não foi contestada pelos setores envolvidos, a relação da instituição Igreja Católica e dos seus membros com o Regime Militar que comandava o país não pode ser simplesmente classificada como totalmente favorável ou totalmente contrária e oposicionista. A Igreja Católica não é uma instituição homogênea e fechada como podemos pensar a primeira vista. É uma instituição que possui ramificações em todos os setores das sociedades em que está presente. Atua junto às diferentes classes sociais, grupos étnicos e raciais, gêneros etc… e procura, de alguma forma, atender as demandas dos diferentes segmentos.

É também uma instituição preocupada com a sua permanência no tempo. Apoiar o Regime Militar no Brasil foi o meio utilizado pelos setores mais conservadores da hierarquia católica para que a instituição não rompesse sua relação com os poderes estabelecidos. Por outro lado, muitos leigos e sacerdotes foram severamente punidos pelo regime militar porque não adotaram o posicionamento da cúpula da instituição.

Duas décadas depois do fim do Regime Militar, avalio que esta atuação em duas frentes, se assim podemos dizer, mesmo que na época isso não tenha sido fruto de um planejamento consciente das lideranças católicas, foi uma maneira de garantir a influência católica no país, ainda mais porque muitos leigos e sacerdotes católicos militavam em favor dos direitos humanos, denunciavam as torturas praticadas pelo regime e eram favoráveis a uma maior distribuição da riqueza.

Porém, sem os hierarcas conservadores, ou seja, apenas com os membros politicamente oposicionistas, a Igreja ficaria sem interlocutores na relação com o Estado. Recordemos que durante o período anterior, 1945-1964, os governos populistas dialogavam mais com o chamado clero progressista liderado por Dom Hélder Câmara e pela CNBB. O setor da Igreja que se relacionava melhor com os grandes empresários e com os políticos mais conservadores estava melhor posicionados para negociar a influência da Igreja católica no país. Mas a Igreja como um todo também era formada pelos setores participativos que estavam presentes no Movimento de Educação de Base e que depois formariam as Comunidades Eclesiais de Base.

Na pesquisa para a elaboração do livro tivemos acesso a uma documentação até então inédita que comprovou o envolvimento do governo brasileiro em gestões junto ao Comitê que atribui o Prêmio Nobel na Noruega para evitar que Dom Hélder fosse agraciado e amplificasse o prestígio alcançado o seu discurso em favor dos direitos humanos, da democracia e contra o terrorismo de Estado que era praticado no Brasil pelos militares que comandavam o governo.

Quanto à reedição do livro, estamos preparando um capítulo final ou um posfácio para sair em uma nova edição ainda sem data prevista de lançamento. Mas os entendimentos com uma nova editora estão avançados. Desde  o final de julho deste ano o livro não está mais disponível nas livrarias, nem por encomenda, por estar esgotado na editora Ática. Isso é uma pena porque, ao meu ver, o público que freqüenta as livrarias deve ter acesso à biografia de uma personalidade insubstituível e rara como Dom Hélder.

Quais as principais características pessoais de Dom Hélder que se sobressaíram nos momentos de maior tensão entre sua atuação e o governo?

Sem dúvida a firmeza dos seus princípios combinada com uma atitude totalmente aberta para o diálogo. Dom Hélder sabia sempre onde pretendia chegar com a sua voz e com o testemunho da sua vida, neste sentido ele pode ser considerado um grande estrategista político, mas ele usava a sua capacidade pessoal extraordinária para defender os posicionamentos políticos mais democráticos e socialmente generosos. Mas não podemos esquecer o seu incansável e esperançoso esforço como religioso, para reformar a Igreja de Cristo, livrando-a dos compromissos com os poderosos e aproximando-a cada vez mais das necessidades das camadas populares.

Há, hoje em dia, uma revisão na historiografia referente ao período da ditadura militar brasileira? Algum dado novo sobre a ação de religiosos como Dom Hélder?

No momento várias pesquisas estão em andamento. Mas inúmeros arquivos do Regime Militar, da Igreja Católica no Brasil e do Vaticano ainda não são acessíveis aos pesquisadores e ao público. Nos próximos anos, talvez décadas, provavelmente serão divulgadas novas informações que podem levar a novas interpretações de um período tão conturbado da história do Brasil e da Igreja Católica.

Para concluir: como o senhor avalia o trabalho de Dom Hélder pela paz e pela não-violência? O que o exemplo dele pode representar para a sociedade de hoje?

Como exemplo deixado por Dom Hélder, esta a sua capacidade de dialogar e conviver com pessoas e grupos políticos que o consideravam um adversário político. Também a sua firmeza para denunciar os desmandos das corporações de empresas multinacionais, e para propor mudanças profundas na estrutura da Igreja Católica. Ao mesmo tempo ele deixou o exemplo de sua serenidade na busca do entendimento através de uma atuação política pacífica. Hoje quando propomos o respeito às diferenças e a tolerância nas relações sociais não estamos apresentando nenhuma novidade em relação ao discurso e à prática de  Dom Hélder nas décadas de 1960 e 1970.  Ele soube preservar e nos transmitir estes valores que hoje animam os espíritos mais generosos e comprometidos com a busca de uma sociedade justa, democrática e igualitária.

001

A burocratização do professor universitário e outros ensaios sobre a universidade

A burocratização do professor universitário

Walter Praxedes

Em uma carta ao professor Fernando de Azevedo, datada de 13 de novembro de 1935, o sociólogo Gilberto Freyre confessa ao amigo que jamais assumiria “deveres definitivos de professor” e se explica: “tenho medo de me burocratizar – e a burocracia pedagógica é a mais esterilizante”.

Qualquer professor universitário sabe que suas obrigações rotineiras o deixam muito longe de realizar o seu projeto de vida como alguém voltado para a busca do conhecimento e para a ação educativa.

Membro de comissões de inquéritos administrativos, autor de inúmeros e inúteis relatórios e participante de reuniões intermináveis, o professor universitário tem seu tempo de pesquisa e de ensino roubado. Some-se a tudo isso o tempo dedicado às articulações políticas em defesa ou ataque à sanha competitiva dos pares e encontraremos um pseudo-educador que precariamente pesquisa, escreve e leciona.

Como já advertia Florestan Fernandes nos anos setenta, o professor universitário corre o risco de deixar de ser um investigador, um cientista, para tornar-se um mero funcionário com horário marcado e ponto para assinar, deixando, assim, embaixo do tapete do cumprimento das normas a sua covardia, mediocridade e falta de criatividade.

Sufocado pela burocracia e corrompido pela competição por cargos e prestígio institucional, resta ao professor universitário tornar-se repetidor mecânico daqueles pensadores que conseguiram fazer de seus projetos de vida o oposto do que nós estamos fazendo com o nosso.

A sentença para a nossa decadência já foi proclamada por Hegel: “Naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda”.

A competição meritocrática da vida universitária pode até produzir gênios, mas todos nós sabemos como produz também neuróticos e esquizofrênicos. A concentração obsessiva facilmente se transforma em introversão narcisista. O medo de ousar na busca do novo tem nos tornado a cada dia mais conformistas.

Acredito que temos que pensar em novas possibilidades de reeducação daqueles que têm como missão a educação das novas gerações. Venho tentando imaginar alternativas que apontem para a nossa reeducação. Ainda não cheguei a nenhuma conclusão que possa ser apresentada para o debate, mas não tenho dúvidas de que a responsabilidade pela passividade, evasão ou oportunismo e falta de compromisso com o conhecimento por parte de muitos dos nossos alunos pode ser atribuída aos exemplos que lhes apresentamos.

***

Entrevista ao jornalista Bruno Franco, Jornal da Universidade Federal do Rio de Janeiro  – UFRJ, em 27 de outubro de 2010.

Bruno Franco: Em seu artigo A burocratização do professor universitário, o senhor critica o excesso de obrigações rotineiras que inviabilizariam o projeto de vida de professores voltados à ação educativa e à produção de conhecimento. Quais seriam essas obrigações?

W.P. Os professores e pesquisadores ingressaram na carreira universitária para construir conhecimento, formar novos pesquisadores e profissionais, estabelecer diálogo e parcerias com os segmentos externos à universidade através da extensão. Todas as atividades que subtraem o tempo e a energia que os professores dedicam a estas atividades deveriam ser minimizadas ou eliminadas. Alguns exemplos: preencher os inúmeros relatórios desnecessários que jamais serão lidos ou que só servem para o controle e a vigilância do trabalho intelectual por parte das instituições; participar de comissões de sindicância com reuniões puramente formais e inúteis. Indicado pelo meu departamento, há alguns anos participei de uma sindicância que durou um semestre, porque foi feita uma denúncia de que havia uma carcaça de cpu com o tombo da universidade na casa de um aluno. O aluno ganhara a carcaça já descartada no ferro velho da universidade. Foi necessário o trabalho de 4 professores, 2 servidores e um representante dos alunos para a coleta de dezenas de horas de depoimentos, até a conclusão de que o aluno acusado e que fora expulso da universidade era inocente. Mas existem muitas atividades administrativas necessárias e relevantes que funcionam na prática como subterfúgios quando os docentes ficam desmotivados para o ensino e a pesquisa exatamente porque aparentam ser imprescindíveis.. Cada instituição tem o seu histórico de atividades que jamais deveriam justificar um professor ausentar-se da sala de aula, do seu laboratório, do atendimento aos alunos ou mesmo de suas atividades de lazer fora do horário de trabalho.

Bruno Franco: A institucionalização da competitividade entre professores, e as instituições às quais pertencem, gera efeitos perniciosos para o ensino e a pesquisa no país?

W.P. Escrevi em um artigo que o resultado da concorrência no mercado acadêmico combina uma precária satisfação com a própria obra com o ressentimento em relação à obra que não realizamos, mas que acena da janela do currículo Lattes de um concorrente real ou imaginário. A competição pode motivar alguns espíritos à busca de um melhor desempenho, mas o seu efeito colateral é a desagregação dos grupos de pesquisa, departamentos e de toda a universidade. Encarar os nossos colegas e alunos como adversários e competidores por uma posição mais prestigiosa, por bolsas de produtividade e cargos leva à destruição da solidariedade necessária para a construção de conhecimento. Melhor seria se aprendêssemos a trabalhar coletivamente, assumindo as limitações individuais e a importância do diálogo para superá-las.

Bruno Franco: O modelo atual de avaliação de produtividade acadêmica prioriza a ampla divulgação em conferências e revistas, sobretudo estrangeiras. Em que medida essa orientação prejudica outras atividades acadêmicas como o ensino, o acompanhamento acadêmico dos estudantes e as atividades de extensão? Seria necessária uma readaptação do modelo, de forma a valorizar mais essas atividades acadêmicas que vêm sendo depreciadas?

W.P. A produção científica universitária é resultado da obediência, convicta ou a contragosto, das normas vigentes nos órgãos oficiais de financiamento à pesquisa, comitês editoriais das revistas científicas e associações acadêmicas profissionais, que nas palavras de Edward Said, no livro Representações do intelectual, transformam os professores “em técnicos de sala, altaneiros e impossíveis de compreender, contratados por comissões, ansiosos para agradar a vários patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os não-especialistas”.

Muitos excelentes professores não são considerados “pesquisadores”. Professores que contribuem para a formação intelectual e exercem influência marcante sobre a identidade dos seus alunos não necessariamente se dedicam ao que é oficialmente denominado como “pesquisa científica”.  O poder dos pesquisadores com alta produtividade dentro do mercado acadêmico, impõe como critério de avaliação da competência dos professores a publicação de artigos em veículos considerados prestigiosos, nacionais e principalmente internacionais. Esse critério leva à desvalorização e até à humilhação de vários educadores extraordinários, levando-os algumas vezes ao desespero, à depressão e ao absenteísmo. Na minha instituição a publicação de um artigo científico em veículo indexado nacional agrega 200 pontos ao relatório bianual de atividades de um professor, o mesmo que lecionar 400 horas de aulas, ou aproximadamente 6 disciplinas de 68 horas cada, com a participação de centenas de acadêmicos, aos quais lecionamos, orientamos, avaliamos e fazemos sugestões às suas produções e assim por diante. Esta é uma distorção que leva nitidamente à desvalorização do ensino.

É mais útil para o país que um pesquisador produza numerosos artigos ou se concentre em produzir uma ou poucas obras, que necessitem de um maior tempo de maturação, mas mudem o estado-da-arte na sua área de conhecimento científico?

W.P. A pergunta parte de um paradoxo que não precisa ocorrer na prática. Muitos pesquisadores são ótimos elaboradores de artigos para jornais e revistas ou papers para apresentação em congressos. Outros trabalham vários anos na escrita de uma obra mais aprofundada e extensa.  Todas as modalidades de trabalho acadêmicos são válidas, sejam elas dissertações, teses, monografias, artigos, livros, ensaios, romances, poemas, partituras, etc, e nenhum modelo de trabalho intelectual pode ser erigido como o único correto e prestigioso, levando à desvalorização das demais formas de produção acadêmica, como ocorre atualmente, quando um artigo publicado em tal revista internacional se transforma no critério de relevância de uma produção, desqualificando as demais.

Há um desequilíbrio entre a produção de pesquisas voltadas ao mercado e pesquisas que não tragam grandes retornos econômicos? É natural e desejável que isso ocorra?

W.P. Esse desequilíbrio é gerado pelo controle que as organizações empresariais exercem sobre a atividade de pesquisa, e não propriamente pela produção de um conhecimento que possa ser utilizado no mercado (que é uma forma de sociabilidade historicamente vigente nas sociedades modernas). A ciência é uma forma de produção de conhecimento internacional. A maior parcela das pesquisas científicas realizadas no mundo ocorre em laboratórios e fundações controladas por empresas transnacionais localizadas nos países mais ricos do hemisfério norte. O cientista se transformou em mais um trabalhador alienado, para usarmos uma expressão clássica da sociologia do trabalho. Aproximadamente a metade das investigações tem fins militares. As pesquisas científicas realizadas nos laboratórios das empresas multinacionais e agências da indústria bélica transformam a atividade de pesquisa voltada para melhorar as condições de vida no planeta em atividades marginais e pouco influentes na vida social. É nesse contexto científico internacional que devemos entender a relevância de construirmos na universidade brasileira aqueles conhecimentos que sirvam de contraponto e resistência à produção científica dominante, cujos fins estratégicos são a dominação política e a lucratividade. Para isso, ao invés de nos destruirmos mutuamente através da competição cotidiana por prestígio, cargos e recursos, deveríamos criar e fortalecer os grupos de pesquisa e demais coletivos e associações universitárias realmente interessados na construção de novos conhecimentos e não na ocupação das posições de privilégio nas hierarquias sociais.

***

Sobre ensino superior, favor e compadrioWalter Praxedes

O ensino superior brasileiro atual, nas modalidades pública e privada, se estrutura através de duas formas de sociabilidade distintas, muito embora complementares e quase nunca excludentes uma em relação à outra.

Na universidade pública o que solda os relacionamentos entre docentes, servidores e alunos, muito mais profundamente do que a formalidade das regras institucionais, é a relação de troca de favor. O favor gera a dependência da pessoa, que passa a ter suas atitudes toleradas como exceções à  regra que atendem ao interesse mútuo e se completa com a cumplicidade entre os agentes. Na universidade pública o favor está presente em todas as instâncias, mesmo que combinado com o mérito acadêmico. É o “toma-lá-dá-cá” do cotidiano, quase sempre disfarçado e, de preferência, nunca explícito. É assim que se criam as identidades dos grupos de pressão e de interesse que tornam privado o que apenas formalmente é público. Alguém se recorda de uma atividade política ou acadêmica relevante que tenha ocorrido no interior das nossas universidades sem resultar do compadrio, do  conluio, em suma, da troca de favor?

Max Weber, em sua conferência “A ciência como vocação”, proferida no já distante ano de 1918, alertava para o fato de que “nenhum professor universitário gosta que lhe recordem as discussões sobre nomeação, pois raramente são agradáveis.”

A troca de favor é um traço característico da sociabilidade entre os brasileiros, como nos ensina Roberto Schwarz no descortinador ensaio “As idéias fora do lugar”, que serviu para lembrar-nos  de que “…com mil formas e nomes, o favor afetou no conjunto a existência nacional… Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção européia, não devia nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade e o funcionário para o seu posto.”

O ensaísta se refere ao nosso século XIX, mas alguém pode se levantar para dizer que a interpretação acima não se refere à docência universitária na atualidade, tanto no ensino público quanto no privado?

As idéias continuam fora do lugar. Enquanto abraçamos as idéias que propõem as formas mais generosas de sociabilidade, continuamos com a prática do “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Cabe aqui recordar ao leitor um editorial do jornal Folha de São Paulo (13/10/1997): “Sabe-se que, em alguns cursos, muitas defesas de tese são rituais meramente formais, viciados por práticas de favores, compadrio e corporativismo. Hoje, a composição da banca de examinadores é uma atribuição do orientador, que escolhe aqueles que deverão julgar seu orientado. Trabalhos acadêmicos, que deveriam ser apreciados segundo critérios de impessoalidade e mérito, podem continuar subordinados a interesses de grupos e panelas”.

É preciso um parágrafo para lembrar que no ensino privado as indicações, imprescindíveis para o exercício da profissão, e os conluios internos devem estar submetidos ao resultado do caixa. Quem ingressa no ensino privado, como aluno, professor ou empresário, sabe que está entrando numa relação de compra e venda de serviços educacionais. Esta relação de troca mercantil de equivalentes é que torna possível a atividade de ensino no seu interior.

Levando-se em consideração que a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada e a remuneração objetiva não estão entre as opções realmente existentes, o que é melhor, troca de favores ou de equivalentes monetários?

Trocar favor pode parecer uma opção mais atraente, ainda mais porque é uma forma de sociabilidade que está presente no nosso inconsciente colonial. As relações mercantis, como nos ensina Marx, transformam os relacionamentos humanos em simples troca de mercadorias.

Entre o céu da proteção do grupo e o inferno da competição do mercado pode haver muito mais do que vã sociologia. Pode haver a respeitabilidade apenas aparente daquele que faz parte do grupo dos escolhidos para ingressar na universidade bem pouco pública; ou a alegria passageira daquele que se entrega ao canto das sereias do sucesso no mercado educacional. Muito melhor seria a superação de ambas as formas de sociabilidade, ou pelo menos da hipocrisia que nos faz agarrar a uma ou à outra como tábua de salvação e única verdade.

Parafraseando André Gide, resta desculpar-me reconhecendo que tudo isso já foi dito, mas, como ninguém escuta, é preciso repetir sempre.

A solidão do professor universitário

Freqüentemente caímos no engano de debater a estrutura da universidade brasileira como uma construção sem construtor, como um aparelho inumano que corrompe os agentes que estão no seu interior.

Muito mais proveitoso para a análise seria considerar que os nossos atos e as relações que estabelecemos no mundo acadêmico se objetivam em estruturas cujas finalidades fogem ao controle dos seus autores. A matriz dessas estruturas monstruosas que recebem o nome de universidades está entre os próprios professores universitários e suas incríveis relações sociais com os demais servidores, alunos e com a comunidade externa. Acho que não devemos nos eximir de nossas responsabilidades pela criação dessas estruturas coercitivas e corrompidas culpando apenas os governos e o Banco Mundial.

Em sua experiência cotidiana, a conduta desse ser social, o professor universitário, é a de alguém que pesquisa e profere aulas, orienta os novos pesquisadores e participa da gestão universitária para ganhar a vida e alcançar a glória, mesmo quando edulcora sua posição na divisão do trabalho com uma representação revolucionária sobre os próprios atos.

Talvez um pouco antiga, uma reflexão de Mario Vargas Llosa sobre a nossa hipocrisia parece-me a cada dia mais atual:

“Embora seja extraordinário que esteja inscrito num partido revolucionário e cumpra com as tarefas sacrificadas da militância, se autodefina como marxista e sempre proclame sua convicção de que o imperialismo norte-americano – o Pentágono, os monopólios, a ofensiva cultural de Washington – é a fonte de nosso subdesenvolvimento… é um candidato permanente às bolsas das fundações Guggenheim e Rockefeller (que quase sempre consegue)… Quem é ele? O intelectual progressista”. [1]

Podemos até imaginar que a nossa atividade é revolucionária. Efetivamente, porém, qualificamos a força de trabalho que na melhor das hipóteses irá alienar-se ao capital e, na pior, engrossará o exército de desempregados.

As conseqüências das nossas ações educativas são imprevisíveis e quase sempre não coincidem com nossas intenções. Ao aluno que ministro aulas de sociologia marxiana no curso de Direito está à espera um posto de delegado, e quero crer que não contribuo para a formação de futuros torturadores.

Acho que precisamos reconhecer que a verdade da nossa práxis imaginária está na práxis real. Não é por que se arroga o monopólio do saber sobre a realidade natural e social  que o professor universitário deva deixar de ser estudado e interpretado como um burocrata típico que difunde os seus interesses específicos como se fossem universais, escondendo os bastidores de um cotidiano marcado pelas disputas mais mesquinhas e desleais.

Competindo com os próprios pares e amigos, como um político hábil, o professor universitário é aquele que consegue conversar horas a fio, até com quem possui intimidade, sem deixar escapar suas reais intenções, suas estratégias para publicar, conseguir uma bolsa de estudos ou um convite para viajar ao exterior.

Pode até soar antipático, mas vou recordar uma análise cortante do professor Milton Santos, para quem, no Brasil,  “…a vida intelectual ainda está organizada em torno de clubes, de clãs e do enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as noites em reuniões sociais com os colegas que mandam, do que “queimar as pestanas”, como antigamente se dizia, em frente aos livros”. [2]

A concorrência leva-o a se isolar em seu labor intelectual. Solitário e desprezado, muitas vezes o caminho que encontra para conviver com os colegas, também solitários e a quem também despreza, é se conflitando. Competir e conflitar é uma forma de convivência que pode até ser tensa, mas satisfaz a necessidade de presença do outro. Por isso construímos verdadeiros infernos departamentais, sem os quais muitos de nós não conseguem viver.

Não quero ficar me escondendo atrás das citações, outro costume nosso bem típico, mas não consigo deixar de concluir com um trecho de uma carta de Martin Heidegger para Hannah Arendt, que expressa a solidão característica da nossa condição, e que tem levado muitos de nós ao desespero, à depressão, ao vício e até ao suicídio:

“Se em geral me retraio há um longo tempo, isso se dá porque me deparei em todo o meu trabalho com uma falta de compreensão aflitiva e não pude ter mais do que umas poucas experiências pessoais belas em minha atividade docente. Já perdi aliás há muito tempo o costume de esperar dos assim chamados alunos um agradecimento qualquer ou mesmo uma meditação sincera.” [3]

 

____________

P.S.: Agradeço os comentários e sugestões dos professores Roberto Romano e Paulo Roberto de Almeida ao meu artigo Ensino superior, favor e compadrio, publicado no número anterior da nossa revista. É um alento saber que os dois reconhecem que a vida universitária brasileira entrou num descaminho que quase sempre encobrimos para que possamos reproduzir o existente sem culpa.

[1] LLOSA, Mário Vargas. “O intelectual barato”. In: LLOSA, M.V. Contra vento e maré. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1985.

[2] SANTOS, Milton. “A era da inteligência baseada na máquina”. In: TRINDADE, Azoilda L. (org.) Multiculturalismo – mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.

[3] LUDZ, Úrsula (org.). Hannah Arendt – Martin Heidegger: Correspondência. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2001.