Dom Helder Camara, 100 anos

Walter Praxedes

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Na noite de quarta-feira, 28 de janeiro de 2009, o Instituto Maximiano Campos, a Livraria Saraiva e a Editora Contexto abriram, em Pernambuco, as festividades do centenário de Dom Helder Camara, com o lançamento do livro, Dom Helder Camara. O Profeta da Paz, de Nelson Piletti e Walter Praxedes. Além de Antônio Campos e Walter Praxedes, compunha a mesa Zezita [Maria José Duperron Cavalcanti], a secretária de Dom Helder, testemunho vivo do ‘Santo Rebelde’ com quem conviveu, servindo, durante 35 anos.

Ao completar o centenário do nascimento de Dom Helder Camara, ocorrido em 7 de fevereiro de 1909, faz-se oportuno e justo recordar alguns momentos marcantes de sua trajetória e o testemunho de sua densa religiosidade e do seu compromisso com os excluídos.

Nascido em Fortaleza, Ceará, no seio de uma influente família de jornalistas, advogados, políticos e professoras, e na qual faltava um padre para confirmar a tradição das famílias ilustres do início do século, o jovem Helder Pessoa Camara foi ordenado sacerdote em 1931, aos “22 anos e meio”. Desde o início, Hélder Câmara combinou o seu apostolado com a ação política e, já em 1932, a convite de Plínio Salgado, ingressa na Ação Integralista Brasileira (AIB) – versão tupiniquim do fascismo italiano –, tornando-se o principal propagandista do movimento em seu estado.

A partir do final da década de 1930, o então padre Hélder passou por um longo e demorado percurso de conversão para as idéias democráticas e humanistas. O radicalismo fascista dos integralistas tornou-se inconveniente até para um regime ditatorial como o de Getúlio Vargas, que colocou a AIB na ilegalidade. A Igreja Católica tinha um pacto informal de colaboração com o Governo de Vargas e isso fez com que o Cardeal Sebastião Leme, do Rio de Janeiro, na época a maior autoridade eclesiástica no país, ordenasse o afastamento do jovem padre Hélder Câmara da Ação Integralista Brasileira. Aqui é importante destacar duas importantes contribuições intelectuais na vida do padre Hélder: a leitura da obra Humanismo Integral, de Jacques Maritain, e a convivência, no Rio de Janeiro, com o intelectual e líder leigo Alceu Amoroso Lima, que também passava por uma transição para o pensamento democrático.

Na década de 1940, o Brasil passava por um intenso processo de industrialização e de urbanização, com grandes ondas migratórias do campo para as cidades e, após o fim da ditadura de Getúlio Vargas, em 1945, estava também democratizando a sua vida política sob forte influência dos movimentos sociais e do Partido Comunista nas áreas urbana e rural. Nesse cenário, a Igreja Católica começava a se deparar com a expansão das denominações protestantes, então, Padre Hélder Câmara propôs e organizou uma vigorosa participação do laicato católico na vida política do país através dos movimentos de Ação Católica, com ênfase nos específicos para a juventude, a exemplo da Juventude Operária Católica (JOC) e da Juventude Universitária Católica (JUC). Com isso, ele conseguiu difundir entre os católicos a idéia de uma missão temporal, de responsabilidade de todos com o cuidado com as condições de vida, com a integridade dos mais pobres, ao invés da preocupação exclusiva com a salvação da alma dos fiéis, que caracterizava o ideário católico até então. De acordo com as palavras de Thomás Bruneau:

Antes da ação da Igreja na promoção da mudança social, houve a elaboração, por um grupo de bispos, de uma ideologia que justificava e urgia tal atividade. A formulação dessa ideologia resultou de um trabalho consciente de Dom Hélder, a força propulsora que anima o setor progressista da Igreja. Ele estava consciente de que qualquer instituição, incluindo a Igreja, deve ter líderes que esbocem as linhas mestras e estabeleçam objetivos. Era ele um desses líderes, cercado de um grupo de uns dez outros bispos, duas ou três vintenas de padres, e mais ou menos o mesmo número de leigos jovens e ativos (1974, pág. 147).

Como explicitaria melhor nos encontros dos Prelados da Amazônia e do Vale do São Francisco de 1952, muito longe de propor o caminho da revolução social como solução para os problemas do país, Dom Hélder defendia a colaboração entre a Igreja, os sindicatos rurais e o Estado para a promoção de reformas sociais de base.

No mesmo período, agregou os bispos brasileiros na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que ele funda e comanda como Secretário Geral até 1964 e que viria a se tornar a instituição de mais influência sobre a atualização da inserção política e social da Igreja Católica no Brasil nos últimos 50 anos.

A condição de representante do episcopado brasileiro, na época, levou Dom Hélder a apoiar o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à CNBB e financiado pelo Governo Federal, que se constituiu como uma iniciativa inédita dos católicos no campo da educação popular. O objetivo do MEB não era simplesmente alfabetizar o trabalhador rural, mas possibilitar uma educação integral que desenvolvesse a consciência política, social e religiosa dos participantes. Na formação dos educandos, deveria ocorrer um processo de “conscientização” que começaria com a alfabetização dos adultos através da valorização do código oral e da cultura popular. Simultaneamente os participantes passariam a interpretar a sua condição de vida como resultado das injustiças existentes na estrutura da sociedade brasileira. O passo seguinte seria a luta pela transformação da sociedade através da ação comunitária dos trabalhadores.

Já como arcebispo de Olinda e Recife e bem-relacionado com a cúpula militar, que tomaria o poder no país após o golpe de 1964, assume uma difícil posição de “neutralidade e expectativa” que o leva a se encontrar várias vezes com os presidentes Castelo Branco e Costa e Silva, visando “aparar as arestas” no relacionamento entre a Igreja e o regime ditatorial, até passar a ser também perseguido em razão da defesa que fazia dos presos políticos. Dom Hélder teve a coragem de dizer “não” aos poderosos ao denunciar publicamente que o Regime Militar promovia torturas e o extermínio físico de membros da oposição ao governo. Sua atuação foi, de fato, heróica e destemida, um exemplo extraordinário de um homem indignado com as circunstâncias em que viviam os seus semelhantes em nosso país.

No plano internacional, Dom Hélder contribuiria para a fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) e, nos bastidores do Concílio Vaticano II (1962-1965), trabalharia em favor de reformas internas na Igreja Católica, mas procurando não entrar em confronto com as orientações do Papa Paulo VI, com quem mantinha uma grande amizade. Requisitado conferencista internacional, a defesa que fazia pelos direitos humanos, pelo fim da exploração dos países pobres pelos ricos e pela paz mundial valera-lhe inúmeros prêmios, distinções e doutorados Honoris Causa, concedidos pelas mais prestigiosas instituições mundiais, credenciando-o como candidato ao Prêmio Nobel da Paz nos anos 1970.

Após ser cogitado pelo embaixador Charles Elbrick, dos Estados Unidos, como um possível presidente do Brasil em uma virtual saída civil à ditadura militar, os ocupantes do poder trataram de evitar o crescimento do seu prestígio dentro e fora do país e conseguiram inviabilizar sua candidatura ao Prêmio Nobel através de uma sigilosa campanha que contou com a colaboração de empresários noruegueses e brasileiros, dentre os quais os donos do jornal O Estado de São Paulo, para influenciar na decisão do Comitê do Parlamento Norueguês, responsável pela atribuição do prêmio. Para silenciá-lo, o governo brasileiro proibiu que notícias a seu respeito fossem veiculadas na imprensa. Vários de seus colaboradores foram perseguidos, presos e torturados, um dos quais chegando a ser barbaramente assassinado, o jovem padre Antonio Henrique Pereira Neto, em um crime ainda não totalmente esclarecido.

Devido a uma trajetória polêmica e conturbada, vivenciada na intersecção entre religiosidade e engajamento político, o L’Osservatório Romano, órgão oficial do Vaticano, comparou Dom Hélder Câmara a São Francisco de Assis, vendo-o como “um homem de Deus, um homem de Cristo, um homem dos pobres…”. Os adversários ora o consideraram como um “defensor dos adeptos de Adolf Hitler no Brasil”, ora como um “Fidel Castro de batina”.

Para o estudioso do catolicismo brasileiro Ralph Della Cava, “não resta dúvida que Dom Hélder faz par com Getúlio Vargas como líder político consumado” e, ao lado dos cardeais Arcoverde e Leme, “… está entre os maiores líderes religiosos no Brasil dos últimos 100 anos” (Della Cava, 1975, pág. 34).

Foi pelo seu exemplo de vida que Dom Hélder se tornou esta figura emblemática inesquecível. O boicote que Dom Hélder sofreu por anos por parte do regime militar brasileiro; o fato dele ter sido preterido várias vezes para ganhar o Prêmio Nobel da Paz e até mesmo o silenciamento que o Vaticano impôs sobre ele, restringindo suas viagens internacionais e suas manifestações públicas, considero que são episódios secundários diante da grandeza de sua obra e do seu legado. Ele não deixou de fazer o que acreditava que fosse a sua missão enquanto teve condições para isso e deixou-nos uma grande herança, como a firmeza dos seus princípios, sempre combinada com uma atitude totalmente aberta para o diálogo. Dom Hélder sabia onde pretendia chegar com a sua voz e com o testemunho da sua vida e, nesse sentido, ele pode ser considerado um grande estrategista, pois usava a sua capacidade pessoal extraordinária para defender os posicionamentos políticos mais democráticos e socialmente generosos. Nessa empreitada, não podemos esquecer o seu incansável e esperançoso esforço como religioso para reformar a Igreja de Cristo, livrando-a dos compromissos com os poderosos e aproximando-a cada vez mais das necessidades das camadas populares.

Dom Hélder faleceu em Recife no dia 27 de agosto de 1999. Como exemplo de vida nos deixou a sua capacidade inigualável de dialogar e conviver com pessoas comuns, grupos políticos e até religiosos que o consideravam como adversário. Também transmitiu-nos sua firmeza para denunciar desmandos e para propor mudanças sociais profundas, inclusive na estrutura da Igreja Católica. Ao mesmo tempo, marcou-nos a sua serenidade na busca do entendimento através de uma atuação política pacífica. Hoje, quando propomos o respeito às diferenças e a tolerância nas relações sociais, não estamos apresentando nenhuma novidade em relação ao discurso e à prática de Dom Hélder nas décadas de 1960 e 1970. Esse missionário soube preservar e transmitir valores que atualmente animam os espíritos mais generosos e comprometidos com a construção de uma sociedade justa, democrática e igualitária.

Referências
BRUNEAU, T. Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo, Loyola, 1974.

DELLA CAVA, Ralph. “Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916/1964”. Estudos CEBRAP, nº 12, São Paulo, 1975, pp. 5-52.

PILETTI, N. e PRAXEDES, W. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia. São Paulo, Ática, 1997.

PRAXEDES, W. Dom Hélder Câmara e a educação popular no Brasil. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 1997. Dissertação de mestrado.

SVERDRUP, J. Relatório sobre Dom Hélder Câmara. Prêmio Nobel da Paz, 1970. Oslo, Grondahi e filho impressor, 1970.

WANDERLEY, L. E. Educar para transformar. Petrópolis, Vozes, 1984.

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