Para educadores, é preciso evitar banalização de discurso racista (Entrevista ao jornalista Dojival Vieira)

11/02/2014

Dojival Vieira Afropress – Agência Afroétnica de Notícias

 Foto de Culturas Afro e Indígena nas Escolas.
Da Redação

Maringá/PR – O Brasil passa por um momento em que é preciso discutir novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo e em que os discursos de denúncia e a defesa das ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

A opinião é dos professores Rosângela Rosa e Walter Praxedes, graduados em Ciências Sociais e mestres e doutores, respectivamente, em Educação e Antropologia.

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Segundo Rosângela e Walter a consequência disso é que “as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção”.  “A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira. Temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país”, acrescentam.

Eles estão lançando o livro Educando contra o Preconceito e a Discriminação Racial, que faz parte de uma coleção das Edições Loyola, destinada à formação de educadores, coordenada pelo educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares.

O livro chama a atenção dos educadores para que prestem mais atenção nas relações entre negros e brancos  no cotidiano escolar, na perspectiva da superação dos preconceitos e da discriminação, como também fiquem alertas aos conteúdos curriculares de todas as disciplinas “que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar”.

Confira, em seguida, na íntegra, a entrevista dos professores Rosângela, que também tem Pós-Doutorado em Antropologia pela Universidade de Barcelona, na Espanha, e Walter, que é professor universitário e coautor, com Pilleti, dos livros “O Mercosul e a sociedade global; Dom Helder Câmara: o profeta da paz; e Sociologia da Educação: do positivismo aos estudos culturais”.

Afropress – Quais os aspectos mais importantes abordados na obra dentro da Série Caminhos da Formação Docente e como ela pode ser utilizada no dia a dia pelos professores?

Rosângela e Walter Praxedes – Os movimentos negros sempre alertaram para a existência do racismo na nossa sociedade. A Coleção Caminhos da Formação Docente das Edições Loyola está direcionada para a formação de professores, e como estudiosos da Educação e das Ciências Sociais o nosso trabalho visa demonstrar que o desempenho escolar dos alunos negros é prejudicado pela discriminação que ocorre diretamente na interação entre os agentes que se relacionam no cotidiano escolar, professores, alunos, funcionários, familiares.

O nosso livro contribui para o educador prestar atenção diretamente tanto nas relações entre negros e brancos no cotidiano escolar, para que os preconceitos e a discriminação sejam superados, como também nos conteúdos curriculares de todas as disciplinas escolares que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar.

Afropress – Como a Escola ainda contribui para a manutenção da cultura racista e discriminatória herdada do período do escravismo?

Rosângela/Walter Praxedes – Nas atividades didáticas em sala de aula, os educadores muitas vezes relevam ou deixam em segundo plano o fato de que as desigualdades de desempenho escolar das crianças e adolescentes negros em relação aos brancos que ocorre no cotidiano escolar, têm também raízes históricas que remontam ao passado escravista do nosso país.

Remontam, portanto, às relações de opressão entre colonizadores brancos e pessoas escravizadas, à política e ideologia do branqueamento da população brasileira do início da República, à ideologia do eugenismo das nossas elites intelectuais nas primeiras décadas do século XX, e à crença sempre difundida pelas classes dominantes brasileiras e até internacionais de que o Brasil sempre foi uma democracia racial na qual as chamadas “raças” interagem de forma pacífica sem animosidade ou violência.

Afropress – Qual o impacto que essa cultura escolar racista ainda tem na formação da criança negra?

Rosângela/Walter Praxedes – Quando discutimos em sala de aula os resultados da pesquisa realizada pela UNESCO no Brasil em 2006, e várias outras pesquisas, até os educadores militantes dos movimentos negros ficam surpreendidos com as informações que indicam que em todas as regiões do país e classes econômicas, tanto nas famílias mais pobres quanto nas mais abastadas e privilegiadas economicamente, nos estabelecimentos públicos ou particulares e diferentes disciplinas “os estudantes negros estão em condição de desvantagem em relação aos estudantes brancos”. E quanto maior a diferença de renda familiar, maior a desigualdade no desempenho escolar entre os dois grupos.

Isso quer dizer que mesmo com mais recursos econômicos, os alunos negros continuam sendo prejudicados pelo processo escolar. E isso demonstra precisamente que os preconceitos étnicos e raciais contra um indivíduo ou coletividade podem ter conseqüências práticas extremamente negativas. Os seres humanos são muito suscetíveis aos julgamentos que os outros realizam sobre eles.

Não é por acaso que inúmeras pesquisas na área de sociologia da educação indicam que, tanto no trabalho quanto na educação familiar e escolar, as expectativas que se tem sobre o desempenho dos indivíduos influenciam de fato no seu desempenho futuro.

A expectativa dos professores quanto ao desempenho dos alunos condiciona (embora não determine totalmente) o desempenho dos alunos. Aquilo que pensamos sobre as perspectivas de um aluno influi no seu desempenho escolar e na construção da sua identidade.

Afropress – Como estão vendo o cenário da luta antirracista no Brasil – desafios e perspectivas?

Rosângela/Walter Praxedes – Um problema muito relevante que teremos que discutir é a necessidade de novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo, pois os discursos de denúncia do racismo e a defesa de ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

Então as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção.  A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira.

Por isso temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país.

Afropress – Nas manifestações de junho, especialmente, em S. Paulo e Rio praticamente não se notou a presença do movimento negro organizado. A que atribuem essa desconexão da parcela organizada do movimento com a realidade? A vinculação à pauta partidária para maioria das lideranças teria alguma relação com essa ausência?

Rosângela/Walter Praxedes – Mesmo com todos os problemas que persistem na sociedade brasileira, nós estamos passando pelo maior período de democracia da nossa história.

Desde o fim do Regime Militar a democracia no Brasil vem se construindo de uma maneira que os movimentos sociais, partidos políticos e entidades acabam encontrando canais para negociar suas demandas com o Estado e mesmo para se fazerem presentes com cargos em um Governo de coalizão como é o caso das presidências de Fernando Henrique, Lula e Dilma.

Com isso os novos e mais complexos conflitos que surgem todos os dias muitas vezes não são percebidos pelos agentes que privilegiam a atuação junto às instâncias do Estado.

Os movimentos de junho de 2013 nos avisaram que existem imensas demandas de participação política que estão sendo represadas e não são representadas pelos agentes políticos convencionais.

Por enquanto estas manifestações estão sendo descaracterizadas pela infiltração de agentes provocadores. Mas vai passar este momento e os movimentos sociais vão se reaproximar das forças sociais populares que precisam ter suas reivindicações levadas em considerações, e vão redescobrir aquilo que sabíamos na época da ditadura, que a política não se faz apenas no âmbito do Estado, mas também na agregação paciente de força visando a construção de um projeto futuro de sociedade.

Afropress – Quando o livro será lançado? Onde? Qual a tiragem?

Rosângela/Walter Praxedes – O livro faz parte de uma coleção das Edições Loyola destinada à formação de educadores, que é coordenada pelo grande educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares, mas esperamos que o livro chegue ao maior número possível de educadores e ativistas da luta antirracista no Brasil.

Afropress – Falem um pouco da trajetória pessoal e profissional?

Rosângela/Walter Praxedes – Nós estamos estudando, trabalhando e compartilhando a vida há quase trinta anos. Quando iniciamos o curso de Ciências Sociais na USP visitávamos com freqüência o apartamento do querido e saudoso professor Clóvis Moura, que ficava na Avenida Angélica, e com ele aprendemos que a luta contra o racismo no Brasil passa também por esta dimensão da pesquisa acadêmica.

Em Maringá estamos há 22 anos e participamos da fundação de um cursinho pré vestibular articulado pelo movimento negro. Na Universidade Estadual de Maringá trabalhamos na realização de eventos com a participação de estudiosos e ativistas de todo o Brasil, como o prof. Kabengele Munanga, o jornalista Dojival Vieira, a ativista e filósofa Sueli Carneiro e tantos outros, além da organização de grupos de estudo, publicações e cursos sobre as relações raciais no Brasil. Este Educando contra o preconceito e a discriminação racial é uma síntese deste nosso trabalho simultaneamente acadêmico e político contra o racismo, a favor das ações afirmativas e da igualdade.

Afropress – Façam as considerações que julgarem pertinentes.

Rosângela/Walter Praxedes – Nós queremos agradecer a acolhida a este nosso trabalho e parabenizar o Afropress por estes 8 anos de sua competente luta contra o racismo e em favor da abertura de novos espaços para os negros em nosso país.

Serviço:

Livro: Educando contra o Preconceito e a discriminação racial

Autores: Rosangela e Walter Praxedes

Edições Loyola, 2.014 – S. Paulo

odiario.com

  • 20/11/2013

    O Dia da Consciência Negra e a luta pela igualdade

  • ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES* E WALTER PRAXEDES**

Embora biologicamente falando não existam raças humanas, os preconceitos que incorporamos na vida social continuam a nos ensinar a julgar e a avaliar as capacidades dos indivíduos e coletividades de acordo com a raça biológica na qual os classificamos.

Na prática, sempre que associamos um comportamento social à característica biológica de um indivíduo ou grupo estamos raciocinando de forma racista. Em outras palavras, mesmo desmentidos pelas ciências, os preconceitos racistas permanecem vivos nas mentes de muitos indivíduos e coletividades, tornando-os propensos a atitudes intolerantes.

Uma vez que uma realidade natural próxima ao que é classificado como raça não existe, o termo “raça” pode ser considerado uma ficção que adquire força de realidade quando é usado para classificar os seres humanos.

A concepção de raça e de identidade negra, empregada muitas vezes pelos movimentos sociais de combate ao racismo contra os negros, realiza pelo menos dois objetivos: a) uma tentativa de construção simbólica de um sentimento de pertencimento a uma coletividade discriminada e classificada racialmente; b) a busca do fortalecimento de uma solidariedade defensiva antirracista como uma forma de resistência contra a exploração, a perda de direitos, a exclusão social e a humilhação.

Os movimentos sociais negros atuam visando à conscientização da sociedade brasileira de que os negros são tratados há cinco séculos como raça inferior e de que atualmente essa discriminação persiste, apesar do discurso oficial do Estado brasileiro, favorável ao tratamento igualitário de todos os cidadãos, e do discurso racista “à brasileira”, que nega a existência do racismo em nosso país.

É mesmo um paradoxo que uma conquista importante do conhecimento científico e da cidadania democrática como o foi a constatação da igualdade universal da espécie humana apenas com muita dificuldade seja assimilada pelos seres humanos. Por isso o Dia da Consciência Negra nasceu para nos fazer recordar a importância da igualdade entre os humanos.

* Pós-doutora em Antropologia.
** Doutor em Educação.
Autores do livro “Educando contra o preconceito e da discriminação racial”.

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odiario.com
  • 21/03/2009

    A catarse do Dia da Consciência Negra

Walter Praxedes e Rosângela Rosa Praxedes

Catarse é uma palavra de origem grega que dá nome a um processo de libertação do que nos é estranho, daquilo que nos perturba, nos incomoda e corrompe a nossa dignidade.

Ela tem origem na medicina da Grécia Antiga e tinha o significado de purgação. O filósofo Platão escreveu que a catarse é uma maneira do ser humano se purificar do que tem de pior e recordar o que tem de melhor.

Num dia de catarse vamos fazer celebrações para persuadir os cidadãos de que existem purificações para os nossos atos injustos, por meio de sacrifícios e festas agradáveis e alegres ¿tanto para os vivos como para os mortos¿.

Não é outro o significado da Sexta-Feira Santa, que recorda a paixão de Cristo para os cristãos; ou do dia 7 de setembro, em que celebramos a construção de uma nacionalidade independente que sonha em ser livre da opressão dos colonizadores.

Na história do Brasil a escravidão foi um processo econômico e político da mesma importância da conquista do nosso território pelos colonizadores e do extermínio dos moradores originários do lugar.

A cidade de Maringá nasceu cerca de 450 anos depois do início da conquista do território pelos colonizadores portugueses, e meio século após a abolição da escravidão em nosso País.

Mas a cidade e os seus moradores não podem ser considerados inocentes em relação às conseqüências do colonialismo e da escravidão. Em poucas décadas de história da nossa cidade as populações locais originárias foram também exterminadas, depois do território ser recortado e vendido pela ganância dos comerciantes de terra.

Também não podemos ser irresponsáveis diante da situação de preconceito e discriminação racista contra os cerca de 25% da população da cidade, formada por descendentes dos escravizados que trazem na cor da sua pele um sinal que dificulta em muito conseguir trabalho na nossa cidade, resultando para os trabalhadores classificados como negros os empregos mais desprestigiados e de menor remuneração, a moradia nos bairros periféricos sem infra-estrutura adequada e uma barreira invisível para o ingresso no ensino superior, o que possibilitaria uma melhor formação educacional cidadã e profissional.

O feriado do Dia da Consciência Negra em Maringá, dia em que recordaremos o sacrifício de Zumbi dos Palmares, será um momento de catarse no nosso calendário, para refletirmos sobre todas as injustiças que os negros sofreram e sofrem em nossa cidade.

Muito mais importante do que o interesse mesquinho de alguns segmentos econômicos e políticos, será um dia para a integração de todos os cidadãos no compromisso com a construção de uma cidade hospitaleira em que todos os seus moradores são tratados como iguais e os seus visitantes como bem-vindos.

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REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO E UM NOVO SENSO COMUM: O TEMPO DA ORIGEM E A DANAÇÃO DE CAM

Rosângela Rosa Praxedes e Walter Praxedes

Observamos nos últimos anos uma preocupação com a valorização e o crescimento da participação dos negros em vários setores da sociedade brasileira, tanto nos meios de comunicação quanto nos espaços político-sociais. Ainda não obtivemos uma visibilidade à altura de nossa participação no conjunto da população brasileira e da contribuição que a população negra trouxe para esta sociedade, porém, como conseqüência da resistência negra, organizada ou não, estamos assistindo a uma lenta e consistente superação das representações eurocêntricas advindas da criação de um sujeito negro colonizado.

No centro da resistência negra, ao nosso ver, combinada com a ação política, deve figurar um trabalho contínuo de criação de novas representações sobre o negro.

As representações são idéias, conceitos, concepções, valores, princípios e imagens com os quais pensamos sobre a realidade, sobre nossas condições de existência. As nossas práticas, as nossas atitudes cotidianas são orientadas pelas representações que formamos em nossas mentes sobre quem somos, o que devemos fazer e como devemos interagir com as outras pessoas.

As representações estão entre os elementos que formam a identidade de cada um, mas não são pensamentos inatos que definiriam a essência de cada ser humano, ou seja, elas são construídas relacionalmente nas trocas intersubjetivas. Não é possível viver sem representar, isto é, sem construir um conjunto de idéias em nossas mentes a respeito de tudo que se apresenta para nós.

As representações podem surgir do contexto contemporâneo, das relações sociais, manifestações culturais e nas relações econômicas em vigência, mas podem também ter uma origem histórica anterior, em sociedades anteriores, mitologias e religiões do passado que chegaram até a atualidade.

Um exemplo de representação sobre os negros, ainda vigente no nosso imaginário de origem judaico-cristã, foi assim sintetizado e analisada por Alfredo Bosi:

O TEMPO DA ORIGEM: A DANAÇÃO DE CAM

O destino do povo africano, cumprido através dos milênios, depende de um evento único, remoto mas, irreversível: a maldição de Cam, de seu filho Canaã e de todos os seus descendentes. O povo africano será negro e será escravo: eis tudo… Transcrevo, em seguida, o passo bíblico fundamental onde a lenda encontrou sua formulação canônica:

Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam é o pai de Canaã. Esses três foram os filhos de Noé e a partir deles se fez o povoamento de toda a terra.

Noé, o cultivador, começou a plantar a vinha. Bebendo vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e advertiu, fora, a seus dois irmãos. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no sobre os seus próprios ombros e, andando de costado, cobriram a nudez de seu pai; seus rostos estavam voltados para trás e eles não viram a nudez de seu pai. Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse:

– Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos.

E disse também:

– Bendito seja Iahweh, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate a Jafé. Que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja teu escravo!

(Genesis, 9, 18-27)

A narração da Escritura prossegue dando o elenco das gerações de Cam, Sem e Jafé. “Camitas” seriam os povos escuros da Etiópia, da Arábia do Sul, da Núbia, da Tripolitânia, da Somália (na verdade, os africanos do Velho Testamento) e algumas tribos que habitavam a Palestina antes que os hebreus as conquistassem. (Bosi, 1996: 257-258)

O filósofo Cornel West também interpreta a narrativa bíblica comentada por Bosi, considerando que “… dentro desta lógica, a pele negra é uma maldição divina devida ao desrespeito e à rejeição da autoridade paterna” (West citado por Giroux, 1999: 136).

Como no exemplo acima, podemos analisar as representações investigando o que elas simulam e o que dissimulam sob o manto da origem religiosa e mítica da inferiorização dos humanos considerados negros.

Pesquisar as representações é investigar como foram geradas historicamente, quais as influências que receberam de outras representações, e quais as influências que exercem sobre a maneira como vivemos e nos relacionamos uns com os outros. Podemos estudar criticamente as representações sobre o negro para entendermos como se formam, o que elas mostram, o que escondem e como influenciam as nossas ações cotidianas.

Não podemos esquecer que ao elaborarmos as nossas representações somos influenciados pela cultura da sociedade e do meio cultural específico em que vivemos, mas também construímos idéias próprias, novas, a partir da nossa imaginação e de como pensamos a nossa vivência com os outros indivíduos. As representações formam um conjunto de saberes sociais incorporados pelo sujeito em sua vivência, mas reformulados e colocados em ação através de sua prática cotidiana. Ninguém pode, portanto, se considerar inocente em relação às representações que cultiva.

Os negros estão lutando pela alteração das representações presentes na identidade nacional brasileira segundo as quais são ainda vistos como cidadãos inferiores. Precisamos continuar o trabalho de desconstrução das representações dominantes sobre o ser negro em nosso país, que quase sempre nos associam às situações hierárquicas econômicas, religiosas, culturais e estéticas herdadas de nosso passado colonial. A associação do termo negro à crise, feiúra, pobreza, ignorância e marginalidade deverá ser revertida.

Como nos demonstra o estudo de Alfredo Bosi citado acima, a crítica cultural pode dar uma grande contribuição para a superação das representações que dominam as nossas identificações e para a construção de um novo senso comum sobre os negros brasileiros.

Referências

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, UFMG/ UNESCO, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000.

Texto publicado originalmente em PRAXEDES, Rosângela R.; PRAXEDES, W. Representações sobre o negro e um novo senso comum. Revista Espaço Acadêmico. N. 32 – Janeiro de 2004. http://www.espacoacademico.com.br/032/32rwpraxedes.htm

Barack Obama, racismo e meritocracia

Walter Praxedes  e Rosângela Rosa Praxedes

O resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos merece uma análise que não embarque no otimismo ingênuo. Para início de conversa, cabe pedirmos licença para lembrarmos o óbvio: dois dos problemas mais graves da sociedade norte-americana foram a escravidão e a imposição de estereótipos negativos sobre os seres humanos classificados como negros naquele país.

Nos Estados Unidos, uma pessoa que seja imaginada como descendente de negro é considerada negra e inferior pela sociedade branca racista e isso teve conseqüências devastadoras para toda a sociedade, como também ocorreu no Brasil, apesar das diferenças entre as formas de preconceito e discriminação existentes nos dois países.

Para levarmos em consideração tais diferenças, podemos recordar a forma como o saudoso professor Oracy Nogueira diferencia em duas modalidades os pressupostos valorativos que orientam as atitudes discriminatórias, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, como podemos observar a seguir:

“Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem” (NOGUEIRA, 1979, p. 79).

No uso desta caracterização, Oracy Nogueira (1979, p.78) chega à conclusão que o preconceito e as atitudes discriminatórias, nas formas em que se apresentam no Brasil, podem ser tipificados como sendo um “preconceito de marca”, em contraposição às situações correlatas que ocorrem nos Estados Unidos às quais ele reserva a designação de “preconceito de origem”.

Pois bem, a vitória de Obama pode contribuir para manter o preconceito racial nos Estados Unidos, mas, agora, camuflado como uma forma de discriminação contra os mais vulneráveis: mulheres e homens negros marginalizados, desempregados pela crise econômica, que perderam suas casas e raízes comunitárias e junto toda a esperança. Milhões de negros estão nas prisões ou cumprindo algum tipo de pena naquele país. A partir da última eleição, os racistas brancos podem dizer com todas as letras que os negros que aceitarem as regras do jogo merecem ocupar posições importantes. Quem não tiver competência vai ser responsável pelo próprio destino porque a sociedade dá oportunidades iguais para todos. Bem, é óbvio que essa não é mais do que uma versão da velha e sempre sedutora ideologia do culto ao mérito individual.

O discurso da vitória que foi pronunciado por Obama, e que está sendo amplamente utilizado pelas elites conservadoras, reafirmou esta ideologia meritocrática de valorização do esforço e da competência. Isso quer dizer que se alguém for considerado negro nos Estados Unidos (e também no Brasil, é claro), é melhor que seja um Barack Obama ou um Pelé. O problema é que ninguém vive com dignidade sob tamanha pressão. Uma sociedade justa e decente para se viver respeita as pessoas como elas são, independentemente da cor da sua pele ou do formato do seu nariz, mas em virtude de sua dignidade inerente à condição humana. Hoje, quem não é racista concorda com tal raciocínio, mas ainda precisamos reafirmar que temos o direito de viver com dignidade mesmo que não sejamos julgados como os mais inteligentes, os mais capacitados ou mais bonitos dos seres humanos ou que sabem fazer gol de bicicleta. O ideal é vivermos bem e sermos respeitados pelos outros, mesmo não tendo nenhuma capacidade considerada extraordinária.

Uma hipótese que deriva deste raciocínio é que a vitória de Obama, que contou com o apoio do eleitorado e dos movimentos sociais negros dos Estados Unidos, pode passar a ilusão de que o sistema é justo e de que basta você trabalhar com competência que você chega “lá”. Então, podemos avaliar que do ponto de vista das pessoas que não participam da vida política em organizações, movimentos sociais e partidos políticos, que é a maioria tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a vitória de Obama pode fortalecer a ideologia individualista de culto ao mérito de que dá para superar todos os obstáculos através do esforço individual e não é necessário uma organização anti-racista.

Por outro lado, não desconsideramos que a presença de um agente político que é considerado como “negro” na presidência da maior potência militar e econômica do planeta ajuda a quebrar os preconceitos mais simplistas e ignorantes daqueles que avaliam as capacidades dos seres humanos pela cor da sua pele. Evidentemente, Barack Obama não ganhou a eleição porque é negro, da mesma forma que ninguém ganha uma maratona ou a corrida de São Silvestre porque é negro. Ganhou porque teve a capacidade política extraordinária de juntar todos os apoios necessários para a sua vitória, do mais anônimo eleitor aos donos de jornais de maior prestígio nos Estados Unidos, assessores estrategistas e patrocinadores. Infelizmente ele tem o apoio de organizações militares e empresariais imperialistas e não foi colocado lá para questionar o imperialismo norte-americano, e sim para torná-lo mais eficiente e aceitável perante o mundo.

Muitos ainda associam a esperança de mudança depositada no novo presidente norte-americano ao que ocorreu no Brasil com a vitória de Lula. Mas esta é uma correlação baseada apenas na aparência e na simbologia que envolve os dois dirigentes, em virtude de suas origens populares e também pelo fato de que ambos são lideres políticos que passam confiança para os seus apoiadores que surgem de todos os segmentos sociais. A eleição do nosso presidente foi o ponto culminante dos movimentos sociais organizados na luta contra a ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Lula é respeitado pelo eleitorado pelas suas características pessoais, mas ele representa também a força da sociedade civil organizada em instituições como associações, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, igrejas. Barack Obama se viabilizou inicialmente a partir de sua atuação comunitária, mas nos últimos anos ele se credenciou como o representante das elites econômicas e políticas prejudicadas pelo governo Bush e que precisavam de uma liderança que representasse novidade e angariasse o apoio da maioria do eleitorado para o Partido Democrata.

Conclusão

Como dizia o poeta Bertolt Brecht, triste de um povo que necessite de heróis. Em nossa opinião, não precisamos de lideranças carismáticas ultra-competentes dotadas de méritos extraordinários. Precisamos é que todas as pessoas participem em condições de igualdade da vida social, econômica, cultural e política. Se estivermos sentindo a necessidade de heróis míticos como Dom Sebastião, Homem Aranha ou Barack Obama, isso quer dizer que cada um de nós, na verdade, se sente incapaz, sem poder e sem a esperança de que pode individualmente contribuir para que a vida humana de todos seja digna de se viver. Enfim, contra as nossas ilusões messiânicas, o ideal é que todas as formas de poder sejam descentralizadas e todos participem direta ou indiretamente de sua gestão.

Referências

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.

WEST, Cornel. Questão de raça. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

Texto publicado originalmente em. PRAXEDES, W. ; PRAXEDES, Rosângela R. Barack Obama, racismo e meritocracia. Em:

http://www.espacoacademico.com.br/091/91wrpraxedes.htm

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