Pierre Bourdieu e a educação

A educação reflexiva na teoria social de Pierre Bourdieu

 

 

A educação, os sistemas de ensino e as ações pedagógicas que ocorrem no interior das famílias e no cotidiano escolar ocupam um lugar central na teoria social e nas pesquisas do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). A abrangente teoria sociológica de Bourdieu trata a educação como um componente fundamental dos processos de constituição do mundo social, como podemos facilmente perceber ao estudarmos alguns dos conceitos que elaborou como habitus, prática, estratégia, campo, capital cultural, violência simbólica e reprodução social.

 

Pierre Bourdieu (assis au centre) entouré de ses élèves. Jacques Lefevre se tient debout, à droite (avec l'écharpe).

Pierre Bourdieu,  sentado ao centro, professor de filosofia no Liceu provincial Théodore-de Banville, Moulins, Auvergne, França, 1954.

Formado em Filosofia pela Escola Normal Superior, em 1954, com vinte e quatro anos, Pierre Bourdieu passa a lecionar a disciplina de filosofia no Liceu Provincial. Um dos seus primeiros alunos, Jacques Lefevre estudou com ele no segundo ano do Liceu e se recorda que aquele foi um dos seus  melhores anos  na escola. As aulas de filosofia de Bourdieu o influenciaram para que estudasse Ciência Política em Paris. Mas além de bom professor, Lefevre guarda na lembrança a disponibilidade e gentileza de Bourdieu, que jogava futebol com seus alunos, e nas aulas lia e comentava o Jornal Le Monde  para a turma.  O ex-aluno de Bourdieu o reencontrou em Paris, em 1989,  recebendo de presente um exemplar autografado do livro “A nobreza de Estado” ( La Noblesse de l’État, ainda inédito no Brasil). (1)

 

Pierre Bourdieu dans sa

Construídos gradativamente a partir do final da década de 1950 até a morte de Bourdieu em 2002, esses conceitos resultaram de uma original combinação entre uma teoria social geral e o desenvolvimento de pesquisas empíricas metodologicamente bem controladas sobre as sociedades argelina e francesa, abordando inúmeros problemas de pesquisa que colocaram em foco as comunidades camponesas cabilas do norte da África, as elites dirigentes francesas, as mulheres como vítimas da dominação masculina. Ao mesmo tempo em que estudava os sistemas de ensino e os estudantes franceses, Bourdieu investigava também por que os jovens camponeses tinham dificuldades para conseguir uma noiva na região rural do interior da França em que ele próprio havia nascido e que aceleradamente se modernizava na década de 1960. E, como o próprio autor reconhece em uma entrevista à professora Maria Andréa Loyola, “o fato de ser provinciano, de ter vindo de uma pequena cidade do interior, de ser mal integrado ao mundo parisiense, ao mesmo tempo por escolha e por destino, tem muita importância” (Bourdieu 2002, p. 17).

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Para Bourdieu o sistema escolar confirma e reproduz as desigualdades “de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais”.

A concepção de pesquisa educacional Resultado de imagem para pierre bourdieuproposta por Bourdieu resulta de um conjunto de pressupostos científicos que o autor colocava em prática em suas investigações, ressaltando a importância da construção controlada e gradual do objeto de investigação e a importância da reflexividade para que tanto os pesquisadores como os educadores tenham sempre presente para si as influências sofridas no trabalho de busca do conhecimento sobre o mundo social e a educação.

Resultado de imagem para pierre bourdieuA teoria sociológica de Bourdieu pode contribuir tanto para a pesquisa como para a prática educativas, ao evidenciar aqueles mecanismos muitas vezes ocultos — ou que insistimos em não enxergar — presentes no cotidiano escolar, que fazem com que os sistemas de ensino contribuam para a reprodução das desigualdades sociais e formas de dominação política que hierarquizam as sociedades contemporâneas.

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Como ensinou Pierre Bourdieu, apenas ao conhecermos os mecanismos que fazem com que a educação escolar contribua para a reprodução das desigualdades e privilégios é que poderemos trabalhar para construir alternativas pedagógicas críticas e reflexivas que os minimizem ou até mesmo os neutralizem, como nos sugerem alguns princípios pedagógicos propostos ao longo de sua obra.
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O sociólogo Pierre Bourdieu nasceu em 1º de agosto de 1930, em Denguin, no interior da França. Seu pai foi funcionário dos correios, e sua mãe era proveniente de uma família de médios proprietários de terra. Como aluno empenhado, mesmo sem condições econômicas, Bourdieu estudou no prestigioso Liceu Louis-le-Grand, em Paris, e depois na Escola Normal Superior, formando-se em filosofia em 1954. Trabalha inicialmente como professor de ensino médio, mas entre 1955 e 1958 leciona na Faculdade de Letras de Argel, capital da Argélia, na época ocupada pelo exército francês, onde presta serviço militar obrigatório, realiza suas pesquisas sobre a sociedade cabila e publica o livro Sociologie de L’Algérie. Depois de realizar várias e importantes pesquisas sociais empíricas sobre a educação e a cultura, publica em 1964 o livro Os herdeiros — os estudantes e a cultura, em parceria com Jean-Claude Passeron. Em 1970 cria o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura e publica o livro La reproduction, éléments pour une théorie du système d’enseignement, também em parceria com Passeron.
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Com sua trajetória voltada para a pesquisa científica em sociologia, Bourdieu elabora uma vasta e inovadora obra teórica e de investigação. Em 1975 funda a revista Actes de la recherche en sciences sociales e em 1980 é eleito para o Collège de France, como professor titular da cadeira de Sociologia, tornando-se um dos intelectuais mais conhecidos e respeitados no mundo, tanto por sua vasta obra científica quanto por sua ação política de apoio aos movimentos sociais contrários à globalização e ao neoliberalismo. Bourdieu foi casado com a cientista social e fotógrafa Marie-Claire Brizard e tiveram os filhos Jerome, Emmanuel e Laurent. Em 23 de janeiro de 2002 Pierre Bourdieu falece em Paris.

Referências

(2) http://www.lanouvellerepublique.fr/Indre-et-Loire/Communautes-NR/n/Contenus/Articles/2013/09/09/J-ai-ete-l-un-des-premiers-eleves-de-Pierre-Bourdieu-1604927#

 

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A construção do habitus e os campos sociais

 

A sociologia da educação proposta por Pierre Bourdieu é formada por um conjunto de pressupostos teóricos que possibilitam a pesquisa e a reflexão sobre os fenômenos educacionais que ocorrem nas formas de convivência no interior das famílias, grupos sociais, mediante o acesso aos produtos dos meios de comunicação e aos processos educativos escolares.

Os pressupostos filosóficos e antropológicos da teoria de Bourdieu levam em consideração que cada ser humano é submetido a um processo de socialização que o forma como um ser social. Ao longo do tempo esse processo possibilita a construção do agente humano por meio das relações sociais de afetividade e de aprendizagem, transformando ininterruptamente o corpo e a mente, de maneira que a percepção e a forma de agir de cada ser humano vão sendo modeladas pelas relações de convivência e pelas necessidades práticas e simbólicas que devem ser satisfeitas.

Para nos construirmos como seres humanos dependemos do ponto de vista dos outros a nosso respeito, em uma palavra, dependemos do reconhecimento que nos é dado pelos seres humanos à nossa volta, e, portanto, dependemos de realizar no dia a dia o que Bourdieu denomina como uma “luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social socialmente reconhecido, ou seja, numa palavra, à humanidade” (Bourdieu 2007, p. 295).

Para se tornar humano o agente tem de “ser-percebido” pelos outros. Os processos educativos que ocorrem no interior das famílias e na convivência social, e também os processos pedagógicos que ocorrem na escola se apoiam na busca de reconhecimento, ou seja, na busca da consideração dos outros por parte de cada agente. Segundo as palavras do próprio Bourdieu (2007, p. 201), “[…] pode-se supor que o trabalho pedagógico em sua forma elementar se apoia num dos motores que estão na raiz de todos os investimentos ulteriores: a busca de reconhecimento”.

Combinando-se essa busca de reconhecimento por parte dos agentes com a forma de tratamento ou reconhecimento que os seres humanos lhes dão, ocorre o processo de construção de cada membro da sociedade. Nas relações familiares, nas formas de convivência social como grupos de amigos e vizinhança, associações comunitárias e religiosas, bem como nos sistemas escolares ocorrem as relações sociais que se combinam de diferentes maneiras para a preparação dos membros da sociedade em que estão inseridas, contribuindo assim para a existência dessa sociedade ao longo do tempo.

A essa preparação dos membros da sociedade para a vida social por intermédio da educação, Pierre Bourdieu (1992a, p. 296) denomina processo de construção do habitus, um termo originário da língua latina, que na teoria sociológica da educação que estamos estudando recebe uma ampla significação e é proposto para sintetizar o conjunto de influências que cada ser humano sofre desde seu nascimento, como a aprendizagem da língua, dos costumes, das formas de convivência e tratamento entre as pessoas, crenças religiosas, valores morais e ideias sobre a realidade; mas que também contribuem para capacitar cada um de nós a ter suas próprias ideias, valores e atitudes práticas diante da realidade, muitas vezes diferenciadas em relação à educação recebida no meio familiar ou na escola.

A teoria social construída por Bourdieu pode ser considerada uma síntese de um conjunto muito vasto e heterogêneo de influências filosóficas, sociológicas, antropológicas e políticas, apropriado por ele para construir também uma teoria de como se realiza a pesquisa científica.

O termo habitus é utilizado, assim, como um conceito teórico que sistematiza um conjunto de saberes construídos ao longo da história da filosofia e das ciências sociais. Envolve todas as influências que cada ser humano assimila dos meios sociais e culturais que mantêm contato, que vão se fixando em sua mente, como um “depósito de experiências”, mas que também o tornam capacitado para agir na prática de uma maneira inovadora, para resolver os novos problemas que surgem na convivência social e satisfazer suas necessidades e suas concepções.

Os seres humanos interiorizam as condições sociais e culturais em que vivem e se relacionam entre si, construindo assim sua capacidade de percepção e avaliação da realidade, de modo que decidam pela adoção daquelas condutas práticas que melhor se ajustem à situação existente, mas que também respeitem seus próprios valores, seus interesses e suas capacidades.

O conceito de habitus possibilita o estudo das condutas práticas dos agentes que são resultantes da assimilação das pressões e influências externas, e que também o impulsionam a se adaptar com flexibilidade, de forma criativa ou improvisada, aos desafios colocados pelas novas situações enfrentadas por eles.

Nas atitudes práticas de cada agente são explicitados os valores que ele cultiva, os saberes e habilidades que aprendeu ao longo de sua história de vida, incluindo as posturas corporais, o uso da língua, sua dicção, sotaque, modos de expressão e gestos, mas também sua forma de raciocinar logicamente, classificar e avaliar as situações de acordo com seus valores, suas crenças e suas ideias.

“Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro” (Bourdieu 2009, p. 87).

“Assim, por exemplo, o habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares (e em particular, da recepção e da assimilação da mensagem propriamente pedagógica), o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou das experiências profissionais) e assim por diante, de reestruturação em reestruturação” (Bourdieu 1994, p. 80).

Os campos sociais

Com base em suas experiências anteriores, cada agente realiza a percepção das condições presentes em que vive e orienta seus comportamentos futuros. Desta maneira o habitus possibilita que cada ser humano seja dotado de um senso prático que orienta suas estratégias para viver em sociedade e se inserir nos meios sociais, profissionais, políticos e culturais em que atua, denominados por Bourdieu de campos sociais. Ao vivermos em sociedade nos relacionamos com outros seres humanos.

Com o aprofundamento da divisão social do trabalho, essas relações sociais levam ao desenvolvimento e à estruturação de setores sociais e econômicos como a agricultura, a indústria, os serviços e o comércio; o surgimento dos profissionais especializados para o trabalho nos sistemas simbólicos como o direito, a ciência, a educação escolar, a literatura, as artes, o esporte, o direito, a publicidade, os meios de comunicação e o jornalismo.

Também ocorre a consolidação do aparelho de Estado com seus corpos de funcionários técnicos e especializados na administração burocrática da sociedade, juristas, policiais, políticos etc., que atuam, ainda, segundo a clássica divisão social e política entre trabalhadores braçais e trabalhadores intelectuais; especializados em serviços operacionais de rotina, cuidado da saúde e da integridade de outras pessoas. Assim, vão se estruturando historicamente os campos especializados de atuação em que os agentes sociais se relacionam entre si, com certa autonomia na definição de suas regras e formas de funcionamento.

Na busca do entendimento de como se processam essas relações entre os agentes sociais que ocorrem no interior dos campos especializados de produção de bens materiais e simbólicos, Pierre Bourdieu criou sua teoria dos campos (Bourdieu 1968, 1983, p. 89-91). De acordo com a teoria dos campos podemos nos aproximar do entendimento de como as relações entre os participantes dos campos dependem mais da posição hierárquica que ocupam, com seu prestígio, renda e poder próprios, que da forma de interação direta ou amizade que pode existir entre os indivíduos.

Nos campos, seus participantes lutam pela obtenção de um reconhecimento dos outros participantes, reconhecimento que, uma vez obtido, Bourdieu (2007, p. 202) chama de “capital simbólico”, que expressa a “glória, honra, crédito, reputação, notoriedade” conquistadas. Esse capital simbólico “[…] existe sempre na e pela estima, pelo reconhecimento, pela crença, pelo crédito, pela confiança dos outros, logrando perpetuar-se apenas na medida em que consegue obter a crença em sua existência” (iBidem). O conceito de “capital” é empregado por Bourdieu para expressar todas aquelas características dos agentes e grupos sociais que são valorizadas como importantes e disputadas nas relações sociais de cooperação ou de conflito no interior dos campos.

Nas sociedades baseadas na luta pela concentração de capitais, as disposições dos agentes se tornam “propriedades”, com maior ou menor valor de mercado. Como exemplo, podemos citar os conhecimentos e os diplomas escolares obtidos pelos estudantes que, no mercado de bens simbólicos ou campos, são mais valorizados ou menos valorizados e se transformam em uma determinada quantidade de “capital cultural”. Até mesmo a consideração e o respeito que os indivíduos recebem dos outros agentes e que podem se traduzir em uma posição social que simbolize certo prestígio podem ser chamados de “capital social” (Bourdieu 2008, p. 16).

A posse de recursos econômicos é a forma de propriedade que Bourdieu chama de capital econômico. Por isso, inspirado no livro O capital, de Marx, ele afirma que “o capital tende sempre para o capital”, pois na lógica das relações sociais de competição nas sociedades capitalistas, a tendência mais observada é a de que os agentes que detêm mais capitais tenham também possibilidades maiores de ampliação dos capitais acumulados.

Todos os agentes que participam de um campo estabelecem relações entre si, direta ou indiretamente, sendo que a posição de cada agente só pode ser definida na comparação com as posições dos demais agentes. Para conhecermos como se estrutura um campo, temos de conhecer como seus membros se relacionam entre si e suas vidas são influenciadas pelas regras de funcionamento do campo em que atuam e pela quantidade de capitais de que dispõem.

Mas cada agente tem também a capacidade de influenciar de alguma maneira as relações no campo por meio de suas ações práticas e concepções. Bourdieu defende a ideia de que uma característica presente em todos os campos sociais que estudou é a divisão entre dominantes e dominados, os primeiros controlando as posições de poder e prestígio e ditando as regras de funcionamento do campo, enfim, controlando a maior parte dos capitais em disputa, enquanto os dominados lutam para melhorar sua posição, por meio de estratégias práticas de submissão às regras do campo ou de tentativa de criar novas regras que sejam mais favoráveis a seus interesses. Essas lutas entre dominantes e dominados no interior dos campos são o resultado das estratégias práticas que os agentes executam para que seus objetivos e valores sejam realizados, como, por exemplo, a acumulação da maior quantidade possível dos capitais em disputa no campo. Mas tais estratégias práticas dos agentes dependem das condições sociais e políticas que foram se constituindo na história do campo em questão, dos resultados dos conflitos ocorridos anteriormente e da correlação de forças entre os membros do campo na competição que realizam para a conquista das posições sociais consciente ou inconscientemente almejadas.

Na teoria de Bourdieu, cada campo é dotado de uma ordem simbólica, que estabelece os parâmetros aceitáveis para a atuação de seus membros. É a existência desta ordem simbólica que justifica e dá legitimidade para que os dominantes exerçam seu poder e estabeleçam as regras vigentes, impondo seus pontos de vista.

A existência desta ordem simbólica depende da capacidade de os dominantes exercerem a violência simbólica sobre os dominados, impondo suas regras e valores como os únicos válidos nas disputas no campo, e fazendo com que os dominados aceitem, mesmo que inconscientemente, as posições subalternas que ocupam, contribuindo assim para sua própria dominação.

O habitus e as estratégias para a atuação nos campos

Na definição do conceito de habitus, Bourdieu emprega a noção de disposições como sendo constituídas como resultado das influências do mundo social e dos campos sobre os agentes, tornando-os predispostos a uma “maneira de ser” e de agir, de interagir com os outros com tendências a adotar certas condutas, e não outras, com propensões e inclinações próprias (Bourdieu 1994, p. 62).

Nas condutas dos agentes, portanto, já está implícita uma antecipação do futuro, uma teleologia, que indica a construção de estratégias práticas que orientam as condutas na vida social no interior dos campos sociais em que eles entram em relação com outros agentes, segundo as posições ocupadas de acordo com as regras e condicionamentos próprios de cada campo.

Segundo as palavras de Bourdieu, “o habitus está no princípio de encadeamento das ações que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica (iBidem, p. 61).

O autor apresenta, assim, uma definição do conceito de estratégia como sendo aquelas motivações que orientam as condutas práticas dos agentes, e que são “objetivamente ajustadas às chances objetivas” (iBidem, p. 63) de que eles alcancem a realização de seus valores, crenças, interesses e desejos, sem que para tanto seja necessária a elaboração consciente e racional de tal estratégia, que pode até ser diferente daquilo que racional e conscientemente os agentes concebem.

As aspirações e condutas práticas são construídas já ajustadas às possibilidades objetivas presentes nas estruturas dos campos de modo que os agentes muitas vezes nem se deem conta de que recusam o que lhes é recusado pelas estruturas (Bourdieu 1994, p. 63).

Na busca pelo reconhecimento concedido por outros agentes sociais, mas também na busca de condições adequadas para satisfazer suas necessidades e interesses, de acordo com seu habitus, cada ser humano adota uma conduta prática não inteiramente racional, para realizar suas aspirações, sonhos e expectativas, e que se traduz em estratégias para a atuação nos campos em que intuitivamente sente maior afinidade e percebe que tem maiores chances de alcançar suas metas.

Podemos ilustrar esta concepção de estratégia com alguns exemplos: um jovem que decide pela estratégia de entrar em uma escolinha de futebol para buscar reconhecimento e se inserir profissionalmente no campo do esporte; outro jovem decide estudar para passar em um exame vestibular e ingressar no campo universitário para adquirir um diploma de ensino superior que o credencie para realizar uma carreira profissional; um terceiro jovem, após o serviço militar obrigatório, decide seguir carreira militar.

Nestes três exemplos, cada jovem é dotado de um habitus específico, formado nas condições econômicas em que vive sua família, de acordo com a aspiração profissional que construiu ao longo de sua vida e de acordo com a quantidade de capital cultural de que dispõe, e intuitivamente realiza uma estratégia de se tornar jogador de futebol, médico ou militar. A estratégia que se realiza na opção prática de cada um dos jovens dos exemplos acima é condicionada tanto por seu habitus, como pelas estruturas dos campos do esporte, universitário e militar, cada qual demandando um conjunto de características específicas de seus membros e uma quantidade determinada de capital cultural.

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A violência simbólica dos sistemas de ensino e a reprodução da ordem social

 

Na realização das pesquisas que resultaram no livro A reprodução — elementos para uma teoria do sistema de ensino, Bourdieu e Passeron (1992) retrabalharam as informações discutidas em seus estudos anteriores para a elaboração em parceria do livro Os herdeiros, os estudantes e a cultura, publicado em 1964, e dos artigos científicos “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura” e “Campo intelectual e projeto criador”, ambos de autoria de Bourdieu e publicados em 1966, além da pesquisa de Bourdieu, Darbel e Schnapper (2003) sobre a frequência aos museus na Europa.

 

Como mais um exemplo do que ocorre com muitas obras clássicas, o livro A reprodução geralmente é muito mais comentado, combatido e até incompreendido do que realmente lido com atenção. A reprodução é, portanto, uma obra de sistematização de um conjunto de conceitos teóricos construídos na prática de pesquisa, e várias vezes reformulados para que teoria e dados empíricos se tornassem coerentes entre si.

Na primeira parte do livro é apresentada uma teoria sociológica para a investigação dos sistemas de ensino como um mecanismo a) de “comunicação e inculcação de uma cultura legítima” entre estudantes e professores e em toda a sociedade, b) para a realização do processo de seleção dos agentes que vão ocupar as diferentes posições hierárquicas de poder existentes na estrutura da sociedade de forma legítima e, portanto, aceita pela maioria dos membros da sociedade em questão.

Assim, “comunicação, inculcação de uma cultura legítima, seleção e legitimação” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 11) seriam as funções mais importantes desempenhadas pelo sistema de ensino em uma sociedade, de acordo com a teoria proposta pelos autores.

Os autores advertem que esse resultado das ações dos professores, gestores educacionais e estudantes não é intencional ou conscientemente visado por eles, mas uma consequência não planejada, até mesmo desconhecida ou dissimulada pelas práticas dos agentes no cotidiano escolar. A imposição de conteúdos curriculares e de valores arbitrariamente escolhidos para serem ministrados nas atividades pedagógicas ocorre muitas vezes de maneira não consciente ou planejada, e até diferentemente dos objetivos que os agentes declaram publicamente.

Alguns estudiosos interpretaram essas afirmações de Bourdieu e Passeron como conservadoras, como se eles concordassem que os sistemas de ensino devessem desempenhar a função de imposição de uma ordem social baseada na desigualdade e na hierarquia através da educação escolar. Na entrevista que concedeu à professora Maria Andréa Loyola em 2000, portanto dois anos antes de falecer, Bourdieu refutou esta crítica a seus estudos:

“Para mim, ainda hoje é surpreendente, como foi naquela época, que o fato de dizer que uma instância como o sistema de ensino contribui para conservar as estruturas sociais, ou dizer que as estruturas tendem a se conservar ou se manter — o que é uma constatação —, é surpreendente que esta constatação seja percebida como uma declaração conservadora. Basta pensarmos um pouco para percebermos que o mesmo enunciado sobre a existência de mecanismos de conservação pode ter um caráter revolucionário… Quando o sociólogo diz que tal instituição contribui para conservar, imediatamente se atribui um juízo de valor ao seu enunciado: contribui para conservar e isso é bom e eu concordo, ou contribui para conservar e isso é ruim e temos que fazer uma revolução” (Bourdieu 2002, p. 13-14).

O objetivo da obra A reprodução é revelar a relação de força, de imposição, que está oculta nas relações pedagógicas aparentemente justas, bem-intencionadas e pacíficas, mas que contribuem para “a transmissão do poder e dos privilégios” nas sociedades capitalistas (Bourdieu; Passeron 1992, p. 14).  Por isso a noção de violência simbólica se torna central nessa obra.

A violência simbólica da ação pedagógica

Para a imposição de conteúdos educacionais arbitrários é necessário o estabelecimento de uma relação de violência simbólica que, segundo Bourdieu e Passeron, seria próprio da ação pedagógica. Embora esta seja uma ação considerada não violenta, na prática pedagógica ocorre a imposição de um conteúdo simbólico como o mais relevante, adequado e necessário, enfim, o mais legítimo, para o ensino e o aprendizado dos estudantes. No texto “A escola conservadora…”, de 1966, Bourdieu já havia apresentado uma discussão sobre a noção de violência simbólica, afirmando que ela ocorre, por exemplo, quando os dominados aceitam uma nota baixa, uma reprovação no ano letivo ou mesmo a exclusão do sistema com base em critérios de seleção pelo mérito que eles próprios defendem. Os eliminados do sistema legitimam a própria eliminação, difundindo a ideologia de que o bom desempenho escolar é o resultado do esforço e dos dons de cada indivíduo.

Através da relação de violência simbólica, o poder político que controla os sistemas de ensino estatais substitui as “técnicas brutais de imposição” por “técnicas mais sutis” (Bourdieu; Passeron 1992, p. 14), pois a violência pedagógica de imposição de um conteúdo curricular e a seleção dos estudantes que serão os mais bem-sucedidos no sistema não podem aparecer como uma violência social arbitrária e injustificável.

O conceito de violência simbólica foi construído para expressar aquelas situações em que os ocupantes do poder chegam “a impor significações” e a “impô-las como legítimas”, dissimulando que são impostas e assim conquistando o apoio dos dominados, que reconhecem como legítima a dominação que sofrem, ao mesmo tempo em que desconhecem que estão submetidos a esta força exercida pelos detentores do poder simbólico, como um sistema de ensino, o Estado, os meios de comunicação, igrejas etc.

“Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força”. (Bourdieu, Passeron 1992, p. 19-20)

Para os dois autores a ação pedagógica seria uma forma de violência simbólica exercida pelos detentores do poder ao realizar imposição de conteúdos e valores arbitrários, denominados na obra de “arbitrário cultural” (iBidem, 20). A ação pedagógica é realizada pelos familiares e pelos professores. Na escola a ação pedagógica difunde a cultura das classes dominantes como a única legítima, por isso “o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima (iBidem, 21).

A educação é considerada nesta teoria uma forma de imposição e inculcação de uma cultura que atende às necessidades, interesses e valores das classes dominantes de uma sociedade, através da relação de comunicação entre os participantes da ação educativa, sejam pais e filhos ou professores e alunos, e através da seleção de conteúdos pedagógicos e da exclusão ou marginalização de outros conteúdos.

Ao esconder que tais conteúdos representam e correspondem aos “interesses materiais e simbólicos” das classes dominantes, ao distribuir desigualmente o capital cultural valorizado na sociedade representado pelos certificados e diplomas com mais prestígio, a ação pedagógica contribui para a manutenção e perpetuação das desigualdades e da hierarquia de poder da estrutura social, e assim contribui para o processo de reprodução social.

A violência simbólica é exercida nas relações de comunicação entre os professores, detentores da autoridade pedagógica para realizar sua ação pedagógica. A autoridade pedagógica de um professor depende do reconhecimento que lhe é dado pelos estudantes, e é ela que garante sua legitimidade para coordenar os processos de ensino e aprendizagem que ocorrem no cotidiano escolar. Para que isso ocorra, os educadores buscam manter uma relação de comunicação com os estudantes “que dissimule as relações de força que a tornam possível” (iBidem, 26).

A relação professor-aluno deixa de aparecer como uma relação de força e passa a ser vista como uma relação puramente pedagógica de formação educacional dos estudantes e, portanto, legítima, pois aparentemente não é realizada através da coerção física, da autoridade e da violência simbólica dos educadores.

 

O poder de imposição de um conteúdo curricular não é percebido como uma violência simbólica, mas como um exercício de “autoridade legítima” por parte do professor, que assim conquista o consentimento e o apoio dos educandos para realizar seu trabalho pedagógico (iBidem, p. 29).O poder de imposição de um conteúdo curricular não é percebido como uma violência simbólica, mas como um exercício de “autoridade legítima” por parte do professor, que assim conquista o consentimento e o apoio dos educandos para realizar seu trabalho pedagógico (iBidem, p. 29).

 

O trabalho pedagógico e a construção do habitus

O trabalho pedagógico é considerado por Bourdieu e Passeron um lento e prolongado “trabalho de inculcação” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 44) que ocorre no processo de construção do habitus em cada estudante, de modo que possibilite a interiorização dos princípios da cultura dominante como “um sistema de esquemas de percepção, de pensamento, de apreciação e ação” (iBidem, 47) que vão orientar as condutas práticas dos agentes ao longo de suas trajetórias para que sejam conformes a esses princípios dominantes.

Os autores afirmam que “o trabalho pedagógico é um substituto da coerção física” (iBidem, 48), pois difunde a ideia de que a violência simbólica exercida pela educação escolar “não tem relação com as relações de força entre os grupos ou classes” (iBidem, 74), quando, na realidade, está difundindo de forma dissimulada os princípios que tornam possível a manutenção das hierarquias existentes na sociedade, como as divisões entre classes sociais proprietárias e não proprietárias dos meios de produção, governantes e governados etc.

Embora tenha uma “aparência de neutralidade”, para que não seja percebida como uma violência simbólica, a ação pedagógica contribui para que as classes dominantes exerçam seu poder sobre as classes dominadas por intermédio da educação, que além de “inculcar” os conhecimentos próprios das culturas dominantes, realiza a inculcação da concepção de que a cultura das classes dominantes é superior às demais e a mais legítima.

O Estado, como uma instituição dominante nas sociedades modernas, institui os sistemas de ensino com o objetivo de manter e perpetuar, ou seja, reproduzir a ordem dominante. Os dominados que não possuem o capital cultural valorizado pelas classes dominantes aprendem que é legítima a dominação que sofrem em virtude exatamente da falta desse capital cultural. Uma situação como essa leva, por exemplo, a fazer com que os estudantes das classes dominadas e seus familiares aceitem o ensino profissionalizante e técnico como inferior ao ensino universitário denominado ensino superior (iBidem, 52).

Outro aspecto relevante para Bourdieu e Passeron é o fato de que o respeito inculcado às hierarquias sociais e a submissão dos dominados às culturas dominantes levam à valorização das disciplinas de maior prestígio como a medicina e o direito, concomitantemente a uma “desvalorização do saber e do saber fazer” (iBidem, 53) próprios das manifestações das culturas populares, como, por exemplo, o direito baseado nos costumes, a medicina doméstica, o artesanato, a linguagem e as manifestações artísticas (iBidem, 53).

Uma consequência deste processo de violência simbólica contra os saberes e práticas populares acaba sendo o estabelecimento “de um mercado para as produções materiais e sobretudo simbólicas cujos meios de produção (a começar pelos estudos superiores) são o quase monopólio das classes dominantes (por exemplo, diagnóstico médico, conselho jurídico, indústria cultural etc.) (iBidem, 53).

É importante enfatizar que esta concepção sociológica de que a educação escolar contribui para a reprodução da ordem social vigente já vinha sendo construída há vários anos por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, como vimos anteriormente nas discussões sobre a obra Os herdeiros — os estudantes e a cultura, de 1964. No artigo científico “Campo intelectual e projeto criador”, que é essencial para entendermos o processo de construção do conceito teórico de “campo” e foi publicado em 1966 na revista Les Temps Modernes, dirigida pelo filósofo Jean-Paul Sartre, Pierre Bourdieu já afirmava
[…] que os sistemas de ensino enquanto instituição, especialmente preparada a fim de conservar, transmitir e inculcar a cultura canônica de uma sociedade, devem muitas de suas características de estrutura e de funcionamento ao fato de que devem desempenhar essas funções particulares. Conclui-se também que muitos dos traços característicos do ensino e dos mestres, que as descrições mais críticas não percebem senão para denunciar, pertencem à definição da função de ensino. Assim, por exemplo, seria fácil mostrar que a rotina e a ação rotinizante da escola e dos mestres, tão bem estigmatizadas pelas grandes profecias culturais quanto pelas pequenas heresias (muitas vezes desprovidas de qualquer outro conteúdo que não seja esta denúncia), pertencem sem dúvida, inevitavelmente, à lógica de uma instituição investida fundamentalmente da função de conservação cultural (Bourdieu 1968, p. 133-134).
Os conhecimentos, os valores e as condutas práticas difundidas pela educação escolar influenciam de tal maneira a construção dos habitus dos professores e alunos, que irradiam para toda a sociedade aqueles saberes, formas de pensamento e de agir adequadas à manutenção da ordem social existente. Segundo Bourdieu (1992a, p. 205), “a cultura escolar propicia aos indivíduos um corpo de categorias de pensamento que tornam possível a comunicação”, tornando estabelecido um repertório comum de temas relevantes, concepções filosóficas, teorias científicas, formas de arte e problemas a serem pensados e discutidos nos currículos, que assim são consagrados pelo próprio sistema escolar como mais importantes e universais. É desta maneira que cada estudante recebe da educação escolar um conjunto de esquemas de pensamento ou maneiras de raciocinar que orientam sua percepção sobre a realidade e organizam suas ideias. Uma formação escolar comum a uma geração de estudantes garante a difusão das disciplinas e dos problemas que são considerados mais adequados pelos detentores do poder do Estado e do sistema econômico. “Na verdade”, escreve Bourdieu (1992a, p. 206), “os indivíduos ‘programados’, quer dizer, dotados de um programa homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, constituem o produto mais específico de um sistema de ensino”.

Gera-se, assim, uma correspondência entre as formas de pensamento existentes entre os membros de uma sociedade e a estrutura social vigente, com sua divisão hierárquica do mundo social entre dominantes e dominados. Se no passado medieval europeu cabia à religião promover esta integração social através das formas de pensamento, nas sociedades modernas é a educação escolar que garante a estabilidade da ordem social, pois “consagra as divisões sociais, inscrevendo-as simultaneamente na objetividade das distribuições materiais e na subjetividade das classificações cognitivas” (WaCquant 2007, p. 57).

Bourdieu no Brasil

“A leitura que se fez da obra de Bourdieu no Brasil dependeu, evidentemente, de um uso e um debate bastante peculiares. Se, de um lado, a organização por Sergio Miceli da primeira coletânea de Bourdieu em língua portuguesa, A economia das trocas simbólicas (1974), tornou mais acessíveis os textos sobre educação, cultura, intelectuais, religião e produção artística, de outro lado, parecem ter sido as análises acerca da educação que inicialmente ganharam maior divulgação. Ao se tentar entender o espaço e a força que suas explicações ganharam no campo educacional brasileiro examinando, por exemplo, um amplo conjunto de escritos divulgados em periódicos especializados, constata-se a forte presença da obra A reprodução e uma lenta incorporação de outras análises do sociólogo conforme se evidencia no estudo “As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro através de periódicos publicados na área”, de 2001, publicado pela Revista Brasileira de Educação, de Afrânio Catani, Denice Catani e Gilson Pereira. Assim, é possível compreender as inúmeras controvérsias políticas acerca do autor, na década de 1970 e início dos anos 1980, quando ao se ler principal e às vezes exclusivamente A reprodução, se considera que, embora crítica, a sua análise é desmobilizadora. A leitura nesse momento estará aprisionada pela divisão entre “reprodução e transformação”. Deixava-se de lado, na maioria das interpretações, a ideia de que ao mostrar o modo de funcionamento da escola identificando o alcance de sua ação e explicitando suas práticas, Bourdieu fornecia elementos que permitiam intervir nela. Essas interpretações, comuns também aos seus críticos franceses, resultariam, anos mais tarde, na desatenção com a qual se considerou sua ideia de uma “pedagogia racional”, apresentada em Os herdeiros” […] (Catani 2012, p. 23-34).

 

Referências

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WaCquant, Loic. Lendo “o capital” de Bourdieu. Revista Educação & Linguagem. São Bernardo do Campo, Umesp, ano 10, n. 16 (jul.-dez. 2007).

 

 

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A pedagogia proposta por Pierre Bourdieu

Walter Praxedes

Desde a publicação do livro Os herdeiros…, em 1964, Bourdieu propõe que a prática de uma “pedagogia racional” deve adotar como ponto de partida a consideração dos fatores reais que condicionam as desigualdades de desempenho na educação escolar. O planejamento e a implementação das atividades educativas devem possibilitar que o maior número possível de estudantes tenha acesso a todas as formas de cultura “[…] desde a frequência aos museus até o manejo de noções e técnicas econômicas e a consciência política” (Bourdieu, Passeron, 2006, p. 87), passando pelas artes e literatura.

As aulas magistrais que poucos estudantes conseguem assimilar, por exemplo, podem ser substituídas por um trabalho pedagógico que ensine as técnicas de estudo sistemático, como a elaboração de notas e fichas de leitura, lista de exercícios e as técnicas de redação, até mesmo valorizando e ensinando a importância da disciplina e da concentração no trabalho intelectual, sem supor que os estudantes já deveriam contar com uma formação adquirida na educação básica ou no meio familiar, que de fato, a maioria não conta quando chega ao ensino superior. A ação pedagógica pode fornecer uma grande contribuição para a igualdade social, ao possibilitar “[…] aos estudantes das classes desfavorecidas superar suas desvantagens” (Bourdieu, Passeron 2006, p. 113).

As desigualdades culturais que se expressam nas diferenças de desempenho e sucesso escolar dos estudantes nas atividades pedagógicas são condicionadas socialmente, como resultado do acesso diferenciado das famílias e classes sociais aos bens culturais e saberes valorizados pela escola. Sendo assim, uma pedagogia que vise a aprimorar os processos de ensino e aprendizagem deve fornecer aos estudantes as condições que estes não dispõem em seus meios sociais e culturais de origem. Como afirmam Bourdieu e Passeron (2006, p. 113), uma educação verdadeiramente democrática deve ter como finalidade incondicional “permitir ao maior número possível de indivíduos a aquisição no menor tempo possível, da forma mais completa e perfeitamente possível, o maior número possível das competências que conformam a cultura educacional em um momento dado”, para que se possam neutralizar os fatores sociais que geram as desigualdades culturais e de desempenho na educação escolar.

Desta forma, a ação pedagógica poderia romper com a lógica que transforma os privilégios econômico e cultural herdados de suas famílias pelos estudantes em mérito individual. Esta lógica excludente leva à seleção e à hierarquização dos estudantes de acordo com o desempenho nos exames e provas, que são avaliadas como se fossem apenas o resultado do empenho e da competência individual, e não do acesso privilegiado aos bens culturais, valores e modos de comportamentos que são esperados pelos professores.
“No estado atual da sociedade e das tradições pedagógicas, a transmissão das técnicas e dos hábitos de pensamento exigidos pela educação nos remete primordialmente ao meio familiar. Portanto, toda democratização real supõe que os ensine ali onde os mais desfavorecidos podem adquiri-los, quer dizer, na escola; que se amplie o domínio do que pode ser racional e tecnicamente adquirido através de uma aprendizagem metódica em prejuízo do que é abandonado geralmente à sorte dos talentos individuais, ou seja, de fato, à lógica dos privilégios sociais […]” (Bourdieu, Passeron 2006, p. 110).

 

A escola pode contribuir para que todos os estudantes tenham acesso às obras culturais que as classes dirigentes querem manter como privilégio sob seu monopólio, a exemplo da frequência a museus, ao teatro, o aprendizado da dança, da música e de outras artes. Defendendo um ponto de vista que é facilmente compreensível, embora apresente uma aparência de uma concepção elitista e até conservadora, Pierre Bourdieu critica duramente o que ele denomina o “culto da cultura popular”, pois essa valorização das manifestações culturais populares mantém os mais pobres excluídos do acesso aos saberes dominantes e chega a ser inconsequente e falsamente revolucionário, em seu entendimento, pois termina por restringir o “povo” ou “enfurná-lo” em uma cultura que é desvalorizada socialmente.

Essa é uma consequência que ocorre quando a linguagem dos jovens negros norte-americanos é considerada “inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas”, ao mesmo tempo em que essa mesma linguagem “permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas para obtenção de empregos” (Bourdieu 2007, p. 93).

É o mesmo fenômeno que acontece nos exames vestibulares no Brasil, que não reconhecem a cultura e a linguagem populares que não tenham como origem a própria escola, possibilitando que sejam aprovados e conquistem as vagas mais concorridas aqueles detentores do capital cultural acumulado lentamente na escola e na convivência em famílias mais escolarizadas.

No entendimento de Pierre Bourdieu, quando os dominados entram em contato com as culturas dominantes, por mais contraditório que isso possa parecer, “a resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora” (Bourdieu 2004, p. 187), pois a estratégia de acumulação do capital cultural mais valorizado na hierarquia social pode aparecer inicialmente como uma submissão dos dominados diante das culturas dominantes, mas depois se transforma em uma estratégia de capacitação para a aquisição dos instrumentos intelectuais necessários para a subversão da ordem social.

Considerando-se que as desigualdades de acesso à cultura considerada legítima persistirão por um longo período, a única instituição que pode diminuir estas desigualdades é a escola. Para Bourdieu (1998, p. 62), “[…] a instituição escolar deve desenvolver em todos os membros da sociedade, sem distinção, a aptidão para as práticas culturais que a sociedade considera como as mais nobres”. Pois “[…] o domínio do código de decifração das obras culturais só pode ser adquirido mediante o preço de uma aprendizagem metódica e organizada por uma instituição expressamente ordenada para este fim” (iBidem, p. 63). Para se tornar verdadeiramente democrática, a escola deveria dar a mesma formação escolar e acesso aos bens culturais a todos os estudantes, independentemente de sua origem familiar.

As atividades pedagógicas desenvolvidas no cotidiano escolar deveriam ser orientadas pela pesquisa dos meios e estratégias mais eficientes para reduzir paulatinamente a distância entre a mensagem pedagógica emitida pelos professores e a mensagem pedagógica entendida pelos estudantes nos processos de recepção. Como o discurso dos professores muitas vezes aparece como incompreensível, o aprimoramento na capacidade real de decodificação dos conteúdos ministrados pelos professores por parte dos estudantes deveria ser a meta mais urgente a ser alcançada em toda atividade educativa.

Enquanto esse processo pedagógico de democratização da educação não ocorrer na prática, as classes sociais mais favorecidas continuarão a monopolizar a utilização da instituição escolar e a manipular os bens culturais para manter sua posição dominante na hierarquia social.

Os “Princípios para uma reflexão sobre os conteúdos de ensino”

As concepções pedagógicas que Pierre Bourdieu defendia desde a publicação do livro Os herdeiros…, de 1964, vão receber uma sistematização no trabalho que realizou como dirigente de uma comissão nomeada pelo Ministério da Educação Nacional, da Juventude e dos Esportes da França, no final de 1988. A comissão dirigida por Pierre Bourdieu e François Gros e da qual participavam vários intelectuais franceses foi encarregada de elaborar uma proposta de revisão dos conteúdos ensinados nas escolas francesas.

Em março de 1989 a comissão publicou o documento “Princípios para uma reflexão sobre os conteúdos de ensino”, que ficou conhecido como Informe do Collège de France. Embora tenha recebido a redação final de Bourdieu, o documento foi aprovado por unanimidade pelos membros da comissão encarregada de sua elaboração. O documento elaborado e publicado sob a direção de Bourdieu propõe sete princípios teóricos que deveriam orientar uma ampla reforma curricular na França. As concepções defendidas nesse documento nos interessam, particularmente, porque os princípios apresentados revelam uma grande coerência com o diagnóstico realizado por Bourdieu sobre o sistema de ensino francês em suas pesquisas de sociologia da educação. Também revelam sua preocupação política de intervir na sociedade francesa não apenas como pesquisador, mas também como um educador que propõe algumas diretrizes teóricas e práticas para uma reorganização da educação em seu país.

O Informe do Collège de France parte da necessidade de que os currículos sejam permanentemente rediscutidos para que incorporem tanto as inovações científicas como as demandas geradas pelas mudanças constantes que ocorrem na sociedade. Em vez de serem considerados definitivos, os programas devem sempre ser abertos, flexíveis para que constantemente possam ser revisados, funcionando mais como um parâmetro para a atuação de professores e estudantes do que como um código imperativo (iBidem, p. 117).

Para a rediscussão permanente dos conteúdos de ensino, os professores e alunos deveriam levar em consideração a necessidade de que fosse sempre objetivada uma aprendizagem ativa baseada na promoção da reflexão crítica, da criatividade e do espírito de invenção (Bourdieu 2010, p. 115), aliada às formas de raciocínio histórico e dedutivo, com a valorização da experimentação e da pesquisa tendo em vista a construção de novos conhecimentos (iBidem, p. 116). Seria, portanto, necessário mudar as formas de controle da aprendizagem e de avaliação dos resultados dos processos pedagógicos, substituindo os exames por uma avaliação contínua da capacidade de os estudantes aplicarem os conhecimentos obtidos na escola em situações práticas da vida.

Capacitar os estudantes no domínio metódico de técnicas de estudo e trabalho intelectual depende de que as atividades pedagógicas forneçam-lhes ferramentas intelectuais práticas, como a utilização de dicionário, uso de abreviaturas, exercícios sobre estilos de linguagem e comunicação, aprendizagem de diferentes técnicas de redação, elaboração de fichários, construção de banco de dados e pesquisa documental com o uso de equipamentos de informática, combinadas com os exercícios para o aprimoramento do raciocínio lógico-matemático, visando à leitura e à elaboração de tabelas, gráficos e indicadores estatísticos, além da orientação sobre como organizar as atividades de estudo de acordo com o tempo disponível, sabendo priorizar as atividades mais importantes com paciência e concentração. O ensino das línguas também deveria contribuir para que as pessoas fossem formadas em suas próprias línguas de origem, “ao mesmo tempo em que aprendem as línguas oficiais” (Bourdieu 2010, p. 149).

A intenção de apresentar estas diretrizes práticas para a realização de atividades pedagógicas no cotidiano escolar era intencionalmente, segundo Bourdieu (2010, p. 117), “uma maneira de contribuir para reduzir as desigualdades ligadas à herança cultural”. O alcance desse objetivo dependeria de uma melhora na capacidade de transmissão do saber, por parte dos educadores, de modo que sejam mais valorizados os conteúdos educativos realmente aprendidos pelos estudantes, e não aqueles programas enciclopédicos que na prática são irrealizáveis em virtude do tempo e das condições disponíveis.

A proposta sugere que uma quantidade infinita de saberes enciclopédicos que não serão realmente estudados, seja substituída por meio de uma melhor articulação dos conteúdos que possam realmente ser assimilados de forma crítica e reflexiva pelos estudantes, priorizando-se aqueles conteúdos interdisciplinares selecionados pelos professores. As atividades pedagógicas também deveriam combinar os estudos teóricos com os trabalhos práticos, as atividades de estudo individuais devendo ser complementadas pelos trabalhos coletivos realizados em grupos. Os professores teriam de combinar a autonomia para definir os conteúdos e métodos de ensino sob sua atribuição com a necessidade de planejamento coletivo das atividades pedagógicas.

Mas, para que formem a capacidade educativa necessária ao atendimento dessas demandas enormes, deveriam contar com a oportunidade de realizar uma formação continuada com licenças semestrais e anuais sabáticas, para que realizem novos cursos, pesquisas e adquiram novas qualificações, participando também de coletivos de reflexão e implementação de “um esforço permanente de busca pedagógica, ao mesmo tempo metódica e prática, que associe os professores diretamente comprometidos com o trabalho de formação” (iBidem, p. 120). No sétimo e último princípio apresentado no documento Informe do Collège de France é proposto que o ensino das conquistas universais do conhecimento científico seja combinado com as contribuições “próprias das ciências da natureza e das ciências do homem” (iBidem, p. 125) consideradas complementares entre si e não opostas. Por fim, o documento declara como fundamental o respeito à “pluralidade dos modos de vida” e das diferentes civilizações e “tradições culturais” (iBidem, p. 123), para que o ensino promova um acesso amplo à “história das línguas e das literaturas, das culturas e das religiões, das filosofias e das ciências” (iBidem, p. 124).

Muitos estudiosos da educação reconhecem a importância da crítica sociológica elaborada por Bourdieu para evidenciar as conexões entre as desigualdades de desempenho escolar e a reprodução das desigualdades sociais. Pode ser muito benéfico para a ação pedagógica que esses estudiosos e os educadores também dirijam sua atenção para as propostas pedagógicas que o próprio Bourdieu elabora visando à transformação das relações pedagógicas, de modo que possibilitem melhores e igualitárias condições de aprendizagem para os estudantes.
“Um trabalho pedagógico expressamente orientado pela pesquisa metódica de sua maior produtividade tenderia, pois, a reduzir conscientemente a distância entre o nível de emissão e o nível de recepção, seja elevando-se o nível de recepção ao comunicar ao mesmo tempo a mensagem e o código de sua decifração numa expressão (verbal, gráfica ou gestual) cujo código já é dominado pelo receptor, seja reduzindo-se provisoriamente o nível de emissão de acordo com um programa de progressão controlada em que cada mensagem tenha por função preparar a recepção da mensagem do nível de emissão superior, conseguindo assim produzir uma elevação contínua do nível de recepção, ao dar aos receptores os meios de adquirir, pela repetição da emissão e pelo exercício, a posse completa do código” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 138).

 

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A teoria das representações sociais de Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu y Louis Lassabatère

Pierre Bourdieu (esquerda) e seu amigo Louis Lassabatère (1)

Walter Praxedes

Pesquisar a respeito das representações sociais é outra forma de buscar entender como cada agente desenvolve as suas formas de “percepção, pensamento e ação” através das quais se realiza a apreensão do mundo e a orientação das condutas práticas no dia-a-dia e também nas suas relações com os outros agentes.

Pierre Bourdieu defende a concepção de que as representações sociais são influenciadas pelas ideias, valores, crenças e ideologias existentes anteriormente em uma sociedade, e que se fazem presentes na linguagem que utilizamos para nos comunicar, nas religiões e no chamado senso comum que compõem o habitus de cada agente, e também as concepções que circulam entre os participantes dos campos sociais, grupos profissionais e classes sociais.

É importante ressaltar que tais representações possuem uma origem histórica e coletiva. Muito embora as nossas representações sociais estejam alojadas no inconsciente e sejam influenciadas por representações existentes desde tempos passados, quando agimos e interagirmos com outros indivíduos possuímos a capacidade de formular e reformular nossas próprias representações e assim orientar os pontos de vista particulares que elaboramos sobre a realidade e as decisões práticas que adotamos.

Essas representações sociais são também fortemente influenciadas pelas posições sociais que ocupamos nas hierarquias existentes nos campos e entre as classes sociais. Assim, elaboramos as nossas representações para que estejam de acordo com os interesses consciente ou inconscientemente vinculados à posição que ocupamos nos campos e na sociedade.

Os indivíduos e grupos sociais de todos os tipos, de amigos, associações profissionais, classes sociais, “raças”, “etnias”, gêneros etc., desenvolvem representações específicas que dão sentido e explicam a sua posição e dos demais na sociedade. Como nos ensina Pierre Bourdieu (2004: p. 158), “as representações dos agentes variam segundo sua posição (e os interesses associados a ela) e segundo o seu habitus como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de uma posição no mundo social”.

As representações sociais podem ser consideradas como a matéria prima dos preconceitos construídos no pensamento humano a partir de esquemas inconscientes de percepção, avaliação e apreciação. Incorporamos e construímos esses esquemas inconscientes de entendimento através do aprendizado da língua e dos valores e ideias expressas pelas culturas nas quais convivemos desde o nascimento, ou seja, nas manifestações culturais populares, nas religiões etc.

Os preconceitos de gênero, étnicos e raciais contra um indivíduo ou coletividade ou sobre a condição social de alguém podem provocar como efeito a sua confirmação efetiva, pois os seres humanos são suscetíveis de serem influenciados pelos julgamentos que os outros realizam sobre eles. As pesquisas realizadas por Pierre Bourdieu indicam que na educação familiar e escolar, as expectativas que temos sobre o comportamento e o desempenho dos estudantes influenciam de fato nas suas condutas e resultados futuros.

Apontamentos

1- As representações incidem diretamente sobre aquilo que Pierre Bourdieu classifica como habitus do agente, definido como um “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações…”, ou seja, na terminologia empregada pelo sociólogo francês, trata-se de um processo de “interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade”. (Bourdieu, 1994, p. 60-61).

2- Os estereótipos e estigmas utilizados no cotidiano como princípios de classificação e de juízo empregados na prática possuem como conteúdo um conjunto de representações sociais já aceitas como verdadeiras ou válidas, sem questionamento. São formas de classificação simbólica do outro.

3- Essas formas de classificação práticas produzem efeitos sociais, revelando a conexão entre representações e realidade, podendo “contribuir para produzir o que aparentemente elas descrevem ou designam” (Bourdieu, 1996, p. 107). As representações produzem mudanças na realidade objetiva, que, por sua vez incide sobre as representações, o que torna necessário “incluir no real a representação do real” (Idem, p. 108).

4- Quando elaboramos nossas representações realizamos a percepção e a avaliação do existente, mas essa elaboração já é filtrada (ou condicionada) pelos pressupostos cognitivos, valores e interesses que possuímos. Simultaneamente a esta percepção da realidade para conhece-la, a representação elaborada tem também como conteúdo o interesse em influenciar as representações dos outros agentes, modificando-as segundo o ponto de vista que atende as necessidades de quem formula tais representações. Em uma simples conversa pode estar em jogo uma disputa em torno das representações que serão reconhecidas como mais ou menos adequadas à realidade.

5- A representação da realidade se transforma em realidade da representação ao produzir efeitos sobre os pensamentos e as práticas dos agentes. “As classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais” (Idem, p. 107).

6- No mundo social, “os agentes classificam os demais agentes” (Idem, p. 115) e classificam a si mesmos através de “estratégias simbólicas de apresentação e representação de si” que se “opõem às classificações e às representações (deles mesmos) que os outros lhes impõem” (Idem, p. 115).

7- “As representações que os agentes sociais possuem das divisões da realidade… contribuem para a realidade das divisões” (Idem, p. 114). O poder de classificar um indivíduo ou grupo social através de um conceito científico ou estereótipo consagrado pela cultura popular como raça, etnia, nacionalidade, “família” ou “sexo”, “negro”, “pobre”, “índio” revela a capacidade de impor significações.

8- As representações “podem contribuir para produzir o que aparentemente elas descrevem ou designam, ou seja, a realidade objetiva” (p. 107).

9- As representações mentais são “atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que os agentes investem seus interesses e pressupostos” (Idem, p. 108).

10- As representações objetivas (materiais como bandeiras, insígnias, símbolos, emblemas, cartazes etc.) são “estratégias interessadas de manipulação simbólica tendentes a determinar a representação (mental) que os outros podem construir a respeito tanto dessas propriedades como de seus portadores” (Idem, p. 108).

11- No mundo social ocorre “uma luta permanente para definir a “realidade”” (Idem, p. 112). Um debate político ou acadêmico é uma luta entre diferentes formas de classificação e definição da realidade e que pode fazer ou desfazer regiões, identidades, grupos, classes etc., em que os agentes estão buscando “modificar a realidade social ao modificar a representação dos agentes a esse respeito” (Idem, p. 118)

12. A ação política depende da capacidade de cada agente “produzir e impor representações (mentais, verbais, gráficas ou teatrais) do mundo social capazes de agir sobre esse mundo, agindo sobre as representações dos agentes a seu respeito” (idem, p. 117).

13- “As categorias segundo as quais um grupo se pensa, e segundo as quais ele representa sua própria realidade, contribuem para a realidade desse mesmo grupo” (Idem, p.123).

14- “Mesmo quando se limita a dizer com autoridade aquilo que é, ou então, quando apenas se contenta em enunciar o ser, ou autor produz uma mudança no ser” (Idem, p. 109).

15- “Pelo fato de dizer as coisas com autoridade, ou seja, diante de todos e em nome de todos, pública e oficialmente, ele [o autor] as destaca do arbitrário, sancionando-as, santificando-as e consagrando-as, fazendo-as existir como sendo dignas de existir, ajustadas à natureza das coisas, “naturais”” (Idem, p. 109); evidenciando assim “o poder quase mágico das palavras” (Idem, p.111) de influir sobre as percepções da realidade.

16- “A força social das representações não é necessariamente proporcional ao seu valor de verdade”, mas o resultado da correlação de “forças materiais num determinado momento” (Idem, p. 114).

17- Os sistemas escolares através dos currículos impõem significados sobre como devem se dar as relações no espaço escolar e sobre os conteúdos que deverão ser trabalhados como relevantes e dignos, definindo assim o que pode ser considerado irrelevante ou simplesmente desnecessário de estudar. Esse aspecto das lutas entre as representações no sistema escolar se expressa na definição da língua oficial de um país, por exemplo, “através da imposição da língua “nacional”, o sistema comum de categorias de percepção e de apreciação capaz de fundar uma visão unitária do mundo social” (Idem, p. 111).

18- “O mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto” (Idem, p. 112);

19- Toda teoria é um programa de produção de representações sobre o pensamento e sobre a realidade, ou seja, sobre a produção da capacidade de percepção da realidade através de “categorias de percepção do mundo social” (Idem, p. 123) que possibilitam descrever segundo tais categorias quais são e como se relacionam os indivíduos e grupos sociais;

20- “A ciência transforma a representação do mundo social e, ao mesmo tempo, o próprio mundo social, ao viabilizar práticas ajustadas a essa representação transformada” (Idem, p. 122-123). Apresentada como neutra e meramente descritiva a ciência se transforma em prescritiva ao condicionar as percepções que os agentes passam a ter sobre as possibilidades de intervir na realidade.

Enfim, as representações são ideias, conceitos, concepções, valores, princípios e imagens com os quais pensamos e atribuímos significado à realidade, às circunstâncias que geram as condições de existência de cada indivíduo ou grupo humano. As nossas práticas, as nossas atitudes cotidianas são orientadas pelas representações que formamos em nossas mentes sobre quem somos, o que devemos fazer e como devemos interagir com as outras pessoas.

Nota:

  1. Pierre Bourdieu, dix ans déjà. http://www.larepubliquedespyrenees.fr/2012/01/23/pierre-bourdieu-dix-ans-deja,224322.php

 

 

Referências

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