A violência simbólica dos sistemas de ensino e a reprodução da ordem social

Walter Praxedes

Na realização das pesquisas que resultaram no livro A reprodução — elementos para uma teoria do sistema de ensino, Bourdieu e Passeron (1992) retrabalharam as informações discutidas em seus estudos anteriores para a elaboração em parceria do livro Os herdeiros, os estudantes e a cultura, publicado em 1964, e dos artigos científicos “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura” e “Campo intelectual e projeto criador”, ambos de autoria de Bourdieu e publicados em 1966, além da pesquisa de Bourdieu, Darbel e Schnapper (2003) sobre a frequência aos museus na Europa.

 

Como mais um exemplo do que ocorre com muitas obras clássicas, o livro A reprodução geralmente é muito mais comentado, combatido e até incompreendido do que realmente lido com atenção. A reprodução é, portanto, uma obra de sistematização de um conjunto de conceitos teóricos construídos na prática de pesquisa, e várias vezes reformulados para que teoria e dados empíricos se tornassem coerentes entre si.

Na primeira parte do livro é apresentada uma teoria sociológica para a investigação dos sistemas de ensino como um mecanismo a) de “comunicação e inculcação de uma cultura legítima” entre estudantes e professores e em toda a sociedade, b) para a realização do processo de seleção dos agentes que vão ocupar as diferentes posições hierárquicas de poder existentes na estrutura da sociedade de forma legítima e, portanto, aceita pela maioria dos membros da sociedade em questão.

Assim, “comunicação, inculcação de uma cultura legítima, seleção e legitimação” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 11) seriam as funções mais importantes desempenhadas pelo sistema de ensino em uma sociedade, de acordo com a teoria proposta pelos autores.

Os autores advertem que esse resultado das ações dos professores, gestores educacionais e estudantes não é intencional ou conscientemente visado por eles, mas uma consequência não planejada, até mesmo desconhecida ou dissimulada pelas práticas dos agentes no cotidiano escolar. A imposição de conteúdos curriculares e de valores arbitrariamente escolhidos para serem ministrados nas atividades pedagógicas ocorre muitas vezes de maneira não consciente ou planejada, e até diferentemente dos objetivos que os agentes declaram publicamente.

Alguns estudiosos interpretaram essas afirmações de Bourdieu e Passeron como conservadoras, como se eles concordassem que os sistemas de ensino devessem desempenhar a função de imposição de uma ordem social baseada na desigualdade e na hierarquia através da educação escolar. Na entrevista que concedeu à professora Maria Andréa Loyola em 2000, portanto dois anos antes de falecer, Bourdieu refutou esta crítica a seus estudos:

“Para mim, ainda hoje é surpreendente, como foi naquela época, que o fato de dizer que uma instância como o sistema de ensino contribui para conservar as estruturas sociais, ou dizer que as estruturas tendem a se conservar ou se manter — o que é uma constatação —, é surpreendente que esta constatação seja percebida como uma declaração conservadora. Basta pensarmos um pouco para percebermos que o mesmo enunciado sobre a existência de mecanismos de conservação pode ter um caráter revolucionário… Quando o sociólogo diz que tal instituição contribui para conservar, imediatamente se atribui um juízo de valor ao seu enunciado: contribui para conservar e isso é bom e eu concordo, ou contribui para conservar e isso é ruim e temos que fazer uma revolução” (Bourdieu 2002, p. 13-14).

O objetivo da obra A reprodução é revelar a relação de força, de imposição, que está oculta nas relações pedagógicas aparentemente justas, bem-intencionadas e pacíficas, mas que contribuem para “a transmissão do poder e dos privilégios” nas sociedades capitalistas (Bourdieu; Passeron 1992, p. 14).  Por isso a noção de violência simbólica se torna central nessa obra.

A violência simbólica da ação pedagógica

Para a imposição de conteúdos educacionais arbitrários é necessário o estabelecimento de uma relação de violência simbólica que, segundo Bourdieu e Passeron, seria próprio da ação pedagógica. Embora esta seja uma ação considerada não violenta, na prática pedagógica ocorre a imposição de um conteúdo simbólico como o mais relevante, adequado e necessário, enfim, o mais legítimo, para o ensino e o aprendizado dos estudantes. No texto “A escola conservadora…”, de 1966, Bourdieu já havia apresentado uma discussão sobre a noção de violência simbólica, afirmando que ela ocorre, por exemplo, quando os dominados aceitam uma nota baixa, uma reprovação no ano letivo ou mesmo a exclusão do sistema com base em critérios de seleção pelo mérito que eles próprios defendem. Os eliminados do sistema legitimam a própria eliminação, difundindo a ideologia de que o bom desempenho escolar é o resultado do esforço e dos dons de cada indivíduo.

Através da relação de violência simbólica, o poder político que controla os sistemas de ensino estatais substitui as “técnicas brutais de imposição” por “técnicas mais sutis” (Bourdieu; Passeron 1992, p. 14), pois a violência pedagógica de imposição de um conteúdo curricular e a seleção dos estudantes que serão os mais bem-sucedidos no sistema não podem aparecer como uma violência social arbitrária e injustificável.

O conceito de violência simbólica foi construído para expressar aquelas situações em que os ocupantes do poder chegam “a impor significações” e a “impô-las como legítimas”, dissimulando que são impostas e assim conquistando o apoio dos dominados, que reconhecem como legítima a dominação que sofrem, ao mesmo tempo em que desconhecem que estão submetidos a esta força exercida pelos detentores do poder simbólico, como um sistema de ensino, o Estado, os meios de comunicação, igrejas etc.

“Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força”. (Bourdieu, Passeron 1992, p. 19-20)

Para os dois autores a ação pedagógica seria uma forma de violência simbólica exercida pelos detentores do poder ao realizar imposição de conteúdos e valores arbitrários, denominados na obra de “arbitrário cultural” (iBidem, 20). A ação pedagógica é realizada pelos familiares e pelos professores. Na escola a ação pedagógica difunde a cultura das classes dominantes como a única legítima, por isso “o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima (iBidem, 21).

A educação é considerada nesta teoria uma forma de imposição e inculcação de uma cultura que atende às necessidades, interesses e valores das classes dominantes de uma sociedade, através da relação de comunicação entre os participantes da ação educativa, sejam pais e filhos ou professores e alunos, e através da seleção de conteúdos pedagógicos e da exclusão ou marginalização de outros conteúdos.

Ao esconder que tais conteúdos representam e correspondem aos “interesses materiais e simbólicos” das classes dominantes, ao distribuir desigualmente o capital cultural valorizado na sociedade representado pelos certificados e diplomas com mais prestígio, a ação pedagógica contribui para a manutenção e perpetuação das desigualdades e da hierarquia de poder da estrutura social, e assim contribui para o processo de reprodução social.

A violência simbólica é exercida nas relações de comunicação entre os professores, detentores da autoridade pedagógica para realizar sua ação pedagógica. A autoridade pedagógica de um professor depende do reconhecimento que lhe é dado pelos estudantes, e é ela que garante sua legitimidade para coordenar os processos de ensino e aprendizagem que ocorrem no cotidiano escolar. Para que isso ocorra, os educadores buscam manter uma relação de comunicação com os estudantes “que dissimule as relações de força que a tornam possível” (iBidem, 26).

A relação professor-aluno deixa de aparecer como uma relação de força e passa a ser vista como uma relação puramente pedagógica de formação educacional dos estudantes e, portanto, legítima, pois aparentemente não é realizada através da coerção física, da autoridade e da violência simbólica dos educadores.

 

O poder de imposição de um conteúdo curricular não é percebido como uma violência simbólica, mas como um exercício de “autoridade legítima” por parte do professor, que assim conquista o consentimento e o apoio dos educandos para realizar seu trabalho pedagógico (iBidem, p. 29).O poder de imposição de um conteúdo curricular não é percebido como uma violência simbólica, mas como um exercício de “autoridade legítima” por parte do professor, que assim conquista o consentimento e o apoio dos educandos para realizar seu trabalho pedagógico (iBidem, p. 29).

 

O trabalho pedagógico e a construção do habitus

O trabalho pedagógico é considerado por Bourdieu e Passeron um lento e prolongado “trabalho de inculcação” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 44) que ocorre no processo de construção do habitus em cada estudante, de modo que possibilite a interiorização dos princípios da cultura dominante como “um sistema de esquemas de percepção, de pensamento, de apreciação e ação” (iBidem, 47) que vão orientar as condutas práticas dos agentes ao longo de suas trajetórias para que sejam conformes a esses princípios dominantes.

Os autores afirmam que “o trabalho pedagógico é um substituto da coerção física” (iBidem, 48), pois difunde a ideia de que a violência simbólica exercida pela educação escolar “não tem relação com as relações de força entre os grupos ou classes” (iBidem, 74), quando, na realidade, está difundindo de forma dissimulada os princípios que tornam possível a manutenção das hierarquias existentes na sociedade, como as divisões entre classes sociais proprietárias e não proprietárias dos meios de produção, governantes e governados etc.

Embora tenha uma “aparência de neutralidade”, para que não seja percebida como uma violência simbólica, a ação pedagógica contribui para que as classes dominantes exerçam seu poder sobre as classes dominadas por intermédio da educação, que além de “inculcar” os conhecimentos próprios das culturas dominantes, realiza a inculcação da concepção de que a cultura das classes dominantes é superior às demais e a mais legítima.

O Estado, como uma instituição dominante nas sociedades modernas, institui os sistemas de ensino com o objetivo de manter e perpetuar, ou seja, reproduzir a ordem dominante. Os dominados que não possuem o capital cultural valorizado pelas classes dominantes aprendem que é legítima a dominação que sofrem em virtude exatamente da falta desse capital cultural. Uma situação como essa leva, por exemplo, a fazer com que os estudantes das classes dominadas e seus familiares aceitem o ensino profissionalizante e técnico como inferior ao ensino universitário denominado ensino superior (iBidem, 52).

Outro aspecto relevante para Bourdieu e Passeron é o fato de que o respeito inculcado às hierarquias sociais e a submissão dos dominados às culturas dominantes levam à valorização das disciplinas de maior prestígio como a medicina e o direito, concomitantemente a uma “desvalorização do saber e do saber fazer” (iBidem, 53) próprios das manifestações das culturas populares, como, por exemplo, o direito baseado nos costumes, a medicina doméstica, o artesanato, a linguagem e as manifestações artísticas (iBidem, 53).

Uma consequência deste processo de violência simbólica contra os saberes e práticas populares acaba sendo o estabelecimento “de um mercado para as produções materiais e sobretudo simbólicas cujos meios de produção (a começar pelos estudos superiores) são o quase monopólio das classes dominantes (por exemplo, diagnóstico médico, conselho jurídico, indústria cultural etc.) (iBidem, 53).

É importante enfatizar que esta concepção sociológica de que a educação escolar contribui para a reprodução da ordem social vigente já vinha sendo construída há vários anos por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, como vimos anteriormente nas discussões sobre a obra Os herdeiros — os estudantes e a cultura, de 1964. No artigo científico “Campo intelectual e projeto criador”, que é essencial para entendermos o processo de construção do conceito teórico de “campo” e foi publicado em 1966 na revista Les Temps Modernes, dirigida pelo filósofo Jean-Paul Sartre, Pierre Bourdieu já afirmava
[…] que os sistemas de ensino enquanto instituição, especialmente preparada a fim de conservar, transmitir e inculcar a cultura canônica de uma sociedade, devem muitas de suas características de estrutura e de funcionamento ao fato de que devem desempenhar essas funções particulares. Conclui-se também que muitos dos traços característicos do ensino e dos mestres, que as descrições mais críticas não percebem senão para denunciar, pertencem à definição da função de ensino. Assim, por exemplo, seria fácil mostrar que a rotina e a ação rotinizante da escola e dos mestres, tão bem estigmatizadas pelas grandes profecias culturais quanto pelas pequenas heresias (muitas vezes desprovidas de qualquer outro conteúdo que não seja esta denúncia), pertencem sem dúvida, inevitavelmente, à lógica de uma instituição investida fundamentalmente da função de conservação cultural (Bourdieu 1968, p. 133-134).
Os conhecimentos, os valores e as condutas práticas difundidas pela educação escolar influenciam de tal maneira a construção dos habitus dos professores e alunos, que irradiam para toda a sociedade aqueles saberes, formas de pensamento e de agir adequadas à manutenção da ordem social existente. Segundo Bourdieu (1992a, p. 205), “a cultura escolar propicia aos indivíduos um corpo de categorias de pensamento que tornam possível a comunicação”, tornando estabelecido um repertório comum de temas relevantes, concepções filosóficas, teorias científicas, formas de arte e problemas a serem pensados e discutidos nos currículos, que assim são consagrados pelo próprio sistema escolar como mais importantes e universais. É desta maneira que cada estudante recebe da educação escolar um conjunto de esquemas de pensamento ou maneiras de raciocinar que orientam sua percepção sobre a realidade e organizam suas ideias. Uma formação escolar comum a uma geração de estudantes garante a difusão das disciplinas e dos problemas que são considerados mais adequados pelos detentores do poder do Estado e do sistema econômico. “Na verdade”, escreve Bourdieu (1992a, p. 206), “os indivíduos ‘programados’, quer dizer, dotados de um programa homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, constituem o produto mais específico de um sistema de ensino”.

Gera-se, assim, uma correspondência entre as formas de pensamento existentes entre os membros de uma sociedade e a estrutura social vigente, com sua divisão hierárquica do mundo social entre dominantes e dominados. Se no passado medieval europeu cabia à religião promover esta integração social através das formas de pensamento, nas sociedades modernas é a educação escolar que garante a estabilidade da ordem social, pois “consagra as divisões sociais, inscrevendo-as simultaneamente na objetividade das distribuições materiais e na subjetividade das classificações cognitivas” (WaCquant 2007, p. 57).

Bourdieu no Brasil

“A leitura que se fez da obra de Bourdieu no Brasil dependeu, evidentemente, de um uso e um debate bastante peculiares. Se, de um lado, a organização por Sergio Miceli da primeira coletânea de Bourdieu em língua portuguesa, A economia das trocas simbólicas (1974), tornou mais acessíveis os textos sobre educação, cultura, intelectuais, religião e produção artística, de outro lado, parecem ter sido as análises acerca da educação que inicialmente ganharam maior divulgação. Ao se tentar entender o espaço e a força que suas explicações ganharam no campo educacional brasileiro examinando, por exemplo, um amplo conjunto de escritos divulgados em periódicos especializados, constata-se a forte presença da obra A reprodução e uma lenta incorporação de outras análises do sociólogo conforme se evidencia no estudo “As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro através de periódicos publicados na área”, de 2001, publicado pela Revista Brasileira de Educação, de Afrânio Catani, Denice Catani e Gilson Pereira. Assim, é possível compreender as inúmeras controvérsias políticas acerca do autor, na década de 1970 e início dos anos 1980, quando ao se ler principal e às vezes exclusivamente A reprodução, se considera que, embora crítica, a sua análise é desmobilizadora. A leitura nesse momento estará aprisionada pela divisão entre “reprodução e transformação”. Deixava-se de lado, na maioria das interpretações, a ideia de que ao mostrar o modo de funcionamento da escola identificando o alcance de sua ação e explicitando suas práticas, Bourdieu fornecia elementos que permitiam intervir nela. Essas interpretações, comuns também aos seus críticos franceses, resultariam, anos mais tarde, na desatenção com a qual se considerou sua ideia de uma “pedagogia racional”, apresentada em Os herdeiros” […] (Catani 2012, p. 23-34).

 

Referências

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Pierre Bourdieu e a educação: a construção do habitus e os campos sociais

A sociologia da educação proposta por Pierre Bourdieu é formada por um conjunto de pressupostos teóricos que possibilitam a pesquisa e a reflexão sobre os fenômenos educacionais que ocorrem nas formas de convivência no interior das famílias, grupos sociais, mediante o acesso aos produtos dos meios de comunicação e aos processos educativos escolares.

Os pressupostos filosóficos e antropológicos da teoria de Bourdieu levam em consideração que cada ser humano é submetido a um processo de socialização que o forma como um ser social. Ao longo do tempo esse processo possibilita a construção do agente humano por meio das relações sociais de afetividade e de aprendizagem, transformando ininterruptamente o corpo e a mente, de maneira que a percepção e a forma de agir de cada ser humano vão sendo modeladas pelas relações de convivência e pelas necessidades práticas e simbólicas que devem ser satisfeitas.

Para nos construirmos como seres humanos dependemos do ponto de vista dos outros a nosso respeito, em uma palavra, dependemos do reconhecimento que nos é dado pelos seres humanos à nossa volta, e, portanto, dependemos de realizar no dia a dia o que Bourdieu denomina como uma “luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social socialmente reconhecido, ou seja, numa palavra, à humanidade” (Bourdieu 2007, p. 295).

Para se tornar humano o agente tem de “ser-percebido” pelos outros. Os processos educativos que ocorrem no interior das famílias e na convivência social, e também os processos pedagógicos que ocorrem na escola se apoiam na busca de reconhecimento, ou seja, na busca da consideração dos outros por parte de cada agente. Segundo as palavras do próprio Bourdieu (2007, p. 201), “[…] pode-se supor que o trabalho pedagógico em sua forma elementar se apoia num dos motores que estão na raiz de todos os investimentos ulteriores: a busca de reconhecimento”.

Combinando-se essa busca de reconhecimento por parte dos agentes com a forma de tratamento ou reconhecimento que os seres humanos lhes dão, ocorre o processo de construção de cada membro da sociedade. Nas relações familiares, nas formas de convivência social como grupos de amigos e vizinhança, associações comunitárias e religiosas, bem como nos sistemas escolares ocorrem as relações sociais que se combinam de diferentes maneiras para a preparação dos membros da sociedade em que estão inseridas, contribuindo assim para a existência dessa sociedade ao longo do tempo.

A essa preparação dos membros da sociedade para a vida social por intermédio da educação, Pierre Bourdieu (1992a, p. 296) denomina processo de construção do habitus, um termo originário da língua latina, que na teoria sociológica da educação que estamos estudando recebe uma ampla significação e é proposto para sintetizar o conjunto de influências que cada ser humano sofre desde seu nascimento, como a aprendizagem da língua, dos costumes, das formas de convivência e tratamento entre as pessoas, crenças religiosas, valores morais e ideias sobre a realidade; mas que também contribuem para capacitar cada um de nós a ter suas próprias ideias, valores e atitudes práticas diante da realidade, muitas vezes diferenciadas em relação à educação recebida no meio familiar ou na escola.

A teoria social construída por Bourdieu pode ser considerada uma síntese de um conjunto muito vasto e heterogêneo de influências filosóficas, sociológicas, antropológicas e políticas, apropriado por ele para construir também uma teoria de como se realiza a pesquisa científica.

O termo habitus é utilizado, assim, como um conceito teórico que sistematiza um conjunto de saberes construídos ao longo da história da filosofia e das ciências sociais. Envolve todas as influências que cada ser humano assimila dos meios sociais e culturais que mantêm contato, que vão se fixando em sua mente, como um “depósito de experiências”, mas que também o tornam capacitado para agir na prática de uma maneira inovadora, para resolver os novos problemas que surgem na convivência social e satisfazer suas necessidades e suas concepções.

Os seres humanos interiorizam as condições sociais e culturais em que vivem e se relacionam entre si, construindo assim sua capacidade de percepção e avaliação da realidade, de modo que decidam pela adoção daquelas condutas práticas que melhor se ajustem à situação existente, mas que também respeitem seus próprios valores, seus interesses e suas capacidades.

O conceito de habitus possibilita o estudo das condutas práticas dos agentes que são resultantes da assimilação das pressões e influências externas, e que também o impulsionam a se adaptar com flexibilidade, de forma criativa ou improvisada, aos desafios colocados pelas novas situações enfrentadas por eles.

Nas atitudes práticas de cada agente são explicitados os valores que ele cultiva, os saberes e habilidades que aprendeu ao longo de sua história de vida, incluindo as posturas corporais, o uso da língua, sua dicção, sotaque, modos de expressão e gestos, mas também sua forma de raciocinar logicamente, classificar e avaliar as situações de acordo com seus valores, suas crenças e suas ideias.

“Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro” (Bourdieu 2009, p. 87).

“Assim, por exemplo, o habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares (e em particular, da recepção e da assimilação da mensagem propriamente pedagógica), o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou das experiências profissionais) e assim por diante, de reestruturação em reestruturação” (Bourdieu 1994, p. 80).

Os campos sociais

Com base em suas experiências anteriores, cada agente realiza a percepção das condições presentes em que vive e orienta seus comportamentos futuros. Desta maneira o habitus possibilita que cada ser humano seja dotado de um senso prático que orienta suas estratégias para viver em sociedade e se inserir nos meios sociais, profissionais, políticos e culturais em que atua, denominados por Bourdieu de campos sociais. Ao vivermos em sociedade nos relacionamos com outros seres humanos.

Com o aprofundamento da divisão social do trabalho, essas relações sociais levam ao desenvolvimento e à estruturação de setores sociais e econômicos como a agricultura, a indústria, os serviços e o comércio; o surgimento dos profissionais especializados para o trabalho nos sistemas simbólicos como o direito, a ciência, a educação escolar, a literatura, as artes, o esporte, o direito, a publicidade, os meios de comunicação e o jornalismo.

Também ocorre a consolidação do aparelho de Estado com seus corpos de funcionários técnicos e especializados na administração burocrática da sociedade, juristas, policiais, políticos etc., que atuam, ainda, segundo a clássica divisão social e política entre trabalhadores braçais e trabalhadores intelectuais; especializados em serviços operacionais de rotina, cuidado da saúde e da integridade de outras pessoas. Assim, vão se estruturando historicamente os campos especializados de atuação em que os agentes sociais se relacionam entre si, com certa autonomia na definição de suas regras e formas de funcionamento.

Na busca do entendimento de como se processam essas relações entre os agentes sociais que ocorrem no interior dos campos especializados de produção de bens materiais e simbólicos, Pierre Bourdieu criou sua teoria dos campos (Bourdieu 1968, 1983, p. 89-91). De acordo com a teoria dos campos podemos nos aproximar do entendimento de como as relações entre os participantes dos campos dependem mais da posição hierárquica que ocupam, com seu prestígio, renda e poder próprios, que da forma de interação direta ou amizade que pode existir entre os indivíduos.

Nos campos, seus participantes lutam pela obtenção de um reconhecimento dos outros participantes, reconhecimento que, uma vez obtido, Bourdieu (2007, p. 202) chama de “capital simbólico”, que expressa a “glória, honra, crédito, reputação, notoriedade” conquistadas. Esse capital simbólico “[…] existe sempre na e pela estima, pelo reconhecimento, pela crença, pelo crédito, pela confiança dos outros, logrando perpetuar-se apenas na medida em que consegue obter a crença em sua existência” (iBidem). O conceito de “capital” é empregado por Bourdieu para expressar todas aquelas características dos agentes e grupos sociais que são valorizadas como importantes e disputadas nas relações sociais de cooperação ou de conflito no interior dos campos.

Nas sociedades baseadas na luta pela concentração de capitais, as disposições dos agentes se tornam “propriedades”, com maior ou menor valor de mercado. Como exemplo, podemos citar os conhecimentos e os diplomas escolares obtidos pelos estudantes que, no mercado de bens simbólicos ou campos, são mais valorizados ou menos valorizados e se transformam em uma determinada quantidade de “capital cultural”. Até mesmo a consideração e o respeito que os indivíduos recebem dos outros agentes e que podem se traduzir em uma posição social que simbolize certo prestígio podem ser chamados de “capital social” (Bourdieu 2008, p. 16).

A posse de recursos econômicos é a forma de propriedade que Bourdieu chama de capital econômico. Por isso, inspirado no livro O capital, de Marx, ele afirma que “o capital tende sempre para o capital”, pois na lógica das relações sociais de competição nas sociedades capitalistas, a tendência mais observada é a de que os agentes que detêm mais capitais tenham também possibilidades maiores de ampliação dos capitais acumulados.

Todos os agentes que participam de um campo estabelecem relações entre si, direta ou indiretamente, sendo que a posição de cada agente só pode ser definida na comparação com as posições dos demais agentes. Para conhecermos como se estrutura um campo, temos de conhecer como seus membros se relacionam entre si e suas vidas são influenciadas pelas regras de funcionamento do campo em que atuam e pela quantidade de capitais de que dispõem.

Mas cada agente tem também a capacidade de influenciar de alguma maneira as relações no campo por meio de suas ações práticas e concepções. Bourdieu defende a ideia de que uma característica presente em todos os campos sociais que estudou é a divisão entre dominantes e dominados, os primeiros controlando as posições de poder e prestígio e ditando as regras de funcionamento do campo, enfim, controlando a maior parte dos capitais em disputa, enquanto os dominados lutam para melhorar sua posição, por meio de estratégias práticas de submissão às regras do campo ou de tentativa de criar novas regras que sejam mais favoráveis a seus interesses. Essas lutas entre dominantes e dominados no interior dos campos são o resultado das estratégias práticas que os agentes executam para que seus objetivos e valores sejam realizados, como, por exemplo, a acumulação da maior quantidade possível dos capitais em disputa no campo. Mas tais estratégias práticas dos agentes dependem das condições sociais e políticas que foram se constituindo na história do campo em questão, dos resultados dos conflitos ocorridos anteriormente e da correlação de forças entre os membros do campo na competição que realizam para a conquista das posições sociais consciente ou inconscientemente almejadas.

Na teoria de Bourdieu, cada campo é dotado de uma ordem simbólica, que estabelece os parâmetros aceitáveis para a atuação de seus membros. É a existência desta ordem simbólica que justifica e dá legitimidade para que os dominantes exerçam seu poder e estabeleçam as regras vigentes, impondo seus pontos de vista.

A existência desta ordem simbólica depende da capacidade de os dominantes exercerem a violência simbólica sobre os dominados, impondo suas regras e valores como os únicos válidos nas disputas no campo, e fazendo com que os dominados aceitem, mesmo que inconscientemente, as posições subalternas que ocupam, contribuindo assim para sua própria dominação.

O habitus e as estratégias para a atuação nos campos

Na definição do conceito de habitus, Bourdieu emprega a noção de disposições como sendo constituídas como resultado das influências do mundo social e dos campos sobre os agentes, tornando-os predispostos a uma “maneira de ser” e de agir, de interagir com os outros com tendências a adotar certas condutas, e não outras, com propensões e inclinações próprias (Bourdieu 1994, p. 62).

Nas condutas dos agentes, portanto, já está implícita uma antecipação do futuro, uma teleologia, que indica a construção de estratégias práticas que orientam as condutas na vida social no interior dos campos sociais em que eles entram em relação com outros agentes, segundo as posições ocupadas de acordo com as regras e condicionamentos próprios de cada campo.

Segundo as palavras de Bourdieu, “o habitus está no princípio de encadeamento das ações que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica (iBidem, p. 61).

O autor apresenta, assim, uma definição do conceito de estratégia como sendo aquelas motivações que orientam as condutas práticas dos agentes, e que são “objetivamente ajustadas às chances objetivas” (iBidem, p. 63) de que eles alcancem a realização de seus valores, crenças, interesses e desejos, sem que para tanto seja necessária a elaboração consciente e racional de tal estratégia, que pode até ser diferente daquilo que racional e conscientemente os agentes concebem.

As aspirações e condutas práticas são construídas já ajustadas às possibilidades objetivas presentes nas estruturas dos campos de modo que os agentes muitas vezes nem se deem conta de que recusam o que lhes é recusado pelas estruturas (Bourdieu 1994, p. 63).

Na busca pelo reconhecimento concedido por outros agentes sociais, mas também na busca de condições adequadas para satisfazer suas necessidades e interesses, de acordo com seu habitus, cada ser humano adota uma conduta prática não inteiramente racional, para realizar suas aspirações, sonhos e expectativas, e que se traduz em estratégias para a atuação nos campos em que intuitivamente sente maior afinidade e percebe que tem maiores chances de alcançar suas metas.

Podemos ilustrar esta concepção de estratégia com alguns exemplos: um jovem que decide pela estratégia de entrar em uma escolinha de futebol para buscar reconhecimento e se inserir profissionalmente no campo do esporte; outro jovem decide estudar para passar em um exame vestibular e ingressar no campo universitário para adquirir um diploma de ensino superior que o credencie para realizar uma carreira profissional; um terceiro jovem, após o serviço militar obrigatório, decide seguir carreira militar.

Nestes três exemplos, cada jovem é dotado de um habitus específico, formado nas condições econômicas em que vive sua família, de acordo com a aspiração profissional que construiu ao longo de sua vida e de acordo com a quantidade de capital cultural de que dispõe, e intuitivamente realiza uma estratégia de se tornar jogador de futebol, médico ou militar. A estratégia que se realiza na opção prática de cada um dos jovens dos exemplos acima é condicionada tanto por seu habitus, como pelas estruturas dos campos do esporte, universitário e militar, cada qual demandando um conjunto de características específicas de seus membros e uma quantidade determinada de capital cultural.

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Repensando a recepção do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Resumo: 

Após esboçar uma história da recepção da obra de Marx nas instituições universitárias brasileiras, este artigo propõe uma interpretação histórica e sociológica sobre a influência do marxismo na pesquisa educacional realizada no âmbito dos programas de pós-graduação criados no interior das faculdades de educação do país, após a Reforma Universitária instituída pelo regime autoritário em 1968.

Palavras Chaves: Marxismo – Pensamento Educacional Brasileiro

Introdução

Nos últimos trinta anos o marxismo se consolida como uma das matrizes teóricas das pesquisas educacionais realizadas no interior dos departamentos de história e filosofia da educação de várias universidades brasileiras. Já  não era sem tempo, diriam os adeptos desta orientação teórica, pois desde que o jornal A Reforma, órgão oficial do Partido Liberal, referiu-se pela primeira vez, no Brasil, ao “sr. Karl Marx, chefe da Internacional”, em 1879, o marxismo já provocava uma  polêmica crescente e apaixonada no país.

Tomando como sugestão metodológica uma nota contida em um trabalho de Azanha (1990:  37) “… para que não se alegue que na crítica aos textos examinados, situamo-nos numa posição teórica exterior …àquela dos autores desses textos…”, para investigarmos a determinação social do advento do marxismo nas pesquisas das  áreas de história e filosofia da educação no Brasil recorremos a um procedimento utilizado por  Marx e Engels em A ideologia alemã segundo o qual

“… não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não se parte dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida representa-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários dos seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia… Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência” (MARX e ENGELS, 1982:  14).

Em outras palavras, trata-se de aplicarmos os pressupostos marxistas acima para a análise da recepção do próprio marxismo pelo pensamento educacional brasileiro, o que implica em considerarmos esta modalidade de pensamento como um dos “discursos” existentes no interior dos departamentos de história e filosofia da educação do país em decorrência da “existência de grupos e classes que generalizam de modo diverso a sua experiência da realidade social global e a sua busca de auto-identidade coletiva” (COUTINHO,  1987: 40).

Com a ressalva de que não se pretende,   neste artigo, resvalar para um mecanicismo que leve a uma derivação da origem sócio-econômica dos pesquisadores a sua opção pela abordagem marxista dos problemas educacionais, pode-se conceber a existência de nexos entre as paixões, opções ideológicas, participação em grupos e instituições, interesses particulares e a realização de uma trajetória acadêmica identificada com o marxismo.

A opção metodológica acima pode ser justificada com o raciocínio de que “… as condições de possibilidade do sujeito científico e as de seu objeto não são mais que uma e mesma coisa, e a todo progresso do conhecimento das condições sociais de produção dos sujeitos científicos corresponde um progresso no conhecimento do objeto científico, e inversamente” (BOURDIEU, 1996: 237).

Um segundo pressuposto deste artigo foi o de não  restringirmo-nos ao estudo de “…um único marxismo específico, para não falar mesmo de um “verdadeiro” marxismo contraposto a outros falsos e “desviantes”. Em princípio, fazem parte dessa história todas as estruturas de pensamento que se declaram derivadas de Marx ou influenciadas por seus escritos…” (HOBSBAWM, 1983:13).

Ao discutirmos sobre  as especificidades do marxismo institucionalizado nas faculdades de educação brasileiras, levamos em consideração a idéia de que “não existe um único marxismo, mas sim muitos marxismos, frequentemente empenhados (como se sabe) em  ásperas polêmicas internas, a ponto de negarem uns aos outros o direito de se declararem marxistas”, como escreveu Hobsbawm (1983: 14).

No Brasil, esta disputa pelo monopólio da abordagem marxista mencionada pelo historiador inglês pode ser exemplificada pela atitude de um autor como Dermeval Saviani afirmar que somente a partir da realização do seu esforço pessoal e de outros colegas do programa de Doutorado em Educação da PUC/SP ‚ “…possível situar com nitidez a presença da concepção dialética na filosofia da educação brasileira” (SAVIANI, 1984: 288). Independentemente da pertinência ou não desta afirmação, o fato de um autor manifestar publicamente o desejo de consagrar sua obra como preeminente comprova a existência da luta pelo monopólio do que seria o “verdadeiro marxismo” no pensamento educacional brasileiro, o que torna explícita a luta  pela delimitação do que pode ser “reconhecido como ‘marxista’  pelos únicos dignos de serem reconhecidos como marxistas entre aqueles que se reconhecem ‘marxistas'” … e que,  nos anos setenta, no Brasil, “…seria menos encarniçada se seu móvel efetivo não fosse, na realidade o imenso capital simbólico que o marxismo representa…” (BOURDIEU, 1996: 163-165).

I – Recepções do marxismo no Brasil

Como escreveu Evaristo de Moraes Filho (1991: 45), apesar de alguns exemplos isolados e mesmo com a fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922, é depois  de 1930 que a obra de Marx passa a ser mais divulgada em terras brasileiras. Mesmo assim, se concordarmos com uma avaliação de Paulo Emílio Sales Gomes,  na década de trinta “…o marxismo em vigor era, em sua maioria, constituído de teses e documentos de congressos e conferências da Internacional, particularmente resoluções sobre o problema dos países semicoloniais e visões esquemáticas da questão do imperialismo inglês e norte-americano. Além do Manifesto, um Bukarin ou Plekanov, e O Estado e a Revolução, quase não se liam os clássicos. Um pouco mais tarde leu-se a História do Socialismo de Beer. Pelas divulgações sabia-se o que era “mais-valia” e que na sociedade existem classes com interesses contraditórios, o que era importante. Mas ninguém nunca leu O Capital. Do Brasil não se sabia nada” (citado por MOTA, 1980: 123).

Não obstante o fato de que a influência do legado de Marx possa ser verificada nas obras de autores do final do século XIX e primeiras décadas do século seguinte como Euclides da Cunha, Lima Barreto, Antonio Picarolo, Octavio Brandão, Castro Rebelo e Astrojildo Pereira, em vários balanços da história dessa abordagem teórica é Caio Prado Junior o autor consagrado  como o principal precursor de uma utilização mais efetiva e sistemática do marxismo no pensamento social brasileiro, com a publicação de sua obra Evolução política do Brasil, de 1933.

Especificamente na  área educacional, é ainda nos anos trinta que um educador considerado marxista como  Paschoal Lemme publica um trabalho sobre o ensino dos adultos e organiza cursos para operários no Distrito Federal. Confirmando a avaliação de Paulo Emílio, citada acima, um depoimento do próprio Paschoal Lemme esclarece algumas características do marxismo que o influenciava: “… Só algum tempo mais tarde, lá  pelo ano de 1932 e, principalmente, a partir de 1933, influenciado pelos acontecimentos político-sociais que vinham se desenrolando no mundo e no país, é que comecei a me interessar mais de perto pelo estudo dessas questões. Creio que, por essa época, li o Manifesto Comunista e algum resumo de O Capital, a obra fundamental de Karl Marx, e confesso que essa leitura me causou um grande impacto…” (LEMME, 1988: 213).

Em obras publicadas nos anos 40 e 50, Caio Prado Júnior confirmaria seu estilo marxista de pensar a realidade brasileira tentando superar as limitações do marxismo oficial do PCB. Com correlata intenção, Antonio Cândido lança em 1957 sua obra Formação da literatura brasileira, que em abordagem dialética, traça um painel da literatura nacional contextualizado histórica e socialmente.

O marxismo entraria de vez para a rotina universitária no Brasil a partir de 1958, quando um grupo de intelectuais da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, liderado pelo filósofo José Artur Giannotti, passa a estudar sistematicamente O Capital, de Marx, e desenvolve, posteriormente, uma considerável produção intelectual em várias disciplinas científicas e filosóficas. O contexto e os objetivos do “seminário” podem ser discutidos a partir de excertos de um depoimento de Roberto Schwarz, que foi um dos participantes:

“Com a morte de Stalin, em 1953, a divulgação das realidades inaceitáveis da União Soviética e da vida interna dos partidos comunistas ganhou em amplitude, também entre adeptos e simpatizantes. A incongruência com as aspirações libertárias e o espírito crítico do socialismo ficara irrecusável. Neste quadro, a volta a Marx representava um esforço de autoretificação da esquerda, bem como de reinserção na linha de frente da aventura intelectual… Com efeito, a crítica ao marxismo vulgar, bem como …as barbaridades conceituais do PCB, era um dos seus pontos de honra…. Isto posto, o contexto imediato do seminário não era a esquerda nem a nação, mas a Faculdade de Filosofia.  Em seus departamentos mais vivos, ajudada pelo impulso inicial dos professores estrangeiros, esta fugia das rotinas atrasadas e buscava um nível que fosse para valer, isto é, referido ao padrão contemporâneo de pesquisa e debate… Pois bem, a ligação deliberada da leitura de O Capital ao motor da pesquisa universitária iria modificar o quadro e deixar a cultura marxista anterior em situação difícil… Seja como for, a idéia de uma esquerda marxista sem chavões, à altura da pesquisa universitária contemporânea, aberta para a realidade, sem cadáveres no armário e sem autoritarismos a ocultar, era nova…” (SCHWARZ, 1998: 99-114)

Os anos do tal seminário, 1958 a 1964, correspondem a um período de radicalização política e ideológica no país, no qual a luta pelas reformas de base animaria um amplo leque de forças políticas e sociais empenhadas na busca de soluções pacíficas para os problemas sociais. Mas havia, ainda, os partidos e movimentos mais à esquerda no cenário político, propugnando a tomada do poder por uma aliança interclassista que, a exemplo da Revolução Cubana, promovesse uma ruptura com o sistema capitalista internacional e iniciasse a reconstrução da sociedade brasileira em moldes socialistas. Nesse terreno fértil o marxismo, em suas várias acepções, chegou a influenciar amplamente a produção cultural do país.

Para nos restringirmos aos reflexos daquela conjuntura histórica na vida acadêmica, em relação à radicalidade do movimento que defendia uma ampla reforma universitária, os governos militares que assumem o poder após o golpe político de 1964 passam a reorganizar o setor educacional do país com vistas em adequá-lo ao modelo de desenvolvimento econômico baseado no binômio intervenção estatal e internacionalização. Em consequência, nos anos de 1966 a 1969‚ é criado um novo modelo universitário no país com o objetivo de “agregar a racionalidade administrativa à universidade para torná-la mais moderna e adequada às exigências do desenvolvimento. Mas, politicamente, essa racionalidade administrativa acaba aumentando, no seio da própria universidade, o controle dos órgãos centrais sobre toda a vida acadêmica e, externamente, o controle da própria universidade pelos órgãos de administração federal de ensino” (ROMANELLI, 1980: 232).

As faculdades de educação serão criadas a partir de 1969 com o duplo objetivo de formar mestres e doutores em educação e pessoal qualificado para o magistério de segundo grau, administração, inspetoria, supervisão escolar e orientação educacional; e também coibir o pensamento crítico e contestatório que era produzido no interior das faculdades de filosofia. Como declarou o professor João E.R. Villalobos, avaliando o processo de liquidação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,  “… uma radicalização política a partir do receio da subversão levara, pois, à extinção daquela Faculdade: desmembrado em diversas unidades isoladas umas das outras, o núcleo de contestação perdia sua coesão, sendo mais fácil mantê-lo sob controle” (citado por FÉTIZON, 1984: 155).

Mesmo com a aposentadoria compulsória imposta a vários professores que desenvolviam uma produção intelectual de inspiração marxista, notadamente de alguns dos participantes do seminário sobre O Capital mencionado acima, e com a repressão e  a  censura que se seguiram ao Ato Institucional nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, nos anos posteriores à reforma universitária “… não se pode  negar que, contra todos os ventos e marés, a produção científica e cultural continua firme e empenhada em vários núcleos… A autonomia relativa de reflexão e debate foi descentrada dos grandes anfiteatros para centenas de salas de seminário, de graduação e pós-graduação, e uma série de trabalhos sobre movimentos sociais, vida política, tendências ideológicas, dependência etc. vão surgindo….” (MOTA, 1980: 262).

II – Especificidades do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Apesar de sumária, esta exposição sobre a recepção do marxismo no Brasil permite o início de uma reflexão sobre a posição relevante que esta concepção passa a ocupar nas pesquisas educacionais desenvolvidas nos programas de pós-graduação das faculdades de educação do país na década de 1970.  Tal relevância pode ser  verificada  na quantidade de teses, dissertações, artigos e livros cuja modalidade de reflexão teórica empregada pelos autores tem  como matriz assumida  a obra do pensador alemão Karl Marx e de vários de seus continuadores, e que,  de um modo geral, podem ser classificadas:

a) dentro da tendência denominada por Libâneo (1984) como “pedagogia progressista”, ou, ainda, “pedagogia crítico-social dos conteúdos”, da qual Saviani e Cury são os principais expoentes e constaria no pensamento educacional brasileiro como a abordagem marxista primeiro se consolidou no país após a Reforma Universitária que criou as Faculdades de Educação. O próprio Saviani esclarece que

“…em um texto escrito em novembro de 1969 para servir de conclusão à cadeira de filosofia da educação que então ministrava no curso de pedagogia da PUC/SP, esbocei uma primeira tentativa de encaminhar dialeticamente o problema dos objetivos e meios da educação brasileira… Num trabalho cuja redação se completou em 1971, me posiciono metodologicamente em termos dialéticos, embora ainda sob influência da fenomenologia. Progressivamente, creio ter logrado ultrapassar esta influência elaborando, de forma cada vez mais orgânica, a perspectiva dialética da filosofia da educação entendida em termos histórico-críticos. É, porém, ao findar a década de 70 que a preocupação com a perspectiva dialética ultrapassa, na filosofia da educação, aquele empenho individual de sistematização e se torna objeto de esforço coletivo. Talvez o marco objetivo dessa passagem possa ser identificado na tese de doutoramento de Carlos Roberto Jamil Cury, Educação e contradição: elementos para uma teoria crítica do fenômeno educativo, defendida em outubro de 1979, tese esta que, enquanto era produzida, foi objeto de discussão sistemática no interior do Programa de Doutorado em Educação da PUC-SP. Penso que, a partir daí, é possível situar com nitidez a presença da concepção dialética na filosofia da educação brasileira…” (SAVIANI, 1984: 288);

b)  como “concepção dialética da educação”, classificação enfatizada por Gadotti; autor que a partir de sua atuação como docente da disciplina de filosofia da educação no curso de pedagogia da Unicamp, segundo seu próprio relato (GADOTTI, 1987: 121-122) se empenhou em realizar um “esboço de uma educação e de uma pedagogia inspiradas no marxismo”, trabalho consubstanciado inicialmente em seu livro Concepção dialética da educação (1983);

c) como a tendência denominada pouco elogiosamente por Saviani como “crítico-reprodutivista”, e que, entre muitas outras, inclui algumas obras de Cunha e Freitag. Neste caso, vale a ressalva de que ambos enfatizam em alguns dos seus trabalhos a incorporação do instrumental metodológico marxista através da mediação das interpretações de Marx realizadas por  autores como Baudelot e Establet (no caso de  Cunha, no livro Uma leitura da teoria da escola capitalista, de 1982), e Gramsci e Althusser (influências claras no trabalho de Bárbara Freitag intitulado Escola, Estado e sociedade – de 1979).

III – Problematizando a recepção do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Embora a importância do marxismo no período em questão seja constatável  na influência  intensa, extensiva e difusa, exercida sobre uma variada produção teórica de difícil mensuração até mesmo de fora do campo tradicionalmente reconhecido como marxista, seria temerário o propósito de realizarmos uma discussão exegética dos textos educacionais visando a inferência das formas muitas vezes sutis de  incorporação do pensamento de Marx e de seus continuadores. Facilmente poderíamos cair no erro de atribuir a origem de uma noção ou conceito a Marx quando, na realidade, poderia ser proveniente de outra fonte. Entraríamos, então, em uma polêmica sem fim. Um autor como Paulo Freire, por exemplo, que recebe influência do marxismo nos anos setenta, sem recusar as influências cristãs recebidas anteriormente, dificilmente poderia ser considerado como marxista em sentido estrito. O mesmo ocorrendo com outro autor proeminente no pensamento educacional brasileiro como Rubem Alves, que em meio a inspirações retiradas das obras de Nietzsche, Freud, Barthes, Kierkegaard e Santo Agostinho, não recusa a influência de Marx, “… um Marx escondido, mas de quem empresta a idéia de alienação, uma dialética do indivíduo” (GADOTTI, 1987: 55).

Levando-se em consideração que o trabalho acadêmico dos autores classificados como marxistas citados acima foi realizado no âmbito das faculdades de educação do país, notadamente nos departamentos de História e Filosofia da Educação, em um contexto político no qual o marxismo era o inimigo priorizado pela chamada ideologia de segurança nacional do regime iniciado com o golpe de 1964, ainda está por ser realizada uma investigação que esclareça como foi possível o desenvolvimento de um número considerável de teses, dissertações, livros e artigos com um discurso acadêmico cujos seus correspondentes no campo da política prática – os grupos de orientação marxista de oposição ao regime envolvidos ou não nos movimentos de guerrilha urbana e rural então existentes no país – sofriam uma violenta repressão física. Pode-se indagar, ainda: a) por que esta influência do marxismo no pensamento educacional brasileiro  não se propagou anteriormente, ficando restrita a um pequeno grupo de intelectuais, uma vez que esta modalidade de reflexão aparece no Brasil ainda no século XIX; e b) por que esta incorporação do marxismo ocorreu justamente a partir de 1969, após a  reforma universitária que tinha como um dos seus objetivos sufocar suas  possibilidades de desenvolvimento. São questões que esperamos que sejam respondidas em estudos futuros, um pouco mais afastados das paixões exaltadas que ainda inibem as pesquisas sobre tal problemática.

Um outro conjunto de questões diz respeito à capacidade dos trabalhos acadêmicos realizados com esta orientação metodológica  abordarem os problemas teóricos e práticos da educação brasileira. É pertinente rediscutirmos a avaliação crítica realizada por Azanha, segundo a qual muitas pesquisas educacionais que se pretendiam fundamentadas metodologicamente no marxismo incorreram em uma modalidade de “…’abstracionismo pedagógico’ , entendendo-se a expressão como indicativa da veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a ‘princípios’ ou  ‘leis’ gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas” (AZANHA, 1990: 24). Apesar de Azanha dirigir suas críticas  a algumas obras de Dermeval Saviani e Bárbara Freitag, argumentando que estes autores revelam em alguns dos seus textos a “… confusão epistemológica entre a elaboração teórica que se desenvolve pelo relacionamento de idéias e noções gerais (e por isso mesmo necessariamente abstratas) e a investigação empírica que opera a partir da teoria mas que não pode se resumir na simples ilustração desta”, pode-se questionar até que ponto não se tornou uma prática muito frequente entre os autores marxistas da  área educacional um certo desprezo pela busca de dados empíricos sobre as múltiplas determinações do concreto em privilégio de explicações gerais consagradas, que seriam simplesmente adaptadas em primeiro lugar, à realização de uma análise crítica do capitalismo brasileiro e das teorias e práticas educacionais consideradas intencionalmente ou de forma involuntária como reprodutoras das relações sociais capitalistas e, em segundo lugar, à defesa de uma “nova educação”, com novas práticas educacionais que levem a uma “nova sociedade” e  a um “novo homem”.

Primeiras conclusões

Em decorrência dos problemas levantados acima, no decorrer dos estudos realizados chegamos às seguintes conclusões, que podem também ser encaradas como hipóteses diretrizes para o prosseguimento de uma pesquisa sobre a história da institucionalização do marxismo nas faculdades de educação de várias universidades brasileiras.

Em relação ao contexto histórico, político e universitário no qual se desenvolveu a produção do pensamento educacional marxista no Brasil, considerando-se que o desenvolvimento do marxismo nas faculdades de educação é obra de um profissional do saber voltado para a realização do seu labor intelectual, pode-se supor que  uma de suas precondições  foi a expansão do número de programas de pós-graduação ocorrida após a Reforma Universitária de 1968, que ampliou consideravelmente a possibilidade dos profissionais  universitários se dedicarem à carreira acadêmica; e que o desenvolvimento de um pensamento educacional com tal filiação metodológica é resultado de uma estratégia consciente de alguns grupos de pesquisadores.

Também podemos supor que a intensificação do autoritarismo estatal ocorrida  após a decretação do Ato Institucional n. 5, de dezembro de 1968, e que ampliou a censura à livre circulação de idéias e a repressão aos professores e estudantes oposicionistas,  tenha contribuído para que uma modalidade crítica e radical de pensamento como o marxismo se tornasse uma opção política e teórica aos indivíduos e grupos presentes na universidade, na época, fato que indica também que mesmo durante o regime militar a universidade brasileira resguardou  uma certa autonomia para a produção realizada no seu interior.

Uma decorrência do raciocínio acima é a suposição de que os autores mencionados chegaram até o marxismo primeiramente por convencimento político e, posteriormente, optaram pela realização de suas pesquisas com base na metodologia e  nas proposições teóricas do materialismo histórico e dialético. Com isto, também estamos supondo que muitos desses autores participavam de grupos, partidos e entidades políticas, e que essa presumida vinculação influiu de alguma maneira na realização de sua obra acadêmica.

O fato de os autores em questão não terem realizado suas obras no interior dos partidos comunistas e de outros agrupamentos marxistas pode ser explicado tanto pela  improbabilidade do tipo de reflexão teórica desejada ser desenvolvida nos limites da clandestinidade imposta pelo regime autoritário a estes grupos, quanto em razão de  que as organizações marxistas privilegiavam a produção de textos e documentos voltados para o embate político imediato e negligenciavam a necessidade de pesquisas e reflexões teóricas que pudessem resultar de um processo de maturação lenta.

Quanto às especificidades do marxismo desenvolvido nas faculdades de educação das universidades brasileiras, supondo-se que  alguns autores chegaram até o marxismo já  na maturidade ou próximos desta, tanto a  apropriação da obra de Marx e da de seus continuadores, quanto a forma de adaptação desta modalidade de pensamento aos  problemas educacionais do Brasil serão influenciadas   pela   bagagem teórica e filosófica anterior à opção de cada pesquisador pelo marxismo e pela recepção de autores e obras consideradas marxistas originários de outros países, como por exemplo, Lenin, Gramsci e Lukács,  Manacorda, Suchodolski e Snyders, entre outros.

Pode-se presumir que tenha ocorrido uma divisão do trabalho entre os teóricos marxistas em questão, uns se dedicando à elaboração da “grande teoria” e outros utilizando a teoria elaborada pelos primeiros para a realização de pesquisas voltadas para a resolução de problemas colocados pelas atividades de ensino.

A despeito da referência comum a Marx, não se pode dizer que haja  uma unidade metodológica no pensamento educacional  marxista produzido no Brasil, antes, isto sim, deve-se conceber que esta modalidade de pensamento foi desenvolvida no país sob o signo da divergência e do debate teórico e político intenso, e que eram potencializados por problemas advindos de circunstâncias exteriores ao campo científico.

Para entendermos o  “abstracionismo pedagógico” apontado por Azanha e apresentado acima, pode-se supor que tal característica tenha se desenvolvido como uma consequência involuntária da intenção,  presente em vários autores enfocados, de produzir um discurso que não fosse taxado de simplesmente ideológico, ou de superficial e vulgar – crítica costumeiramente dirigida à produção teórica dos Partidos Comunistas -, o que levou a um nível de formalização e de racionalização do discurso filosófico e científico que acabou relegando a um segundo plano o   tratamento das chamadas múltiplas determinações do concreto.

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Marx e a educação

Walter Praxedes

marx PhotoScan
Engels, de pé, à esquerda da foto, ao lado de Marx e suas filhas Laura, Eleanor e Jenny (da esquerda para a direita) – nas férias de 1864. (1)

Um ponto de partida que consideramos promissor para o estudo da dimensão educativa da obra do pensador alemão Karl Marx é a reflexão sobre a terceira de suas 11 Teses contra Feuerbach. Nela o autor se coloca em uma perspectiva oposta à de autores positivistas como Comte e Durkheim, os quais concebiam a educação como um processo unilateral que torna os sujeitos individuais meros receptáculos de uma formação educacional imposta pelo sistema social. Para Marx, que criticava o pensamento materialista anterior a ele, “a doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado” (MARX, 1978b, p. 52).

A tese acima revela que, para Marx, a educação não é algo pronto a ser imposto às cabeças vazias das novas gerações, como prevê, por exemplo, a concepção educacional durkheimiana. A perspectiva marxiana considera a educação como uma relação social que se estabelece entre os sujeitos de uma sociedade. Como a sociedade é encarada como um processo social em mutação constante, a educação é um elemento que deve ser considerado também em permanente estado de transformação. Se, por um lado, Marx considera que os homens são o produto das circunstâncias, por outro, ele atribui a esses homens a capacidade de modificar as circunstâncias em que vivem, pois a ação humana, no seu entendimento, influencia os processos de transformação da sociedade. Se os educadores, pais, professores e demais sujeitos sociais influenciam a formação das novas gerações, eles próprios, por sua vez, estão em um contínuo processo formativo, que resulta de seu relacionamento entre si e com as novas gerações.

I – A educação como uma dimensão da vida social

Na obra de Marx, contudo, não se pode dizer que se encontra um saber sistemático e organizado sobre a educação, embora esta seja um componente presente em inúmeros momentos em suas reflexões sobre a história e sobre as sociedades capitalistas. Marx considera a educação não como uma realidade externa que possui existência própria, mas como uma relação social entre os indivíduos e classes sociais, uma expressão da forma de consciência da sociedade e, ainda, uma prática social que se desenvolve em combinação com as demais esferas da vida social, como a forma em que está dividido o trabalho entre os membros da sociedade, as tecnologias existentes e o modo como os seres humanos se relacionam para dividir os resultados do trabalho. Segundo tal perspectiva, a educação não pode ser devidamente entendida se for apenas analisada isoladamente, fora da totalidade social de que faz parte, influenciando os demais fatores da sociedade e, ao mesmo tempo, sendo por eles influenciada, conforme pode ser inferido da seguinte passagem da obra Contribuição à crítica da economia política:

“Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência” (MARX, 1978a, p. 129-130).

Alguns estudiosos marxistas, entretanto, tiraram conclusões apressadas sobre esta relação entre a estrutura econômica da sociedade, acima considerada pelo próprio Marx como a ‘base real’ que sustenta as instituições jurídicas, políticas e as concepções intelectuais, científicas e ideológicas, atribuindo sempre aos fatores econômicos o poder de explicar as causas verdadeiras e últimas dos fenômenos sociais. No pensamento de Marx, fica claro como os acontecimentos no interior de uma sociedade podem influenciar uns aos outros, e apenas mediante o estudo deste relacionamento recíproco é que se pode chegar a um conhecimento satisfatório sobre a totalidade social. Até mesmo Engels, que já foi acusado, entre outros, pelo filósofo Jean-Paul Sartre de reduzir o materialismo histórico a uma forma de conhecimento unilateral que explica todos os fenômenos sociais como se estivessem determinados pelos interesses econômicos, no final de sua vida esclareceu em uma carta que:

“[…] segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso afirmando que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu ulterior desenvolvimento e em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas. Há uma ação recíproca de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento econômico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples equação de primeiro grau” (MARX; ENGELS, 1983, p. 547)

Antes de darmos continuidade, contudo, à nossa pesquisa sobre a concepção marxiana que situa a educação como uma determinada forma de consciência e de prática social própria de um determinado modo de produção social, devemos esclarecer que a noção de modo de produção pode ser entendida como uma noção teórica a ser testada com as informações sobre a própria realidade histórica, ou seja, como uma totalidade que se constitui na história e expressa o estágio de desenvolvimento das chamadas forças produtivas combinadas com as relações sociais de produção, mas jamais pode ser entendida como uma estrutura rígida que determina totalmente as ações humanas e o movimento histórico de forma linear, unilateral, necessário e ininterrupto, como propõe o evolucionismo positivista.

Em seus estudos, Marx chegou à conclusão de que a humanidade havia passado na história por vários modos de produção, que podem coexistir em diferentes espaços geográficos em períodos históricos muito próximos, como a comunidade primitiva, passando pelas sociedades antigas, onde é explorado o trabalho escravo, pelo modo de produção asiático, o feudalismo europeu, baseado na servidão, chegando ao capitalismo, fundamentado no trabalho assalariado e na propriedade privada dos meios de produção pelo capitalista e que anuncia, por sua vez, a possibilidade do surgimento do modo de produção socialista, que transforma em coletiva a propriedade privada.

As forças produtivas representam a capacidade de uma coletividade transformar a natureza em recursos para a sua vida material. Isso ocorre por meio do trabalho que os seres humanos realizam. Por sua vez, o trabalho de transformação da natureza depende de um saber técnico a respeito das formas mais eficientes de atuar sobre a natureza, utilizando-se de instrumentos que multiplicam as forças do animal humano e são acumulados como saberes que propiciam uma determinada produtividade do trabalho. Deve ser mencionado, ainda, que os seres humanos vão-se diferenciando do restante do reino animal ao conceberem tanto as formas mais eficientes de trabalhar quanto os meios utilizados para melhor utilizar as técnicas de trabalho criadas, organizar a cooperação entre os trabalhadores, a forma de dividir o trabalho entre os diferentes sexos e entre as pessoas de diferentes idades, por exemplo.

Já as relações sociais de produção expressam a maneira como os humanos se relacionam durante a realização das atividades do trabalho social, distribuindo entre os membros da coletividade o poder de decisão sobre quais atividades devem ser realizadas, quais técnicas serão empregadas no trabalho, quem terá acesso ao uso dos meios de trabalho como a terra ou as ferramentas. Em outras palavras, as relações sociais entre os membros de uma coletividade definem quem trabalha, em quais atividades as pessoas trabalham, em que ritmo o trabalho será realizado, durante quanto tempo cada trabalhador realizará a sua atividade e, por último, como será distribuído o resultado do trabalho, ou seja, como será repartida a riqueza produzida e quem terá o direito de ter ou não propriedade sobre os recursos essenciais para a vida social.

Entre as forças produtivas e as formas de relacionamento social podem ocorrer inadequações, conflitos, contradições, gerando problemas para a sobrevivência da sociedade em questão que se expressam pelas crises e revoluções. Nas palavras de Marx:

“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social” (MARX, 1978a, p. 130)

II – Educação e alienação

Por considerar que o ser humano compõe o mundo natural, mas como um ser social que só satisfaz as suas necessidades ao se relacionar com outros seres humanos, ao mesmo tempo que se relaciona com a natureza por meio do trabalho, pode-se dizer que a alienação do trabalho é a negação desta unidade entre o homem e o mundo, uma vez que a sua atividade de trabalho não leva à satisfação de suas necessidades materiais e perverte a sua relação com os outros seres humanos. Para Marx, como demonstram os seus escritos de juventude que ficaram conhecidos como Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844 (MARX, 1979), é a propriedade privada que leva uma minoria dos seres humanos a se apropriar dos meios que devem estar à disposição de todos. O direito à propriedade é a negação da propriedade a outrem, portanto, é sua alienação em relação aos meios que satisfariam as suas necessidades humanas. Em síntese, a alienação é o que separa o ser do destino de sua própria sociedade, consequentemente, dos demais seres humanos, membros da espécie, e também do restante da natureza, já que o ser individual, para alcançar e manter a propriedade individual, nega esta mesma possibilidade aos demais seres humanos.

A propriedade privada transforma o trabalho humano em uma atividade desumana, uma vez que o trabalhador passa a executar uma atividade cujo resultado, os bens produzidos ou o lucro que advirá de sua venda no mercado, pertencerá ao capitalista. Como o trabalhador trabalha apenas para satisfazer o seu interesse em receber o salário, para ele a atividade de trabalho em si é desgastante, enfadonha e quase sempre sem sentido; isso leva o capitalista a controlar rigidamente o tempo de trabalho do trabalhador, forçando-o a se empenhar além de suas forças físicas e intelectuais.

“O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho, mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas, mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo, mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo, mas sim a outra pessoa” (MARX, 1979, p. 91)

Uma educação simplesmente adequada às demandas da divisão do trabalho capitalista confirma a alienação, pois difunde entre os seres humanos uma consciência social parcelarizada, que aceita a divisão entre concepção e execução, entre trabalho intelectual e braçal, e reduz o trabalhador às características de sua ocupação funcional, impedindo-o de realizar todas as suas potencialidades humanas. Uma educação alienada torna-se alienante ao formar os futuros trabalhadores como seres unilaterais, especializados, que não estão interessados nas consequências de sua atividade de trabalho para os demais seres humanos, mas estão preocupados apenas com o salário que receberão após a atividade. De uma atividade desenvolvida no espaço público, para satisfazer uma necessidade ao mesmo tempo privada e social do ser humano, o trabalho alienado pode gerar tanto a rejeição à atividade pública de trabalho quanto o seu contrário, que é a realização do trabalho como uma compulsão e um fim em si mesmo.

“Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do homem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada. Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva agora aparecem ao homem apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter a sua existência” (MARX, 1979, p. 95)

A alienação é uma relação social entre um ser humano proprietário que está preocupado em acumular mais propriedade privada, com outro ser humano, o trabalhador, que se submete à realização de um trabalho que o mutila, porque esta é a condição para a sua sobrevivência enquanto não-proprietário. Os seres humanos pervertem, assim, o seu relacionamento social ao se transformarem em meros objetos diante dos produtos criados por eles próprios.

Para superar essa condição de alienação, não basta a consciência sobre o que causa a alienação e sobre as suas consequências. Para Marx, a superação da alienação será o resultado da praxis, ou seja, de uma ação consciente dos seres humanos para acabar com a alienação. Uma educação que critique a dimensão alienada do trabalho e da vida pública pode se constituir no primeiro passo para uma ação transformadora da condição de alienação em que a humanidade se encontra no capitalismo.

III – A divisão social do trabalho e a reprodução das relações sociais

Estamos reconhecendo, assim, que os grupos humanos, deliberadamente ou não, sempre desenvolveram formas de preparar os seus membros para o trabalho, educando-os para a realização de determinadas atividades produtivas e sobre a maneira como devem relacionar-se com os outros membros da coletividade. No pensamento marxiano, a educação pode ser considerada como uma superestrutura social que guarda uma correspondência com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão social do trabalho. Para utilizarmos os termos do próprio Marx:

“O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência […] Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transtorna com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim” (1978a, p. 130)

Ao lermos atentamente uma passagem da obra A ideologia alemã (MARX; ENGELS, 1982), escrita por Marx em parceria com Engels, na qual esclarecem o seu método de estudo, mesmo de forma implícita, fica claro que os autores concebiam a educação como um dos componentes do conjunto da vida social:

“[…] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não se parte dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida representa-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia […] Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência” (MARX; ENGELS, 1982, p. 14).

Em outras palavras, trata-se de aplicarmos os pressupostos marxistas acima para a análise da concepção educacional presente na obra marxiana. Na sociedade capitalista, a manutenção de uma diferença social básica entre, de um lado, os proprietários dos meios de produção e, de outro, um grande número de despossuídos, que para sobreviver necessitam vender a sua força de trabalho para os primeiros, garante a reprodução contínua da estrutura social estratificada. Esta diferença econômica básica coloca em oposição os assalariados e os capitalistas, gerando, socialmente, a diferença entre as classes proletária e burguesa.

As classes sociais se constituem historicamente a partir do local ocupado pelos sujeitos no processo de produção material das sociedades modernas e mantêm uma relação de complementaridade e de antagonismo entre si. No pensamento de Marx, as classes sociais se constituem em duas fases consecutivas:

“na primeira, a classe constitui somente uma classe em relação a outra, devido à sua posição na organização sócio-econômica e às relações específicas que resultam desta posição. Na segunda fase, a classe já toma consciência de si mesma e de seus interesses, e concebe para si uma missão histórica, e se constitui como uma classe no verdadeiro sentido da palavra, como um grupo de ação política potencial, que intervém como tal nas lutas sociais e nos conflitos econômico-políticos e que contribui como tal para as mudanças sociais e para o desenvolvimento da sociedade” (STAVENHAGEN, 1984, p. 290)

Os trabalhadores reproduzem a sua força de trabalho gerando, alimentando e educando filhos que ocuparão os seus lugares no futuro. O crescimento econômico, como explica Lefebvre, pressupõe a reprodução ampliada tanto da maquinaria (capital fixo) quanto da força de trabalho (capital variável que assume a forma de salários).

A educação torna-se, assim, uma forma de preparar as novas gerações de proprietários e de não-proprietários para as posições que irão ocupar na hierarquia do processo de produção. A este respeito, Henri Lefebvre recorda que a crítica pedagógica francesa evidenciou que na ‘escola de massas’, onde ocorre a instrução primária,

“os métodos, os locais, a arrumação do espaço, reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar sem prazer […] O espaço pedagógico é repressivo, mas esta estrutura tem um significado mais vasto do que a repressão local: o saber imposto, engolido pelos alunos, vomitados nos exames, corresponde à divisão do trabalho na sociedade burguesa, serve-lhe, portanto, de suporte […] A escola prepara proletários e a universidade prepara dirigentes, tecnocratas e gestores da produção capitalista. Sucedem-se as gerações assim formadas, substituindo-se uma pelas outras na sociedade dividida em classes e hierarquizada […] A escola e a universidade propagam o conhecimento e formam as gerações jovens segundo padrões que convêm tanto ao patronato como à paternidade e ao patrimônio. Há disfunções quando o saber crítico inerente a todo o conhecimento dá origem a revoltados. Às funções maciças da escola e do liceu sobrepõe-se a função elitista da universidade, que filtra os candidatos, desencoraja ou afasta os que se desviam, permite o establischment (LEFEBVRE, 1984, p. 226).

A concepção segundo a qual a escola é um local de democratização do saber encobre a contradição fundamental da sociedade capitalista, escondendo que a escola classista é mais um dos espaços destinados à reprodução da hierarquia econômica, entre proprietários e não-proprietários; da hierarquia social, entre burgueses e proletários; e da hierarquia política, entre governantes e governados. Tal fato pode ser ilustrado pela frequência como os indivíduos que ocupam as posições atribuídas aos profissionais com maior tempo de escolarização provêm das classes e camadas sociais que tiveram as mesmas oportunidades educacionais em épocas anteriores.

IV- Marx e os problemas educacionais do seu tempo

O Marx que tinha uma concepção de conjunto sobre a história humana e sobre o modo de produção capitalista não pode ser dissociado do militante político, que tinha como incumbência a formulação de propostas viáveis para os problemas do momento, que fariam parte das bandeiras de luta da Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual foi um dos fundadores e militantes mais destacados. Ao discutirmos o posicionamento político e as propostas de Marx a respeito das medidas educacionais adequadas à sua época, temos que levar em consideração, portanto, que o autor estava preocupado com os problemas mais imediatos e que exigiam que fossem colocados em prática alguns “indispensáveis antídotos contra as tendências de um sistema social que degrada o operário a mero instrumento para a cumulação de capital, e que transforma pais, devido às suas necessidades, em proprietários de escravos, vendedores dos seus próprios filhos” (MARX; ENGELS, 1983, p. 83).

As propostas educacionais de Marx evidenciam, assim, as nuanças de um pensamento que mantinha como horizonte a transformação revolucionária da sociedade, sem, contudo, abster-se diante dos desafios colocados pela prática política em uma sociedade de classes.

É pelo estudo do relacionamento entre as classes sociais, ou seja, entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores destituídos desses meios, que se pode interpretar a estrutura do Estado não como representante de uma vontade geral abstrata que defende o bem comum, mas como um conjunto de instituições jurídicas e administrativas que garante a dominação dos capitalistas sobre os proletários para viabilizar a reprodução da desigualdade entre as classes sociais, ao propiciar a acumulação de capital em um polo da sociedade, submetendo pela lei ou pela força física a classe trabalhadora.

Como consta já no Manifesto do Partido Comunista de 1848, redigido em parceria com Engels, Marx defendia a implementação de uma “educação pública gratuita de todas as crianças” (MARX; ENGELS, 1982, p. 125), com a eliminação do trabalho infantil, na forma como este era então explorado pelos empresários capitalistas, e a proposição de uma modalidade combinada de educação, voltada para a formação de todas as dimensões humanas, incluindo a atividade produtiva, a sensibilidade artística, a formação científica e o cultivo do corpo.

Num documento redigido, posteriormente, por Marx, com o objetivo de orientar os delegados do Conselho Central Provisório que participariam do I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, que se realizou em Genebra, de 3 a 8 de setembro de 1866, fica claro como o autor defendia a intervenção dos trabalhadores nos debates sobre a legislação educacional, pois, no seu entendimento, esta era a maneira mais eficiente de fazer com que o Estado impusesse leis que limitassem a ganância dos empresários capitalistas, pois

“[…] impondo tais leis, a classe operária não fortifica o poder governamental. Pelo contrário, ela transforma esse poder, agora usado contra ela, em seu próprio agente. Eles efetuam por uma medida geral aquilo que em vão tentariam atingir por uma multidão de esforços individuais isolados” (MARX; ENGELS, 1983, p. 83).

Mesmo defendendo a importância de uma legislação educacional, seria um erro concluir que Marx era favorável a que o Estado, nas sociedades capitalistas, se tornasse responsável pela educação popular, como se conclui da leitura de sua Crítica ao Programa de Gotha:

“Uma ‘educação popular do Estado’ é totalmente rejeitável. Determinar por meio de uma lei geral os meios das escolas primárias, a qualificação do pessoal docente, os ramos do ensino, etc., e, como acontece nos Estados Unidos, supervisionar por inspetores do Estado o cumprimento destas prescrições legais, é algo totalmente diferente de nomear o Estado educador do povo! Mais ainda, é de excluir igualmente o governo e a Igreja de toda a influência sobre a escola. Ora, no Império Prussiano-Alemão (e que não se recorra ao subterfúgio duvidoso de que se está a falar de um ‘Estado do futuro’; já vimos o que ele é), inversamente, é o Estado que precisa de uma muito rude educação pelo povo” (MARX; ENGELS, 1985, p. 27)

Conclusão

No pensamento de Marx, a educação é uma relação social que expressa a forma como os sujeitos sociais são preparados, preparam-se para viver e convivem em uma sociedade dada, a qual se encontra em um momento histórico que pode ser identificado como pertencente a determinado modo de produção, possibilitando a reprodução das relações sociais de produção e das forças produtivas. Em cada modo de produção ocorre uma determinada forma de divisão do trabalho, que pressupõe uma educação adequada ao domínio que é exercido sobre a natureza. Os membros das camadas e classes sociais são educados para a caça e a coleta, para a agricultura e a pecuária, para o artesanato ou para os serviços e a indústria baseada na maquinofatura. O modo de produção também sofre as consequências das ações revolucionárias realizadas pelos seres humanos para a superação dos problemas que a vida social lhes apresenta.

É necessário, pois, um processo social de aprendizagem da cultura que envolve a aprendizagem das técnicas de produção, de relacionamento interpessoal e também de representação simbólica da vida social e participação na vida política da sociedade. Em conjunto, esse processo de aprendizagem é chamado de processo de socialização; resulta da relação social entre os membros de uma coletividade para garantir tanto a continuidade da coletividade no tempo quanto a sua transformação para que consiga solucionar os novos problemas com que se depara para a garantia dos recursos materiais de que necessita e da forma de integração social mínima entre os seus membros. Em Marx, a educação deve ser concebida, portanto, como um processo de formação de um ser que é, ao mesmo tempo, produto da história e seu agente transformador. O que torna imprescindível para os processos educacionais a crítica ao existente.
(1) HUNT, Tristam. Comunista de casaca – a vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio de Janeiro, Record, 2010.

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STAVENHAGEN, R. Classes sociais e estratificação social. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. (Org.). Sociologia e sociedade. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1984.

(Texto publicado originalmente em PRAXEDES, W. L. A. . Sociologia da educação no pensamento de Marx. In: Simone Pereira da Costa Dourado; Walter Lucio de Alencar Praxedes. (Org.). Teorias e pesquisas em ciências sociais. 1ed.Maringá – PR: Editora da Universidade Estadual de Maringá – EDUEM, 2010, v. , p. 367-379.)

Estudos culturais e ação educativa

Walter Praxedes

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Estudos Culturais são estudos sobre a diversidade dentro de cada cultura e sobre as diferentes culturas, sua multiplicidade e complexidade. São, também, estudos orientados pela hipótese de que entre as diferentes culturas existem relações de poder e dominação que devem ser questionadas.

“O que distingue os Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é seu envolvimento explicitamente político. As análises feitas nos Estudos Culturais não pretendem nunca ser neutras ou imparciais. Na crítica que fazem das relações de poder numa situação cultural ou social determinada, os Estudos Culturais tomam claramente o partido dos grupos em desvantagem nessas relações. Os Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem como uma intervenção na vida política e social.” (Silva, 2002: 134).

Os Estudos Culturais podem fundamentar as ações educativas comprometidas com a construção de uma escola democrática fundada na convivência entre identidades culturais e sociais múltiplas.  Mas para que isso ocorra é necessário que sejam questionadas as relações de poder assimétricas que se manifestam nas atitudes preconceituosas e excludentes em relação às mulheres, indivíduos sem propriedades, diferentes aparências físicas, formas de orientação sexual e contra as etnias e raças de origens não-européias.

Um ponto de partida desse processo de democratização da escola pode ser o questionamento das reivindicações de universalidade das manifestações culturais europeias para, em seguida, contestarmos as narrativas eurocêntricas ainda dominantes na educação escolar brasileira, como bem demonstram os materiais didáticos e os processos formativos de professores nas faculdades e universidades.

Segundo Silva (2002), várias questões colocadas pelos Estudos Culturais desafiam os educadores no Brasil atual:

  • Em que medida a educação escolar e os currículos não estão comprometidos com a herança colonial e por isso possibilitam a manutenção do preconceito e da discriminação étnica e racial contra os afro-descendentes e índios?
  • Em que medida a noção de raça, forjada no século XIX pelo pensamento europeu, continua influindo sobre a formação das identidades de alunos e educadores?
  • Como os materiais didáticos, as narrativas literárias e os textos científicos continuam celebrando a soberania do sujeito imperial europeu?
  • Como as subjetividades de alunos e educadores de diferentes grupos étnicos e raciais são influenciadas pelos padrões culturais europeus?
  • Como tornar a escola um espaço de convivência democrática entre os diferentes segmentos étnicos e raciais da sociedade brasileira?

Os Estudos Culturais enfocam as relações de poder entre culturas, nações, povos, etnias, raças, orientações sexuais e  gêneros que resultam da conquista colonial européia, e como de tais relações assimétricas nascem processos de tradução, resistência e de mestiçagem ou hibridação cultural que levam à formação de múltiplas identidades.

De uma perspectiva metodológica a questão mais importante a desafiar os Estudos Culturais foi assim resumida por Linda Hutcheon:

“Como podemos construir um discurso que elimine os efeitos do olhar colonizador enquanto ainda estamos sob sua influência?”  (citada por Giroux, 1999: 32).

Responder efetivamente à indagação de Linda Hutcheon em termos teóricos, e também  na prática  política cotidiana, é uma tarefa imediata para aqueles que se dedicam a lutar pela alteração das relações de dominação e exploração existentes.

Um dos pressupostos do pensamento europeu é o pensamento através das oposições binárias que legitimam as relações de opressão, dominação e exclusão do outro. O pensamento bipolar estabelece uma hierarquia entre os dois pólos, ou seja, não concebe a diferença sem hierarquização, como demonstra o quadro abaixo, elaborado por Viola Sachs:

Esquema da identidade no imaginário do homem branco norte-americano no século XIX (ainda em vigor)

Deus……………………………………………………  Diabo / divindades pagãs

Cristianismo (protestante)……………………..  Outras religiões e crenças / paganismo

Civilização / ordem……………………………….. Selvático / labiríntico

Luz / dia / brancura ………………………………. Escuridão / noite / preto

Homem branco / masculino……………………..Mulher / feminino, o negro, o índio

(the white man)………………………………………(The black man, the red man, cores com conotação negativa)

Mente / razão…………………………………………Corpo / instinto / intuição / coração

A verdade / sentido único………………………..Mentira / erro / polissemia

Lado direto (right) / certo………………………..Lado esquerdo

Dinheiro / dólar / possuir ………………………..Amor / amizade / partilhar

Língua inglesa / escrita alfabética……………..Outras línguas / oralidade / pictogramas /hieróglifos

Fonte: Viola Sachs. Uma identidade americana pluri-racial e pluri-religiosa: a África negra e Moby Dick de Melville. In: Estudos Avançados 16 (45), 2002, p. 208.

Como superar tal polarização na nossa forma de raciocinar e admitir o diverso, diferente, múltiplo, complexo, heterogêneo? Na representação colonialista do outro, a diferença em relação ao europeu é classificada no polo negativo da oposição binária e por isso é reprimida e marginalizada. Como escreveu Giroux (1999: 23), “o outro é subjugado ou eliminado na violência das oposições binárias”.

Na ação educativa restringimos nossos juízos às maneiras de pensar permitidas pelas oposições como corpo ou mente, teórico ou empírico, clareza ou inacessibilidade, consistente ou inconsistente, certo ou errado, bonito ou feio, aluno bom ou aluno ruim, decente ou indecente etc. Raciocinamos de maneira dicotômica e com isso perdemos a capacidade de captar a diversidade do real nas representações que elaboramos sobre “nós” próprios, professores, e sobre os alunos,  os seus pais e a comunidade externa à escola, transformados em “outros”.

Conclusão

Uma escola democrática se constituirá a partir: a) do desenvolvimento de consciências críticas quanto aos processos de imposição de culturas e visões de mundo; e b) da convivência entre identidades culturais e sociais múltiplas. Para tanto, como nos ensina o educador Henry Giroux, é necessário que sejam questionadas as relações de poder assimétricas e que seja realizada a “desconstrução não apenas daquelas formas de privilégio que beneficiam os homens, os brancos, a heterossexualidade e os donos de propriedades, mas também daquelas condições que têm impedido outras pessoas de falar em locais onde aqueles que são privilegiados em virtude do legado do poder colonial assumem a autoridade e as condições para a ação humana” (Giroux, 1999: 39).

 

Referências

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999.

SACHS, Viola. Uma identidade americana pluri-racial e pluri-religiosa: a África negra e Moby Dick de Melville. In: Estudos Avançados 16 (45), 2002. São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2002.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade – uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.