Repensando a recepção do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Resumo: 

Após esboçar uma história da recepção da obra de Marx nas instituições universitárias brasileiras, este artigo propõe uma interpretação histórica e sociológica sobre a influência do marxismo na pesquisa educacional realizada no âmbito dos programas de pós-graduação criados no interior das faculdades de educação do país, após a Reforma Universitária instituída pelo regime autoritário em 1968.

Palavras Chaves: Marxismo – Pensamento Educacional Brasileiro

Introdução

Nos últimos trinta anos o marxismo se consolida como uma das matrizes teóricas das pesquisas educacionais realizadas no interior dos departamentos de história e filosofia da educação de várias universidades brasileiras. Já  não era sem tempo, diriam os adeptos desta orientação teórica, pois desde que o jornal A Reforma, órgão oficial do Partido Liberal, referiu-se pela primeira vez, no Brasil, ao “sr. Karl Marx, chefe da Internacional”, em 1879, o marxismo já provocava uma  polêmica crescente e apaixonada no país.

Tomando como sugestão metodológica uma nota contida em um trabalho de Azanha (1990:  37) “… para que não se alegue que na crítica aos textos examinados, situamo-nos numa posição teórica exterior …àquela dos autores desses textos…”, para investigarmos a determinação social do advento do marxismo nas pesquisas das  áreas de história e filosofia da educação no Brasil recorremos a um procedimento utilizado por  Marx e Engels em A ideologia alemã segundo o qual

“… não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não se parte dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida representa-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários dos seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia… Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência” (MARX e ENGELS, 1982:  14).

Em outras palavras, trata-se de aplicarmos os pressupostos marxistas acima para a análise da recepção do próprio marxismo pelo pensamento educacional brasileiro, o que implica em considerarmos esta modalidade de pensamento como um dos “discursos” existentes no interior dos departamentos de história e filosofia da educação do país em decorrência da “existência de grupos e classes que generalizam de modo diverso a sua experiência da realidade social global e a sua busca de auto-identidade coletiva” (COUTINHO,  1987: 40).

Com a ressalva de que não se pretende,   neste artigo, resvalar para um mecanicismo que leve a uma derivação da origem sócio-econômica dos pesquisadores a sua opção pela abordagem marxista dos problemas educacionais, pode-se conceber a existência de nexos entre as paixões, opções ideológicas, participação em grupos e instituições, interesses particulares e a realização de uma trajetória acadêmica identificada com o marxismo.

A opção metodológica acima pode ser justificada com o raciocínio de que “… as condições de possibilidade do sujeito científico e as de seu objeto não são mais que uma e mesma coisa, e a todo progresso do conhecimento das condições sociais de produção dos sujeitos científicos corresponde um progresso no conhecimento do objeto científico, e inversamente” (BOURDIEU, 1996: 237).

Um segundo pressuposto deste artigo foi o de não  restringirmo-nos ao estudo de “…um único marxismo específico, para não falar mesmo de um “verdadeiro” marxismo contraposto a outros falsos e “desviantes”. Em princípio, fazem parte dessa história todas as estruturas de pensamento que se declaram derivadas de Marx ou influenciadas por seus escritos…” (HOBSBAWM, 1983:13).

Ao discutirmos sobre  as especificidades do marxismo institucionalizado nas faculdades de educação brasileiras, levamos em consideração a idéia de que “não existe um único marxismo, mas sim muitos marxismos, frequentemente empenhados (como se sabe) em  ásperas polêmicas internas, a ponto de negarem uns aos outros o direito de se declararem marxistas”, como escreveu Hobsbawm (1983: 14).

No Brasil, esta disputa pelo monopólio da abordagem marxista mencionada pelo historiador inglês pode ser exemplificada pela atitude de um autor como Dermeval Saviani afirmar que somente a partir da realização do seu esforço pessoal e de outros colegas do programa de Doutorado em Educação da PUC/SP ‚ “…possível situar com nitidez a presença da concepção dialética na filosofia da educação brasileira” (SAVIANI, 1984: 288). Independentemente da pertinência ou não desta afirmação, o fato de um autor manifestar publicamente o desejo de consagrar sua obra como preeminente comprova a existência da luta pelo monopólio do que seria o “verdadeiro marxismo” no pensamento educacional brasileiro, o que torna explícita a luta  pela delimitação do que pode ser “reconhecido como ‘marxista’  pelos únicos dignos de serem reconhecidos como marxistas entre aqueles que se reconhecem ‘marxistas'” … e que,  nos anos setenta, no Brasil, “…seria menos encarniçada se seu móvel efetivo não fosse, na realidade o imenso capital simbólico que o marxismo representa…” (BOURDIEU, 1996: 163-165).

I – Recepções do marxismo no Brasil

Como escreveu Evaristo de Moraes Filho (1991: 45), apesar de alguns exemplos isolados e mesmo com a fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922, é depois  de 1930 que a obra de Marx passa a ser mais divulgada em terras brasileiras. Mesmo assim, se concordarmos com uma avaliação de Paulo Emílio Sales Gomes,  na década de trinta “…o marxismo em vigor era, em sua maioria, constituído de teses e documentos de congressos e conferências da Internacional, particularmente resoluções sobre o problema dos países semicoloniais e visões esquemáticas da questão do imperialismo inglês e norte-americano. Além do Manifesto, um Bukarin ou Plekanov, e O Estado e a Revolução, quase não se liam os clássicos. Um pouco mais tarde leu-se a História do Socialismo de Beer. Pelas divulgações sabia-se o que era “mais-valia” e que na sociedade existem classes com interesses contraditórios, o que era importante. Mas ninguém nunca leu O Capital. Do Brasil não se sabia nada” (citado por MOTA, 1980: 123).

Não obstante o fato de que a influência do legado de Marx possa ser verificada nas obras de autores do final do século XIX e primeiras décadas do século seguinte como Euclides da Cunha, Lima Barreto, Antonio Picarolo, Octavio Brandão, Castro Rebelo e Astrojildo Pereira, em vários balanços da história dessa abordagem teórica é Caio Prado Junior o autor consagrado  como o principal precursor de uma utilização mais efetiva e sistemática do marxismo no pensamento social brasileiro, com a publicação de sua obra Evolução política do Brasil, de 1933.

Especificamente na  área educacional, é ainda nos anos trinta que um educador considerado marxista como  Paschoal Lemme publica um trabalho sobre o ensino dos adultos e organiza cursos para operários no Distrito Federal. Confirmando a avaliação de Paulo Emílio, citada acima, um depoimento do próprio Paschoal Lemme esclarece algumas características do marxismo que o influenciava: “… Só algum tempo mais tarde, lá  pelo ano de 1932 e, principalmente, a partir de 1933, influenciado pelos acontecimentos político-sociais que vinham se desenrolando no mundo e no país, é que comecei a me interessar mais de perto pelo estudo dessas questões. Creio que, por essa época, li o Manifesto Comunista e algum resumo de O Capital, a obra fundamental de Karl Marx, e confesso que essa leitura me causou um grande impacto…” (LEMME, 1988: 213).

Em obras publicadas nos anos 40 e 50, Caio Prado Júnior confirmaria seu estilo marxista de pensar a realidade brasileira tentando superar as limitações do marxismo oficial do PCB. Com correlata intenção, Antonio Cândido lança em 1957 sua obra Formação da literatura brasileira, que em abordagem dialética, traça um painel da literatura nacional contextualizado histórica e socialmente.

O marxismo entraria de vez para a rotina universitária no Brasil a partir de 1958, quando um grupo de intelectuais da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, liderado pelo filósofo José Artur Giannotti, passa a estudar sistematicamente O Capital, de Marx, e desenvolve, posteriormente, uma considerável produção intelectual em várias disciplinas científicas e filosóficas. O contexto e os objetivos do “seminário” podem ser discutidos a partir de excertos de um depoimento de Roberto Schwarz, que foi um dos participantes:

“Com a morte de Stalin, em 1953, a divulgação das realidades inaceitáveis da União Soviética e da vida interna dos partidos comunistas ganhou em amplitude, também entre adeptos e simpatizantes. A incongruência com as aspirações libertárias e o espírito crítico do socialismo ficara irrecusável. Neste quadro, a volta a Marx representava um esforço de autoretificação da esquerda, bem como de reinserção na linha de frente da aventura intelectual… Com efeito, a crítica ao marxismo vulgar, bem como …as barbaridades conceituais do PCB, era um dos seus pontos de honra…. Isto posto, o contexto imediato do seminário não era a esquerda nem a nação, mas a Faculdade de Filosofia.  Em seus departamentos mais vivos, ajudada pelo impulso inicial dos professores estrangeiros, esta fugia das rotinas atrasadas e buscava um nível que fosse para valer, isto é, referido ao padrão contemporâneo de pesquisa e debate… Pois bem, a ligação deliberada da leitura de O Capital ao motor da pesquisa universitária iria modificar o quadro e deixar a cultura marxista anterior em situação difícil… Seja como for, a idéia de uma esquerda marxista sem chavões, à altura da pesquisa universitária contemporânea, aberta para a realidade, sem cadáveres no armário e sem autoritarismos a ocultar, era nova…” (SCHWARZ, 1998: 99-114)

Os anos do tal seminário, 1958 a 1964, correspondem a um período de radicalização política e ideológica no país, no qual a luta pelas reformas de base animaria um amplo leque de forças políticas e sociais empenhadas na busca de soluções pacíficas para os problemas sociais. Mas havia, ainda, os partidos e movimentos mais à esquerda no cenário político, propugnando a tomada do poder por uma aliança interclassista que, a exemplo da Revolução Cubana, promovesse uma ruptura com o sistema capitalista internacional e iniciasse a reconstrução da sociedade brasileira em moldes socialistas. Nesse terreno fértil o marxismo, em suas várias acepções, chegou a influenciar amplamente a produção cultural do país.

Para nos restringirmos aos reflexos daquela conjuntura histórica na vida acadêmica, em relação à radicalidade do movimento que defendia uma ampla reforma universitária, os governos militares que assumem o poder após o golpe político de 1964 passam a reorganizar o setor educacional do país com vistas em adequá-lo ao modelo de desenvolvimento econômico baseado no binômio intervenção estatal e internacionalização. Em consequência, nos anos de 1966 a 1969‚ é criado um novo modelo universitário no país com o objetivo de “agregar a racionalidade administrativa à universidade para torná-la mais moderna e adequada às exigências do desenvolvimento. Mas, politicamente, essa racionalidade administrativa acaba aumentando, no seio da própria universidade, o controle dos órgãos centrais sobre toda a vida acadêmica e, externamente, o controle da própria universidade pelos órgãos de administração federal de ensino” (ROMANELLI, 1980: 232).

As faculdades de educação serão criadas a partir de 1969 com o duplo objetivo de formar mestres e doutores em educação e pessoal qualificado para o magistério de segundo grau, administração, inspetoria, supervisão escolar e orientação educacional; e também coibir o pensamento crítico e contestatório que era produzido no interior das faculdades de filosofia. Como declarou o professor João E.R. Villalobos, avaliando o processo de liquidação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,  “… uma radicalização política a partir do receio da subversão levara, pois, à extinção daquela Faculdade: desmembrado em diversas unidades isoladas umas das outras, o núcleo de contestação perdia sua coesão, sendo mais fácil mantê-lo sob controle” (citado por FÉTIZON, 1984: 155).

Mesmo com a aposentadoria compulsória imposta a vários professores que desenvolviam uma produção intelectual de inspiração marxista, notadamente de alguns dos participantes do seminário sobre O Capital mencionado acima, e com a repressão e  a  censura que se seguiram ao Ato Institucional nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, nos anos posteriores à reforma universitária “… não se pode  negar que, contra todos os ventos e marés, a produção científica e cultural continua firme e empenhada em vários núcleos… A autonomia relativa de reflexão e debate foi descentrada dos grandes anfiteatros para centenas de salas de seminário, de graduação e pós-graduação, e uma série de trabalhos sobre movimentos sociais, vida política, tendências ideológicas, dependência etc. vão surgindo….” (MOTA, 1980: 262).

II – Especificidades do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Apesar de sumária, esta exposição sobre a recepção do marxismo no Brasil permite o início de uma reflexão sobre a posição relevante que esta concepção passa a ocupar nas pesquisas educacionais desenvolvidas nos programas de pós-graduação das faculdades de educação do país na década de 1970.  Tal relevância pode ser  verificada  na quantidade de teses, dissertações, artigos e livros cuja modalidade de reflexão teórica empregada pelos autores tem  como matriz assumida  a obra do pensador alemão Karl Marx e de vários de seus continuadores, e que,  de um modo geral, podem ser classificadas:

a) dentro da tendência denominada por Libâneo (1984) como “pedagogia progressista”, ou, ainda, “pedagogia crítico-social dos conteúdos”, da qual Saviani e Cury são os principais expoentes e constaria no pensamento educacional brasileiro como a abordagem marxista primeiro se consolidou no país após a Reforma Universitária que criou as Faculdades de Educação. O próprio Saviani esclarece que

“…em um texto escrito em novembro de 1969 para servir de conclusão à cadeira de filosofia da educação que então ministrava no curso de pedagogia da PUC/SP, esbocei uma primeira tentativa de encaminhar dialeticamente o problema dos objetivos e meios da educação brasileira… Num trabalho cuja redação se completou em 1971, me posiciono metodologicamente em termos dialéticos, embora ainda sob influência da fenomenologia. Progressivamente, creio ter logrado ultrapassar esta influência elaborando, de forma cada vez mais orgânica, a perspectiva dialética da filosofia da educação entendida em termos histórico-críticos. É, porém, ao findar a década de 70 que a preocupação com a perspectiva dialética ultrapassa, na filosofia da educação, aquele empenho individual de sistematização e se torna objeto de esforço coletivo. Talvez o marco objetivo dessa passagem possa ser identificado na tese de doutoramento de Carlos Roberto Jamil Cury, Educação e contradição: elementos para uma teoria crítica do fenômeno educativo, defendida em outubro de 1979, tese esta que, enquanto era produzida, foi objeto de discussão sistemática no interior do Programa de Doutorado em Educação da PUC-SP. Penso que, a partir daí, é possível situar com nitidez a presença da concepção dialética na filosofia da educação brasileira…” (SAVIANI, 1984: 288);

b)  como “concepção dialética da educação”, classificação enfatizada por Gadotti; autor que a partir de sua atuação como docente da disciplina de filosofia da educação no curso de pedagogia da Unicamp, segundo seu próprio relato (GADOTTI, 1987: 121-122) se empenhou em realizar um “esboço de uma educação e de uma pedagogia inspiradas no marxismo”, trabalho consubstanciado inicialmente em seu livro Concepção dialética da educação (1983);

c) como a tendência denominada pouco elogiosamente por Saviani como “crítico-reprodutivista”, e que, entre muitas outras, inclui algumas obras de Cunha e Freitag. Neste caso, vale a ressalva de que ambos enfatizam em alguns dos seus trabalhos a incorporação do instrumental metodológico marxista através da mediação das interpretações de Marx realizadas por  autores como Baudelot e Establet (no caso de  Cunha, no livro Uma leitura da teoria da escola capitalista, de 1982), e Gramsci e Althusser (influências claras no trabalho de Bárbara Freitag intitulado Escola, Estado e sociedade – de 1979).

III – Problematizando a recepção do marxismo no pensamento educacional brasileiro

Embora a importância do marxismo no período em questão seja constatável  na influência  intensa, extensiva e difusa, exercida sobre uma variada produção teórica de difícil mensuração até mesmo de fora do campo tradicionalmente reconhecido como marxista, seria temerário o propósito de realizarmos uma discussão exegética dos textos educacionais visando a inferência das formas muitas vezes sutis de  incorporação do pensamento de Marx e de seus continuadores. Facilmente poderíamos cair no erro de atribuir a origem de uma noção ou conceito a Marx quando, na realidade, poderia ser proveniente de outra fonte. Entraríamos, então, em uma polêmica sem fim. Um autor como Paulo Freire, por exemplo, que recebe influência do marxismo nos anos setenta, sem recusar as influências cristãs recebidas anteriormente, dificilmente poderia ser considerado como marxista em sentido estrito. O mesmo ocorrendo com outro autor proeminente no pensamento educacional brasileiro como Rubem Alves, que em meio a inspirações retiradas das obras de Nietzsche, Freud, Barthes, Kierkegaard e Santo Agostinho, não recusa a influência de Marx, “… um Marx escondido, mas de quem empresta a idéia de alienação, uma dialética do indivíduo” (GADOTTI, 1987: 55).

Levando-se em consideração que o trabalho acadêmico dos autores classificados como marxistas citados acima foi realizado no âmbito das faculdades de educação do país, notadamente nos departamentos de História e Filosofia da Educação, em um contexto político no qual o marxismo era o inimigo priorizado pela chamada ideologia de segurança nacional do regime iniciado com o golpe de 1964, ainda está por ser realizada uma investigação que esclareça como foi possível o desenvolvimento de um número considerável de teses, dissertações, livros e artigos com um discurso acadêmico cujos seus correspondentes no campo da política prática – os grupos de orientação marxista de oposição ao regime envolvidos ou não nos movimentos de guerrilha urbana e rural então existentes no país – sofriam uma violenta repressão física. Pode-se indagar, ainda: a) por que esta influência do marxismo no pensamento educacional brasileiro  não se propagou anteriormente, ficando restrita a um pequeno grupo de intelectuais, uma vez que esta modalidade de reflexão aparece no Brasil ainda no século XIX; e b) por que esta incorporação do marxismo ocorreu justamente a partir de 1969, após a  reforma universitária que tinha como um dos seus objetivos sufocar suas  possibilidades de desenvolvimento. São questões que esperamos que sejam respondidas em estudos futuros, um pouco mais afastados das paixões exaltadas que ainda inibem as pesquisas sobre tal problemática.

Um outro conjunto de questões diz respeito à capacidade dos trabalhos acadêmicos realizados com esta orientação metodológica  abordarem os problemas teóricos e práticos da educação brasileira. É pertinente rediscutirmos a avaliação crítica realizada por Azanha, segundo a qual muitas pesquisas educacionais que se pretendiam fundamentadas metodologicamente no marxismo incorreram em uma modalidade de “…’abstracionismo pedagógico’ , entendendo-se a expressão como indicativa da veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a ‘princípios’ ou  ‘leis’ gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas” (AZANHA, 1990: 24). Apesar de Azanha dirigir suas críticas  a algumas obras de Dermeval Saviani e Bárbara Freitag, argumentando que estes autores revelam em alguns dos seus textos a “… confusão epistemológica entre a elaboração teórica que se desenvolve pelo relacionamento de idéias e noções gerais (e por isso mesmo necessariamente abstratas) e a investigação empírica que opera a partir da teoria mas que não pode se resumir na simples ilustração desta”, pode-se questionar até que ponto não se tornou uma prática muito frequente entre os autores marxistas da  área educacional um certo desprezo pela busca de dados empíricos sobre as múltiplas determinações do concreto em privilégio de explicações gerais consagradas, que seriam simplesmente adaptadas em primeiro lugar, à realização de uma análise crítica do capitalismo brasileiro e das teorias e práticas educacionais consideradas intencionalmente ou de forma involuntária como reprodutoras das relações sociais capitalistas e, em segundo lugar, à defesa de uma “nova educação”, com novas práticas educacionais que levem a uma “nova sociedade” e  a um “novo homem”.

Primeiras conclusões

Em decorrência dos problemas levantados acima, no decorrer dos estudos realizados chegamos às seguintes conclusões, que podem também ser encaradas como hipóteses diretrizes para o prosseguimento de uma pesquisa sobre a história da institucionalização do marxismo nas faculdades de educação de várias universidades brasileiras.

Em relação ao contexto histórico, político e universitário no qual se desenvolveu a produção do pensamento educacional marxista no Brasil, considerando-se que o desenvolvimento do marxismo nas faculdades de educação é obra de um profissional do saber voltado para a realização do seu labor intelectual, pode-se supor que  uma de suas precondições  foi a expansão do número de programas de pós-graduação ocorrida após a Reforma Universitária de 1968, que ampliou consideravelmente a possibilidade dos profissionais  universitários se dedicarem à carreira acadêmica; e que o desenvolvimento de um pensamento educacional com tal filiação metodológica é resultado de uma estratégia consciente de alguns grupos de pesquisadores.

Também podemos supor que a intensificação do autoritarismo estatal ocorrida  após a decretação do Ato Institucional n. 5, de dezembro de 1968, e que ampliou a censura à livre circulação de idéias e a repressão aos professores e estudantes oposicionistas,  tenha contribuído para que uma modalidade crítica e radical de pensamento como o marxismo se tornasse uma opção política e teórica aos indivíduos e grupos presentes na universidade, na época, fato que indica também que mesmo durante o regime militar a universidade brasileira resguardou  uma certa autonomia para a produção realizada no seu interior.

Uma decorrência do raciocínio acima é a suposição de que os autores mencionados chegaram até o marxismo primeiramente por convencimento político e, posteriormente, optaram pela realização de suas pesquisas com base na metodologia e  nas proposições teóricas do materialismo histórico e dialético. Com isto, também estamos supondo que muitos desses autores participavam de grupos, partidos e entidades políticas, e que essa presumida vinculação influiu de alguma maneira na realização de sua obra acadêmica.

O fato de os autores em questão não terem realizado suas obras no interior dos partidos comunistas e de outros agrupamentos marxistas pode ser explicado tanto pela  improbabilidade do tipo de reflexão teórica desejada ser desenvolvida nos limites da clandestinidade imposta pelo regime autoritário a estes grupos, quanto em razão de  que as organizações marxistas privilegiavam a produção de textos e documentos voltados para o embate político imediato e negligenciavam a necessidade de pesquisas e reflexões teóricas que pudessem resultar de um processo de maturação lenta.

Quanto às especificidades do marxismo desenvolvido nas faculdades de educação das universidades brasileiras, supondo-se que  alguns autores chegaram até o marxismo já  na maturidade ou próximos desta, tanto a  apropriação da obra de Marx e da de seus continuadores, quanto a forma de adaptação desta modalidade de pensamento aos  problemas educacionais do Brasil serão influenciadas   pela   bagagem teórica e filosófica anterior à opção de cada pesquisador pelo marxismo e pela recepção de autores e obras consideradas marxistas originários de outros países, como por exemplo, Lenin, Gramsci e Lukács,  Manacorda, Suchodolski e Snyders, entre outros.

Pode-se presumir que tenha ocorrido uma divisão do trabalho entre os teóricos marxistas em questão, uns se dedicando à elaboração da “grande teoria” e outros utilizando a teoria elaborada pelos primeiros para a realização de pesquisas voltadas para a resolução de problemas colocados pelas atividades de ensino.

A despeito da referência comum a Marx, não se pode dizer que haja  uma unidade metodológica no pensamento educacional  marxista produzido no Brasil, antes, isto sim, deve-se conceber que esta modalidade de pensamento foi desenvolvida no país sob o signo da divergência e do debate teórico e político intenso, e que eram potencializados por problemas advindos de circunstâncias exteriores ao campo científico.

Para entendermos o  “abstracionismo pedagógico” apontado por Azanha e apresentado acima, pode-se supor que tal característica tenha se desenvolvido como uma consequência involuntária da intenção,  presente em vários autores enfocados, de produzir um discurso que não fosse taxado de simplesmente ideológico, ou de superficial e vulgar – crítica costumeiramente dirigida à produção teórica dos Partidos Comunistas -, o que levou a um nível de formalização e de racionalização do discurso filosófico e científico que acabou relegando a um segundo plano o   tratamento das chamadas múltiplas determinações do concreto.

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Texto publicado originalmente em PRAXEDES, W. L. A. . Repensando a recepção do marxismo no pensamento educacional brasileiro. Cadernos de Apoio ao Ensino (UEM), Maringá – PR, n.N. 10, p. 5-24, 2001.

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