São Francisco de Assis e Dom Helder Camara

Walter Praxedes

A figura de São Francisco de Assis há mais de oito séculos vem cativando a admiração e o respeito não apenas entre os católicos, mas também em artistas, cineastas, escritores, acadêmicos e até fiéis de outras confissões religiosas.

Essa reverência a Francisco também parece crescer na medida em que se tornam praticamente inacessíveis as fontes com informações seguras sobre a vida, os pensamentos e as ações do santo que nasceu em Assis (Itália) em 1181 ou 1182 com o nome de Giovanni Bernardone, e faleceu em Porciúncula, em 1226, um ano depois de compor o seu famoso Cântico do irmão sol, sendo canonizado pelo Papa Gregório IX apenas dois anos depois da sua morte.

Mas como enfatizou o historiador Jacques Le Goff, toda a trajetória de Francisco passou por inúmeras revisões por parte dos seus seguidores, membros da Ordem religiosa que fundou e da própria Santa Sé católica, recebendo versões mais rigorosas, no sentido da observância aos votos de pobreza e simplicidade, ou mais espiritualistas, a depender dos pontos de vistas e até interesses dos revisores, a tal ponto que a historiografia franciscana pode ser dividida em duas tendências:

“De um lado, os rigoristas, que exigiam dos Frades Menores, a prática de uma pobreza total, coletiva e individual, a recusa a todo o aparato na liturgia dos ofícios da Ordem, assim nas igrejas e nos conventos, e a guardar distância da Cúria romana, suspeita de pactuar muito facilmente com o século. De outro lado os moderados, convencidos da necessidade de adaptar o ideal da pobreza à evolução de uma Ordem de frades cada vez mais numerosa, de não repelir, por uma recusa a toda a influência exterior, as multidões sempre mais densas que se voltavam para os Frades Menores, e da necessidade de ver na Santa Sé a fonte autêntica da verdade e da autoridade numa Igreja de que a Ordem era uma parte integrante. Onde situar o verdadeiro Francisco?” (Le Goff, 2001, p. 48-49).

Talvez a melhor resposta para a pergunta apresentada pelo historiador – Onde situar o verdadeiro Francisco? –  não seja nem a procura obsessiva por fontes que atestem o modo de vida e o pensamento do Francisco histórico, e nem uma tentativa de desconstrução do mito franciscano, mas a adoção da forma de interpretação figural de São Francisco proposta pelo crítico literário Erich Auerbach, interpretação esta que poderia prevalecer mesmo se contássemos com o acesso às fontes fidedignas sobre a vida do santo de Assis, uma vez que adotamos o modo de representar um acontecimento do passado como prenúncio de acontecimentos posteriores, considerando o fato anterior como anunciador e precursor de um acontecimento que ocorreu depois, ou este como realização e preenchimento de uma figura que o anunciava no passado.

O conceito de figura proposto por Auerbach é uma forma de interpretação tipológica da história e da realidade que dominou a Idade Média europeia e que chegou até o presente através do cristianismo, “que estabelece uma relação entre dois acontecimentos, ambos históricos, na qual um deles se torna significativo não apenas em si mesmo mas também para o outro, que, por sua vez, enfatiza e completa o primeiro. Nos exemplos clássicos, o segundo é sempre a encarnação de Cristo e dos acontecimentos ligados à encarnação que levaram à libertação e ao renascimento do homem…” (Auerbach, 1997, p. 79). Assim, a vida de São Francisco é considerada como uma imitação da vida humilde de Cristo. E foi assim que “nenhum outro estilo de vida, voz ou comportamento” da Idade Média teve tanta repercussão ao longo da história como a representação construída e difundida sobre a vida de São Francisco.  “Sua personalidade sobressai em virtude de seus muitos contrastes. Sua piedade, ao mesmo tempo solitária e popular, seu caráter, ao mesmo tempo doce e austero, e seu comportamento, ao mesmo tempo humilde e áspero, tornaram-se inesquecíveis” (Auerbach, 1997, p. 65).

É precisamente esta figura de Francisco de Assis que inspirou o romancista grego Nikos Kazantzakis a reescrever a sua biografia no livro O pobre de Deus. Adotando como foco narrativo do ponto de vista de Frei Leão, o mais próximo seguidor de Francisco, Kazantzakis narra como o futuro santo buscava a coerência com a vida de Cristo, mesmo em meio aos maiores sofrimentos, provações e angústias.

Também José Saramago não resistiu à figura de Francisco quando escreveu a peça A segunda vida de Francisco de Assis, enfatizando como a prática de muitos de seus continuadores e da própria Ordem que fundou adotaram práticas que seriam inaceitáveis aos olhos do santo. Adotando a figura da reencarnação de Francisco, Saramago discute na peça como seria constrangedor para o santo presenciar as ações temporais de sua Ordem.

Essa ideia de Saramago nos inspira a pensar como São Francisco se sentiria infeliz e frustrado vendo como a sua Ordem se tornou uma grande proprietária de escravos na época do Brasil colonial. Mas só podemos ter esse raciocínio comparativo sobre a prática da Ordem Franciscana no Brasil em relação à pregação da humildade, da pobreza, da igualdade e da dignidade humana por São Francisco, porque temos como parâmetro a sua figura exemplar.

No livro que o meu querido professor e amigo Nelson Piletti e eu escrevemos sobre a vida do inesquecível Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara: o profeta da paz, dedicamos um capítulo para tratar da identificação de Dom Helder com a figura de São Francisco. (Piletti; Praxedes, 2008, p. 123-130)

Para Dom Helder viver segundo o Evangelho significava encarnar a origem popular do cristianismo, que tornava a ética da humildade e o estilo de vida simples e despojado, em elementos importantes do ideal de santidade cristã que incorporara desde jovem. Por isso a figura de São Francisco, com o seu casamento com a pobreza, é aceita por Helder como guia para a vida terrena que antecipa a vida celestial. O Francisco de Assis representava, assim, a encarnação da plenitude que conduziria à presença de Cristo.

Inspirado em São Francisco de Assis, Dom Helder concebe para si a missão de profetizar o retorno a uma Igreja Servidora e Pobre, de acordo com os princípios que orientaram o famoso “Pacto das Catacumbas”, no qual participa da celebração com um grupo de padres e bispos no final do Concilio Vaticano II, na Igreja de Santa Domitila, em 16 de novembro de 1965.

A presença de São Francisco no mundo foi um acontecimento histórico interpretado pelos seus seguidores e por Dom Helder como prenuncio de outros acontecimentos históricos concretos. Por isso, em seu apostolado ele buscava colocar em pratica os ensinamentos de Francisco, encarnando a verdade anunciada pelo santo de Assis.

Considerando Francisco como um precursor, encarnando-o em sua vida através de sua palavra e da sua ação, Dom Helder se legitimava dentro e fora da instituição católica para trabalhar em defesa dos pobres. Da perspectiva de muitos dos seus colaboradores, dos fiéis católicos e dos admiradores de todas as religiões espalhados pelo Brasil e pelo mundo Dom Helder preenche a demanda que muitas vezes sentimos por uma força messiânica, que encarne na vida real a figura de um líder religioso e até político com uma espiritualidade profunda e com um senso de realidade histórica para anunciar que um novo mundo é possível, inspirando e mobilizando muitos que estão insatisfeitos com o mundo existente.

Referências

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo, Ática, 1997.

KAZANTZAKIS, Nikos. O pobre de Deus. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro, Record, 2001.

PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara – o profeta da paz. São Paulo, Contexto, 2008.

SARAMAGO, José. “A segunda vida de Francisco de Assis”. In: Que farei com este livro?. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

A voz de Pablo Neruda

Walter Praxedes

Trocando em miúdos é uma canção de Chico Buarque e Francis Hime que tocava insistentemente no rádio no final da década de 1970.  Quase no final da canção tem um verso que eu não entendia, mas que me deixava pensativo e não me saía da cabeça: “Devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu…” O leitor pode recordar a canção clicando abaixo:

 

 

Meu irmão Valder, sete anos mais velho do que eu, um dia chegou em casa com um livro emprestado da Biblioteca Municipal de Maringá e o deixou sobre algum móvel, onde pude ver o nome do autor em letras enormes e o título um pouco menor: Pablo Neruda – Para nascer nasci.

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O verso que não entendia na canção Trocando em miúdos de repente se tornou compreensível para mim. Abri o volumoso livro justamente na página que contém a epígrafe:

… para nascer nasci, para conter o passo de quanto se aproxima, de quanto me golpeia o peito como um um novo coração tremente.

Li esses versos e fiquei parado, pensando….

A partir de então os livros de Pablo Neruda se tornaram uma presença obsessiva na minha adolescência. Depois de ler Para nascer nasci, consegui emprestar Confesso que vivi na mesma biblioteca pública. Um livro de memórias escrito em linguagem poética que me apresentou um painel sobre o envolvimento do autor na história política e literária do século XX, sobre seu país, um Chile que não conhecia, mas que passei a amar a distância através da poesia de Neruda, e sobre os incontáveis personagens que povoaram a vida do poeta.

Depois também li o Canto geral, um poema de amor à América Latina e de resistência à opressão política e econômica. Por coincidência, uma amiga chilena que estudava psicologia na Universidade Estadual de Maringá, Jeanette Navarro Escobar, me emprestou uma fita cassete em que estava gravada a voz do poeta narrando os poemas do Canto geral  e que o leitor  também pode ouvir com um click.

Quando recordo aquele início da década de 1980 ainda ouço na minha imaginação a voz do poeta buscando “o vento para alcançar meus ouvidos”.