Ao ler os romances de José Saramago

Walter Praxedes*

Numa época em que o acesso à leitura se generaliza em muitas sociedades, as obras impressas mais difundidas acabam sendo aquelas relacionadas com as atividades técnicas e instrumentais ou, quando muito, destinadas a suprir as necessidades psicológicas e afetivas mais imediatas do leitor-consumidor.

Para retirar o leitor da sua vida singularizada em um mundo cada vez mais restrito é que José Saramago tenta realizar uma ação comunicativa com o seu público, recorrendo a inúmeros procedimentos estilísticos, como exemplificam o exercício freqüente da metalinguagem e a recuperação da oralidade na narrativa escrita, numa tentativa de superar a distância estética existente entre autor e leitor.

Com a intenção de provocar o distanciamento de cada um de nós em relação ao nosso contexto habitual, Saramago reelabora e constrói alegorias que estilhaçam as representações harmônicas sobre a realidade, pois, no seu entendimento, “…assim está o mundo feito, que tem a verdade muitas vezes de disfarçar-se de mentira para chegar aos seus fins” (Ensaio sobre a cegueira, p. 126).

Os valores na literatura
Concebidos como uma modalidade de sistema simbólico de comunicação intersubjetiva, os romances envolvem “…um comunicante, no caso o artista, um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do processo, isto é, o seu efeito”. (MELLO E SOUZA, 2000: 20). Este último, no momento de elaboração da obra, só pode ser virtual, uma intenção do autor, consciente ou não.

Mas o escritor José Saramago já manifestou algumas ressalvas quanto à possibilidade de que a literatura possa contribuir para a transformação nos valores e na ética:

“…Mantenhamo-nos discretamente nos domínios do axiológico e do ético…, e reconheçamos, por muito que tal verificação possa castigar a nossa confiança, que as obras dos grandes criadores do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camões a Dostoieviski, apesar da excelência do pensamento e fortuna de beleza que diversamente nos propuseram, não parecem ter originado, em sentido pleno, nenhuma efectiva transformação social, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e geração… A literatura, mesmo quando, por motivos religiosos ou políticos, se dedicou a uma pregação de bons conselhos ou a uma engenharia de novas almas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva e duradoura das sociedades, como provocou, algumas vezes, insanáveis sentimentos de frustração individual e coletiva, resultantes de um balanço negativo entre as teorias e as práticas, entre o dito e o feito, entre uma letra que proclamava um espírito e um espírito que deixou de reconhecer-se na letra” (SARAMAGO, 1999: 113-114).

Em um texto elaborado em data anterior, na condição de narrador do romance História do Cerco de Lisboa (1989), Saramago afirma, no entanto, que a literatura pode ter influência sobre os valores dos leitores através das palavras do protagonista do romance, Raimundo Silva, que em uma conversa com o autor do livro que revisava, “…argumentou que os revisores têm visto muito de literatura e vida, entendendo-se que o que da vida não souberam ou não quiseram ir aprender a literatura mais ou menos se encarregou de ensinar-lhes”, de onde o narrador conclui que talvez o próprio “…Raimundo Silva tenha ido buscar aos livros que reviu alguns traços impressivos que, passando o tempo, teriam acabado por formar nele, com o que nele era de natureza, esse todo coerente e contraditório a que costumamos chamar de caráter” (História do cerco de Lisboa, pág. 160).

As circunstâncias
Nos romances de Saramago realizamos uma leitura literária da História portuguesa. Em Levantado do chão, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra e História do cerco de Lisboa, são evidenciadas pelo autor as determinações sociais, políticas, culturais, religiosas e ideológicas na formação histórica de Portugal, com o objetivo de contribuir para um novo olhar sobre a memória coletiva do povo português, que possibilite, por sua vez, uma reavaliação da história do país, para que os portugueses tenham consciência do que foram, do que são e do que pretendem ser no futuro, refletindo, assim, criticamente sobre sua identidade como povo.

A reflexão estética de Saramago atinge diretamente a associação entre fé, religião, interesses econômicos e políticos da nobreza na conformação de uma identidade nacional portuguesa, através da qual o “outro” passa a ser visto simultaneamente como o inimigo da fé, inimigo do rei, inimigo do grupo, inimigo do Eu. Por isso a dessacralização dos mitos fundadores das sociedades ocidentais é um recurso utilizado por Saramago para propor a emancipação da humanidade em relação àquelas representações religiosas que tornam o seu destino pré-fixado. Sem deus e sem uma história legitimada divinamente o homem deverá se responsabilizar inteiramente pelo mundo que cria.

Ao longo de sua obra Saramago realiza, então, uma reflexão crítica sobre a constituição histórica da identidade nacional portuguesa. Para o romancista tudo pode e deve ser discutido, desde os mitos fundadores das civilizações ocidentais à “historiografia oficial”, que são colocadas em cheque com a proposta de uma nova leitura do passado, numa tentativa de contrapor às representações acríticas das instituições dominantes, a sua representação ficcional, não com o intuito de alterar o passado, mas de recuperar no passado aqueles elementos que são prenúncios de um futuro imune à influencia deletéria das estruturas de poder do Estado e do catolicismo sobre a identidade nacional.

Na sua sede de identidade nacional, uma nacionalidade ficcionalmente imaginada, é que se realizam os ideais de igualdade humana do autor, ainda mais porque a globalização tem, de um lado, solapado os direitos sociais de um contingente imenso de seres humanos dispersos pelo planeta, e de outro produzido o indivíduo atomizado que se imagina como um ser independente destinado a se locupletar através do consumo.

Essa reflexão identitária tem continuidade no romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, no qual Saramago realiza uma reflexão sobre a religiosidade, os mitos e valores éticos fundantes das sociedades ocidentais, tornando possível, assim o redimensionamento de sua importância na história portuguesa e ocidental, e criticando aqueles aspectos que favoreceram a intolerância, o desconhecimento, o preconceito, a exploração, a crueldade e a manipulação dos seres humanos, roubando-lhes a autonomia de ação e impedindo a convivência solidária.

Personagens
A diversidade da experiência humana se expressa em inúmeras personagens que povoam a obra e extrapolam suas páginas. Mas Saramago não concebe a existência de um narrador ou de personagens autônomas em relação ao autor, antes, identifica-os:

“…um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor… Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista… o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor… Também eu, ainda que sendo pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do convento, e em O evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também Deus e Diabo que lá estão. O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal” (SARAMAGO, 1998: 27).

A personagem pode expressar uma discordância em relação às representações defendidas pelo autor, mas jamais deixa de ser o autor quem a concebeu. Com suas vivências e sentimentos eles nos ensinam a morrer sobriamente, como o camponês João Mau-Tempo, que enquanto viveu nos ensinou a resistir à opressão, como também o fizeram Ouroana e o soldado Mogueime; nos ensinam a imaginar diferentemente a História, como Raimundo Silva e Maria Sara.

O amor não pode ser diferente daquele sentimento entre Blimunda e Baltasar; e a felicidade só pode ser a sensação de romper os limites do existente, como num vôo na passarola do Padre Voador. Aprendemos o desprendimento de Lídia no auxílio ao outro e sua tenacidade para superar a dor diante da perda do irmão; nos sensibilizamos com a introspecção de um Ricardo Reis espectador do espetáculo do mundo…

As narrativas criadas por Saramago nos ensinam que há sofrimento, como o dos cegos isolados no manicômio, mas nos ensinam também a coragem e a solidariedade da mulher do médico e a união como alternativa à barbárie. O Sr. José nos ensina a reagir ao tédio, à rotina e à solidão e a buscar um sentido para vida, que é também o objetivo do ex-oleiro Cipriano Algor e sua família que conseguem escapar da sedução das sombras da caverna.

Sociabilidade em crise
À sensibilidade e à generosidade de suas personagens, Saramago contrapõe um contexto que inviabiliza que seus objetivos sejam atingidos, ensinando-nos com isso uma lição aprendida pelo autor em uma sentença marxiana muitas vezes repetida em suas entrevistas: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”.

Por isso, nos romances Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes e A caverna, uma trilogia elaborada pelo autor nos últimos anos do século XX, é tematizada a sociabilidade vigente nas sociedades ocidentais contemporâneas através das alegorias da cegueira que se generaliza, da vida burocratizada que aprisiona e isola e das sombras que distorcem o entendimento da realidade nas inumeráveis cavernas do mundo atual.

Nas três obras o autor ensina o leitor a identificar aquelas tendências anti-humanas presentes na estruturação capitalista do mundo e nas representações e valores morais dos indivíduos e classes sociais sobre a mesma, tais como a razão instrumental que leva à mitificação da ciência, da técnica e das estruturas de dominação que conformam os horizontes do homem moderno, incapacitando-o para a percepção da interdependência que vincula o destino de cada indivíduo ao destino da espécie e ao destino do Planeta.

Identidade reflexiva
A obra de Saramago se credencia, assim, como uma reflexão identitária que pode ser interpretada como um projeto de reapropriação do passado, tendo como meta o futuro da nacionalidade. As identidades do Eu e nacional podem garantir a integração social e manter ao mesmo tempo a diversidade cultural entre os indivíduos e entre as sociedades em meio à homogeneização, à padronização cultural e econômica da globalização. Uma identidade reflexiva que pode estar fundada na consciência da dependência do Eu em relação ao nós, ou em outras palavras, no reconhecimento da interdependência existente entre ambos, conciliando as identidades do Eu e coletiva através de uma ética universalista, contraposta aos valores excludentes que prevalecem no mundo contemporâneo.

Referências
MELLO E SOUZA, Antonio Candido de, (2000). Literatura e Sociedade. São Paulo, T. A. Queiroz, Publifolha, pp. 182.

SARAMAGO, José. Levantado do chão (1996). Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, Editora Bertrand Brasil, 366 p. (LC)

______. Memorial do convento (1997). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 352 p. (MC)

______.O ano da morte de Ricardo Reis (1998). São Paulo, Cia. das Letras, 415 p. (AMRR)

______. A jangada de pedra (1999). Rio de Janeiro, Record, 317 p. (JP)

______.História do cerco de Lisboa (1998). São Paulo, Cia. das Letras, 348 p. (HCL)

______. O Evangelho segundo Jesus Cristo (1994). São Paulo, Cia. das Letras, 445 p. (ESJC)

______. Ensaio sobre a cegueira (1996). São Paulo: Cia. das Letras, 310 p. (EC)

______. Todos os nomes (2000). São Paulo: Cia das Letras, 279 p. (TN)

______. A caverna (2000). São Paulo, Cia. das Letras, 350 p. (C )

______. (1996). “Os escritores perante o racismo”. In: SCHWARCZ, Lília M. e

QUEIROZ, Renato da Silva. Raça e diversidade. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo : Estação Ciência : Edusp, pp. 77-81.

______ (1999). Entrevista a Horácio Costa. In: Cult – Revista Brasileira de Literatura – Ano 2 – n. 17 p. 16-24).

______ (2000). “A história como ficção, a ficção como história”. In: Revista de Ciências Humanas. Florianópolis, EDUFSC, n. 27, abril de 2000, pp. 09-17.

* Docente na Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências Sociais; Doutor em Educação pela USP e co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999)

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