Edward Said leitor de Erich Auerbach

Walter Praxedes

Lendo a obra do crítico literário e ativista defensor dos direitos humanos Edward Said aprendemos como os saberes atravessam fronteiras identitárias, polinizam as culturas e promovem o florescimento de novos conhecimentos.

Edward Said

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Nascido em 1 de novembro de 1935 em Jerusalém, na Palestina, Edward Said ainda jovem migrou com sua família para viver no Cairo, Egito, após a criação do Estado de Israel, em 1948. Filho de uma família abastada, ele pode estudar nas mais prestigiosas universidades dos Estados Unidos e se tornar professor de Colúmbia, Nova York.

Um dos intelectuais mais influentes do Século XX, em virtude do humanismo e qualidade literária de sua obra, Said também ficou conhecido pelo seu engajamento em defesa dos direitos do povo palestino, até falecer em Nova York em 25 de setembro de 2003, acometido por uma leucemia.

Esse trânsito geográfico e cultural foi responsável pela complexa e sofisticada formação intelectual de Said, sem que isso jamais compensasse o sentimento que o acompanhou sempre de uma “perda desorientadora” que desestabiliza a consciência das pessoas que vivem uma condição de exílio.

Em seu livro Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, Said recorda como a sua experiência pessoal o motivou a escrever. Segundo as suas palavras “a vida de um árabe palestino no Ocidente, especialmente nos Estados Unidos, é desanimadora”, pois “a teia de racismo, dos estereótipos culturais, do imperialismo político e da ideologia desumanizante que contém o árabe ou o muçulmano é realmente muito forte, e é esta teia que cada palestino veio a sentir como seu destino singularmente punitivo” (Said, 1990, p. 38).

Erich Auerbach

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Crítico literário de geração anterior à de Said, Erich Auerbach nasceu em 9 de novembro de 1892, em Berlim, Alemanha, em uma rica família de origem judaica e na maturidade também teve que conviver com a necessidade de “transcender os limites nacionais ou provinciais” na condição de exilado (Said, 2001, p. 59). Lutando como soldado do exército alemão na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Auerbach foi gravemente ferido, mas se recuperou e passou a se dedicar à carreira universitária.

Originalmente formado em direito, Auerbach realizou o doutorado e se dedicou à filologia românica, atuando como docente da universidade de Marburg, até ser exonerado pelo regime nazista, em 1935, e migrar para a Turquia, onde passou a lecionar na Universidade de Istambul. Em 1947 Auerbach migrou para os Estados Unidos, para atuar como professor e pesquisador de Teoria Literária nas universidades da Pensilvânia, Princeton e Yale, até falecer em New Haven, em 13 de outubro de 1957. (Auerbach, 2012, p. 377).

O problema da representação da realidade na literatura ocidental

Como estudioso da literatura, Edward Said se tornou um profundo admirador da teoria construída por Erich Auerbach para a interpretação dos textos literários. Em 1969 Said e sua esposa Mariam chegaram a traduzir o texto “Filologia da literatura mundial”, publicado por Auerbach na Alemanha, em 1952, para refletir a respeito das diferentes representações sobre a realidade histórica.

O mesmo objetivo orientou a produção do livro Mimesis, escrito durante a Segunda Grande Guerra, quando o autor vivia em Istambul, e publicado em alemão em 1946, discutindo uma diversidade muito grande de textos literários, desde aqueles atribuídos a Homero, na antiguidade, até algumas obras clássicas do século XX, como as de Proust e Virgínia Wolf.

É muito significativo que Edward Said estava atento para o que chamou de “centralidade da Europa” no pensamento não só de Auerbach, mas também de Lukács e Adorno, autores que ele lia com igual atenção, e que, no seu entendimento, deixavam a descoberto “uma nova consciência geográfica de um mundo descentrado ou multicentrado, um mundo não mais selado dentro de compartimentos estanques de arte, cultura ou história , mas misturado, confuso, variado, complicado pela nova e difícil mobilidade das migrações, por novos Estados independentes, novas culturas que emergem e desabrocham” (Said, 2003, p. 226), trazendo para o debate intelectual as demandas materiais, simbólicas e as diferentes formas de resistência e protesto das classes e povos subalternos.

Mas esta evidenciação de um limite político da obra de Auerbach, paradoxalmente também expressa sua grande contribuição teórica, ao demonstrar, na obra Mimesis, segundo Said (2007, p. 145), “que a mente humana, ao estudar as representações literárias do mundo histórico, só pode realizar esse estudo… a partir da perspectiva limitada do seu próprio tempo e do seu próprio trabalho. Não é possível nenhum método mais científico e nenhum olhar menos subjetivo…”.   Por isso Said se concentrou em recuperar os procedimentos investigativos adotados por Auerbach, que no seu entendimento possibilitavam “captar a experiência humana e seus registros escritos em toda a sua diversidade e particularidade” (Said, 1995, p. 410).

Auerbach apresentou uma síntese da sua abordagem do texto literário no último capítulo de Mimesis, sua principal obra dedicada à “interpretação da realidade através da representação literária ou “imitação””. Para tanto, na sua visão, é necessário que o intérprete selecione em um conjunto de textos de uma época as representações expressas diretamente nos próprios textos. (Auerbach, 2013, p. 499-501).

A leitura de Mimesis realizada por Edward Said adota como ponto de partida da interpretação do texto literário uma perspectiva próxima ou derivada de Erich Auerbach, segundo a qual “para sermos capazes de compreender um texto humanista, devemos tentar entende-lo como se fôssemos o autor desse texto, vendo a realidade do autor, e assim por diante, tudo pela combinação de erudição e simpatia que é a marca da hermenêutica filológica.” (Said, 2007, p. 117)

O orientalismo e a representação do “outro não-europeu”

A influência dos procedimentos interpretativos adotados por Auerbach na pesquisa realizada por Edward Said fica bem evidenciada já na introdução de Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente. Para Said as representações sobre um “outro não-europeu” se constituem como o ponto de partida de suas análises e levam à conclusão de que

[…] o discurso cultural e o intercâmbio no interior de uma cultura que costuma circular não é “verdade”, mas representação… A própria linguagem é um sistema altamente organizado e codificado, que emprega muitos dispositivos para exprimir, indicar, intercambiar mensagens e informação, representar e assim por diante. Em qualquer exemplo, pelo menos da linguagem escrita, não existe nada do gênero de uma presença recebida, mas sim uma re-presença, ou uma representação. (Said, 1990, p. 33)

Em seguida, Said continua acompanhando de perto a maneira como Auerbach trabalhava:

Decidi, portanto, examinar não só os trabalhos eruditos mas também as obras literárias, as passagens políticas, os textos jornalísticos, livros de viagens, estudos religiosos e filológicos. Em outras palavras, minha perspectiva híbrida é amplamente histórica e “antropológica”, considerando que eu acredito que todos os textos são materiais e circunstanciais em maneiras que variam (é claro) de gênero a gênero e de período histórico a período histórico. […] A minha análise emprega leituras textuais detalhadas cuja meta é revelar a dialética entre o texto ou autor individual e a complexa formação coletiva para a qual a sua obra é uma contribuição. (Said, 1990, p. 34-35)

Os resultados do trabalho interpretativo de Said foi a demonstração de como o “Oriente” foi construído na experiência da Europa ocidental “como um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis” (Said, 1990, p. 13).

Tais  representações possibilitaram o nascimento do “Orientalismo” como um campo de estudos criado para o sistema colonial europeu “…negociar com o Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o” (Said, 1990, p. 15) a partir do pressuposto de uma identidade europeia “superior em comparação com todos os povos e culturas não-europeus” (Idem, p. 19), considerados atrasados.

A partir da apropriação da obra de Auerbach, particularmente do conceito de “representação da realidade”, Said analisa, evidencia e questiona as representações europeias sobre o “Oriente”, para buscar novas alternativas para o estudo das diferentes culturas e povos “desde uma perspectiva libertária, ou não repressiva e não-manipulativa.” (Said, 1990, p. 35)

Referências

Auerbach, Erich. Figura. São Paulo, Ática, 1997.

______. Dante, poeta do mundo secular. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.

______. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2012.

______. Mimesis. São Paulo, Perspectiva, 2013.

______. A novela no início do Renascimento. São Paulo, Cosac Naify, 2013.

SAID, Edward W. Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

______. Cultura e imperialismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

______. Fora do lugar – memórias. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

______. Humanismo e crítica democrática. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.