Marx e a educação

Walter Praxedes

marx PhotoScan
Engels, de pé, à esquerda da foto, ao lado de Marx e suas filhas Laura, Eleanor e Jenny (da esquerda para a direita) – nas férias de 1864. (1)

Um ponto de partida que consideramos promissor para o estudo da dimensão educativa da obra do pensador alemão Karl Marx é a reflexão sobre a terceira de suas 11 Teses contra Feuerbach. Nela o autor se coloca em uma perspectiva oposta à de autores positivistas como Comte e Durkheim, os quais concebiam a educação como um processo unilateral que torna os sujeitos individuais meros receptáculos de uma formação educacional imposta pelo sistema social. Para Marx, que criticava o pensamento materialista anterior a ele, “a doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado” (MARX, 1978b, p. 52).

A tese acima revela que, para Marx, a educação não é algo pronto a ser imposto às cabeças vazias das novas gerações, como prevê, por exemplo, a concepção educacional durkheimiana. A perspectiva marxiana considera a educação como uma relação social que se estabelece entre os sujeitos de uma sociedade. Como a sociedade é encarada como um processo social em mutação constante, a educação é um elemento que deve ser considerado também em permanente estado de transformação. Se, por um lado, Marx considera que os homens são o produto das circunstâncias, por outro, ele atribui a esses homens a capacidade de modificar as circunstâncias em que vivem, pois a ação humana, no seu entendimento, influencia os processos de transformação da sociedade. Se os educadores, pais, professores e demais sujeitos sociais influenciam a formação das novas gerações, eles próprios, por sua vez, estão em um contínuo processo formativo, que resulta de seu relacionamento entre si e com as novas gerações.

I – A educação como uma dimensão da vida social

Na obra de Marx, contudo, não se pode dizer que se encontra um saber sistemático e organizado sobre a educação, embora esta seja um componente presente em inúmeros momentos em suas reflexões sobre a história e sobre as sociedades capitalistas. Marx considera a educação não como uma realidade externa que possui existência própria, mas como uma relação social entre os indivíduos e classes sociais, uma expressão da forma de consciência da sociedade e, ainda, uma prática social que se desenvolve em combinação com as demais esferas da vida social, como a forma em que está dividido o trabalho entre os membros da sociedade, as tecnologias existentes e o modo como os seres humanos se relacionam para dividir os resultados do trabalho. Segundo tal perspectiva, a educação não pode ser devidamente entendida se for apenas analisada isoladamente, fora da totalidade social de que faz parte, influenciando os demais fatores da sociedade e, ao mesmo tempo, sendo por eles influenciada, conforme pode ser inferido da seguinte passagem da obra Contribuição à crítica da economia política:

“Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência” (MARX, 1978a, p. 129-130).

Alguns estudiosos marxistas, entretanto, tiraram conclusões apressadas sobre esta relação entre a estrutura econômica da sociedade, acima considerada pelo próprio Marx como a ‘base real’ que sustenta as instituições jurídicas, políticas e as concepções intelectuais, científicas e ideológicas, atribuindo sempre aos fatores econômicos o poder de explicar as causas verdadeiras e últimas dos fenômenos sociais. No pensamento de Marx, fica claro como os acontecimentos no interior de uma sociedade podem influenciar uns aos outros, e apenas mediante o estudo deste relacionamento recíproco é que se pode chegar a um conhecimento satisfatório sobre a totalidade social. Até mesmo Engels, que já foi acusado, entre outros, pelo filósofo Jean-Paul Sartre de reduzir o materialismo histórico a uma forma de conhecimento unilateral que explica todos os fenômenos sociais como se estivessem determinados pelos interesses econômicos, no final de sua vida esclareceu em uma carta que:

“[…] segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso afirmando que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu ulterior desenvolvimento e em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas. Há uma ação recíproca de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento econômico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples equação de primeiro grau” (MARX; ENGELS, 1983, p. 547)

Antes de darmos continuidade, contudo, à nossa pesquisa sobre a concepção marxiana que situa a educação como uma determinada forma de consciência e de prática social própria de um determinado modo de produção social, devemos esclarecer que a noção de modo de produção pode ser entendida como uma noção teórica a ser testada com as informações sobre a própria realidade histórica, ou seja, como uma totalidade que se constitui na história e expressa o estágio de desenvolvimento das chamadas forças produtivas combinadas com as relações sociais de produção, mas jamais pode ser entendida como uma estrutura rígida que determina totalmente as ações humanas e o movimento histórico de forma linear, unilateral, necessário e ininterrupto, como propõe o evolucionismo positivista.

Em seus estudos, Marx chegou à conclusão de que a humanidade havia passado na história por vários modos de produção, que podem coexistir em diferentes espaços geográficos em períodos históricos muito próximos, como a comunidade primitiva, passando pelas sociedades antigas, onde é explorado o trabalho escravo, pelo modo de produção asiático, o feudalismo europeu, baseado na servidão, chegando ao capitalismo, fundamentado no trabalho assalariado e na propriedade privada dos meios de produção pelo capitalista e que anuncia, por sua vez, a possibilidade do surgimento do modo de produção socialista, que transforma em coletiva a propriedade privada.

As forças produtivas representam a capacidade de uma coletividade transformar a natureza em recursos para a sua vida material. Isso ocorre por meio do trabalho que os seres humanos realizam. Por sua vez, o trabalho de transformação da natureza depende de um saber técnico a respeito das formas mais eficientes de atuar sobre a natureza, utilizando-se de instrumentos que multiplicam as forças do animal humano e são acumulados como saberes que propiciam uma determinada produtividade do trabalho. Deve ser mencionado, ainda, que os seres humanos vão-se diferenciando do restante do reino animal ao conceberem tanto as formas mais eficientes de trabalhar quanto os meios utilizados para melhor utilizar as técnicas de trabalho criadas, organizar a cooperação entre os trabalhadores, a forma de dividir o trabalho entre os diferentes sexos e entre as pessoas de diferentes idades, por exemplo.

Já as relações sociais de produção expressam a maneira como os humanos se relacionam durante a realização das atividades do trabalho social, distribuindo entre os membros da coletividade o poder de decisão sobre quais atividades devem ser realizadas, quais técnicas serão empregadas no trabalho, quem terá acesso ao uso dos meios de trabalho como a terra ou as ferramentas. Em outras palavras, as relações sociais entre os membros de uma coletividade definem quem trabalha, em quais atividades as pessoas trabalham, em que ritmo o trabalho será realizado, durante quanto tempo cada trabalhador realizará a sua atividade e, por último, como será distribuído o resultado do trabalho, ou seja, como será repartida a riqueza produzida e quem terá o direito de ter ou não propriedade sobre os recursos essenciais para a vida social.

Entre as forças produtivas e as formas de relacionamento social podem ocorrer inadequações, conflitos, contradições, gerando problemas para a sobrevivência da sociedade em questão que se expressam pelas crises e revoluções. Nas palavras de Marx:

“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social” (MARX, 1978a, p. 130)

II – Educação e alienação

Por considerar que o ser humano compõe o mundo natural, mas como um ser social que só satisfaz as suas necessidades ao se relacionar com outros seres humanos, ao mesmo tempo que se relaciona com a natureza por meio do trabalho, pode-se dizer que a alienação do trabalho é a negação desta unidade entre o homem e o mundo, uma vez que a sua atividade de trabalho não leva à satisfação de suas necessidades materiais e perverte a sua relação com os outros seres humanos. Para Marx, como demonstram os seus escritos de juventude que ficaram conhecidos como Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844 (MARX, 1979), é a propriedade privada que leva uma minoria dos seres humanos a se apropriar dos meios que devem estar à disposição de todos. O direito à propriedade é a negação da propriedade a outrem, portanto, é sua alienação em relação aos meios que satisfariam as suas necessidades humanas. Em síntese, a alienação é o que separa o ser do destino de sua própria sociedade, consequentemente, dos demais seres humanos, membros da espécie, e também do restante da natureza, já que o ser individual, para alcançar e manter a propriedade individual, nega esta mesma possibilidade aos demais seres humanos.

A propriedade privada transforma o trabalho humano em uma atividade desumana, uma vez que o trabalhador passa a executar uma atividade cujo resultado, os bens produzidos ou o lucro que advirá de sua venda no mercado, pertencerá ao capitalista. Como o trabalhador trabalha apenas para satisfazer o seu interesse em receber o salário, para ele a atividade de trabalho em si é desgastante, enfadonha e quase sempre sem sentido; isso leva o capitalista a controlar rigidamente o tempo de trabalho do trabalhador, forçando-o a se empenhar além de suas forças físicas e intelectuais.

“O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho, mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas, mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo, mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo, mas sim a outra pessoa” (MARX, 1979, p. 91)

Uma educação simplesmente adequada às demandas da divisão do trabalho capitalista confirma a alienação, pois difunde entre os seres humanos uma consciência social parcelarizada, que aceita a divisão entre concepção e execução, entre trabalho intelectual e braçal, e reduz o trabalhador às características de sua ocupação funcional, impedindo-o de realizar todas as suas potencialidades humanas. Uma educação alienada torna-se alienante ao formar os futuros trabalhadores como seres unilaterais, especializados, que não estão interessados nas consequências de sua atividade de trabalho para os demais seres humanos, mas estão preocupados apenas com o salário que receberão após a atividade. De uma atividade desenvolvida no espaço público, para satisfazer uma necessidade ao mesmo tempo privada e social do ser humano, o trabalho alienado pode gerar tanto a rejeição à atividade pública de trabalho quanto o seu contrário, que é a realização do trabalho como uma compulsão e um fim em si mesmo.

“Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do homem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada. Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva agora aparecem ao homem apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter a sua existência” (MARX, 1979, p. 95)

A alienação é uma relação social entre um ser humano proprietário que está preocupado em acumular mais propriedade privada, com outro ser humano, o trabalhador, que se submete à realização de um trabalho que o mutila, porque esta é a condição para a sua sobrevivência enquanto não-proprietário. Os seres humanos pervertem, assim, o seu relacionamento social ao se transformarem em meros objetos diante dos produtos criados por eles próprios.

Para superar essa condição de alienação, não basta a consciência sobre o que causa a alienação e sobre as suas consequências. Para Marx, a superação da alienação será o resultado da praxis, ou seja, de uma ação consciente dos seres humanos para acabar com a alienação. Uma educação que critique a dimensão alienada do trabalho e da vida pública pode se constituir no primeiro passo para uma ação transformadora da condição de alienação em que a humanidade se encontra no capitalismo.

III – A divisão social do trabalho e a reprodução das relações sociais

Estamos reconhecendo, assim, que os grupos humanos, deliberadamente ou não, sempre desenvolveram formas de preparar os seus membros para o trabalho, educando-os para a realização de determinadas atividades produtivas e sobre a maneira como devem relacionar-se com os outros membros da coletividade. No pensamento marxiano, a educação pode ser considerada como uma superestrutura social que guarda uma correspondência com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão social do trabalho. Para utilizarmos os termos do próprio Marx:

“O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência […] Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transtorna com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim” (1978a, p. 130)

Ao lermos atentamente uma passagem da obra A ideologia alemã (MARX; ENGELS, 1982), escrita por Marx em parceria com Engels, na qual esclarecem o seu método de estudo, mesmo de forma implícita, fica claro que os autores concebiam a educação como um dos componentes do conjunto da vida social:

“[…] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não se parte dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida representa-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia […] Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência” (MARX; ENGELS, 1982, p. 14).

Em outras palavras, trata-se de aplicarmos os pressupostos marxistas acima para a análise da concepção educacional presente na obra marxiana. Na sociedade capitalista, a manutenção de uma diferença social básica entre, de um lado, os proprietários dos meios de produção e, de outro, um grande número de despossuídos, que para sobreviver necessitam vender a sua força de trabalho para os primeiros, garante a reprodução contínua da estrutura social estratificada. Esta diferença econômica básica coloca em oposição os assalariados e os capitalistas, gerando, socialmente, a diferença entre as classes proletária e burguesa.

As classes sociais se constituem historicamente a partir do local ocupado pelos sujeitos no processo de produção material das sociedades modernas e mantêm uma relação de complementaridade e de antagonismo entre si. No pensamento de Marx, as classes sociais se constituem em duas fases consecutivas:

“na primeira, a classe constitui somente uma classe em relação a outra, devido à sua posição na organização sócio-econômica e às relações específicas que resultam desta posição. Na segunda fase, a classe já toma consciência de si mesma e de seus interesses, e concebe para si uma missão histórica, e se constitui como uma classe no verdadeiro sentido da palavra, como um grupo de ação política potencial, que intervém como tal nas lutas sociais e nos conflitos econômico-políticos e que contribui como tal para as mudanças sociais e para o desenvolvimento da sociedade” (STAVENHAGEN, 1984, p. 290)

Os trabalhadores reproduzem a sua força de trabalho gerando, alimentando e educando filhos que ocuparão os seus lugares no futuro. O crescimento econômico, como explica Lefebvre, pressupõe a reprodução ampliada tanto da maquinaria (capital fixo) quanto da força de trabalho (capital variável que assume a forma de salários).

A educação torna-se, assim, uma forma de preparar as novas gerações de proprietários e de não-proprietários para as posições que irão ocupar na hierarquia do processo de produção. A este respeito, Henri Lefebvre recorda que a crítica pedagógica francesa evidenciou que na ‘escola de massas’, onde ocorre a instrução primária,

“os métodos, os locais, a arrumação do espaço, reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar sem prazer […] O espaço pedagógico é repressivo, mas esta estrutura tem um significado mais vasto do que a repressão local: o saber imposto, engolido pelos alunos, vomitados nos exames, corresponde à divisão do trabalho na sociedade burguesa, serve-lhe, portanto, de suporte […] A escola prepara proletários e a universidade prepara dirigentes, tecnocratas e gestores da produção capitalista. Sucedem-se as gerações assim formadas, substituindo-se uma pelas outras na sociedade dividida em classes e hierarquizada […] A escola e a universidade propagam o conhecimento e formam as gerações jovens segundo padrões que convêm tanto ao patronato como à paternidade e ao patrimônio. Há disfunções quando o saber crítico inerente a todo o conhecimento dá origem a revoltados. Às funções maciças da escola e do liceu sobrepõe-se a função elitista da universidade, que filtra os candidatos, desencoraja ou afasta os que se desviam, permite o establischment (LEFEBVRE, 1984, p. 226).

A concepção segundo a qual a escola é um local de democratização do saber encobre a contradição fundamental da sociedade capitalista, escondendo que a escola classista é mais um dos espaços destinados à reprodução da hierarquia econômica, entre proprietários e não-proprietários; da hierarquia social, entre burgueses e proletários; e da hierarquia política, entre governantes e governados. Tal fato pode ser ilustrado pela frequência como os indivíduos que ocupam as posições atribuídas aos profissionais com maior tempo de escolarização provêm das classes e camadas sociais que tiveram as mesmas oportunidades educacionais em épocas anteriores.

IV- Marx e os problemas educacionais do seu tempo

O Marx que tinha uma concepção de conjunto sobre a história humana e sobre o modo de produção capitalista não pode ser dissociado do militante político, que tinha como incumbência a formulação de propostas viáveis para os problemas do momento, que fariam parte das bandeiras de luta da Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual foi um dos fundadores e militantes mais destacados. Ao discutirmos o posicionamento político e as propostas de Marx a respeito das medidas educacionais adequadas à sua época, temos que levar em consideração, portanto, que o autor estava preocupado com os problemas mais imediatos e que exigiam que fossem colocados em prática alguns “indispensáveis antídotos contra as tendências de um sistema social que degrada o operário a mero instrumento para a cumulação de capital, e que transforma pais, devido às suas necessidades, em proprietários de escravos, vendedores dos seus próprios filhos” (MARX; ENGELS, 1983, p. 83).

As propostas educacionais de Marx evidenciam, assim, as nuanças de um pensamento que mantinha como horizonte a transformação revolucionária da sociedade, sem, contudo, abster-se diante dos desafios colocados pela prática política em uma sociedade de classes.

É pelo estudo do relacionamento entre as classes sociais, ou seja, entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores destituídos desses meios, que se pode interpretar a estrutura do Estado não como representante de uma vontade geral abstrata que defende o bem comum, mas como um conjunto de instituições jurídicas e administrativas que garante a dominação dos capitalistas sobre os proletários para viabilizar a reprodução da desigualdade entre as classes sociais, ao propiciar a acumulação de capital em um polo da sociedade, submetendo pela lei ou pela força física a classe trabalhadora.

Como consta já no Manifesto do Partido Comunista de 1848, redigido em parceria com Engels, Marx defendia a implementação de uma “educação pública gratuita de todas as crianças” (MARX; ENGELS, 1982, p. 125), com a eliminação do trabalho infantil, na forma como este era então explorado pelos empresários capitalistas, e a proposição de uma modalidade combinada de educação, voltada para a formação de todas as dimensões humanas, incluindo a atividade produtiva, a sensibilidade artística, a formação científica e o cultivo do corpo.

Num documento redigido, posteriormente, por Marx, com o objetivo de orientar os delegados do Conselho Central Provisório que participariam do I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, que se realizou em Genebra, de 3 a 8 de setembro de 1866, fica claro como o autor defendia a intervenção dos trabalhadores nos debates sobre a legislação educacional, pois, no seu entendimento, esta era a maneira mais eficiente de fazer com que o Estado impusesse leis que limitassem a ganância dos empresários capitalistas, pois

“[…] impondo tais leis, a classe operária não fortifica o poder governamental. Pelo contrário, ela transforma esse poder, agora usado contra ela, em seu próprio agente. Eles efetuam por uma medida geral aquilo que em vão tentariam atingir por uma multidão de esforços individuais isolados” (MARX; ENGELS, 1983, p. 83).

Mesmo defendendo a importância de uma legislação educacional, seria um erro concluir que Marx era favorável a que o Estado, nas sociedades capitalistas, se tornasse responsável pela educação popular, como se conclui da leitura de sua Crítica ao Programa de Gotha:

“Uma ‘educação popular do Estado’ é totalmente rejeitável. Determinar por meio de uma lei geral os meios das escolas primárias, a qualificação do pessoal docente, os ramos do ensino, etc., e, como acontece nos Estados Unidos, supervisionar por inspetores do Estado o cumprimento destas prescrições legais, é algo totalmente diferente de nomear o Estado educador do povo! Mais ainda, é de excluir igualmente o governo e a Igreja de toda a influência sobre a escola. Ora, no Império Prussiano-Alemão (e que não se recorra ao subterfúgio duvidoso de que se está a falar de um ‘Estado do futuro’; já vimos o que ele é), inversamente, é o Estado que precisa de uma muito rude educação pelo povo” (MARX; ENGELS, 1985, p. 27)

Conclusão

No pensamento de Marx, a educação é uma relação social que expressa a forma como os sujeitos sociais são preparados, preparam-se para viver e convivem em uma sociedade dada, a qual se encontra em um momento histórico que pode ser identificado como pertencente a determinado modo de produção, possibilitando a reprodução das relações sociais de produção e das forças produtivas. Em cada modo de produção ocorre uma determinada forma de divisão do trabalho, que pressupõe uma educação adequada ao domínio que é exercido sobre a natureza. Os membros das camadas e classes sociais são educados para a caça e a coleta, para a agricultura e a pecuária, para o artesanato ou para os serviços e a indústria baseada na maquinofatura. O modo de produção também sofre as consequências das ações revolucionárias realizadas pelos seres humanos para a superação dos problemas que a vida social lhes apresenta.

É necessário, pois, um processo social de aprendizagem da cultura que envolve a aprendizagem das técnicas de produção, de relacionamento interpessoal e também de representação simbólica da vida social e participação na vida política da sociedade. Em conjunto, esse processo de aprendizagem é chamado de processo de socialização; resulta da relação social entre os membros de uma coletividade para garantir tanto a continuidade da coletividade no tempo quanto a sua transformação para que consiga solucionar os novos problemas com que se depara para a garantia dos recursos materiais de que necessita e da forma de integração social mínima entre os seus membros. Em Marx, a educação deve ser concebida, portanto, como um processo de formação de um ser que é, ao mesmo tempo, produto da história e seu agente transformador. O que torna imprescindível para os processos educacionais a crítica ao existente.
(1) HUNT, Tristam. Comunista de casaca – a vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio de Janeiro, Record, 2010.

Referências

HABERMAS, Jurgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo, Brasiliense, 1983.

LEFEBVRE, H. Estrutura social: a reprodução das relações sociais. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. (Org.). Sociologia e sociedade. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1984. p. 219-252.

MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978a. (Coleção Os pensadores).
_____. Teses contra Feuerbach. São Paulo: Abril Cultural, 1978b. (Coleção Os pensadores).

______. Primeiro manuscrito: trabalho alienado. In: FROMM, E. Concepção marxista do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. p. 89-102.

______. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v. 1, t. 2.

MARX; ENGELS. Obras escolhidas. Lisboa: Edições “Avante!”, 1982. t. 1.

MARX; ENGELS. Obras escolhidas. Lisboa: Edições “Avante!”, 1983. t. 2.

MARX; ENGELS. Obras escolhidas. Lisboa: Edições “Avante!”, 1985. t. 3.

STAVENHAGEN, R. Classes sociais e estratificação social. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. (Org.). Sociologia e sociedade. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1984.

(Texto publicado originalmente em PRAXEDES, W. L. A. . Sociologia da educação no pensamento de Marx. In: Simone Pereira da Costa Dourado; Walter Lucio de Alencar Praxedes. (Org.). Teorias e pesquisas em ciências sociais. 1ed.Maringá – PR: Editora da Universidade Estadual de Maringá – EDUEM, 2010, v. , p. 367-379.)

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