A relação entre o padre Helder Camara e o educador Lourenço Filho na década de 1930: uma interpretação política

Da esquerda para a direita (de pé): o 3º é o poeta Manuel Bandeira, o 5º é o líder católico Alceu Amoroso Lima e o 7º é o padre Helder Camara. Sentados: o educador Manuel Bergstrom Lourenço Filho e o 3º é o então ministro da Educação Gustavo Capanema. A foto é do arquivo particular de Rui Loureço, filho do educador, gentilmente cedida para o autor.

Da esquerda para a direita (de pé): o 3º é o poeta Manuel Bandeira, o 5º é o líder católico Alceu Amoroso Lima e o 7º é o padre Helder Camara. Sentados: o educador Manuel Bergstrom Lourenço Filho e o 3º é o então ministro da Educação Gustavo Capanema. A foto é do arquivo particular de Rui Loureço, filho do educador, gentilmente cedida para o autor.

Walter Praxedes

Resumo: Este artigo propõe uma interpretação política que contextualiza a relação de colaboração entre os educadores Lourenço Filho e padre Helder Camara na década de 1930 como uma expressão peculiar da coalizão centro-direitista que dava sustentação política para o regime comandado por Getúlio Vargas, demonstrando como a famosa oposição entre os educadores escolanovistas e católicos, verificada na história da educação brasileira, não pode ser considerada como absoluta.

Palavras-chave: Escola nova, católicos, interpretação política

Apesar de sua importância na história da constituição da área educacional brasileira como um campo de lutas no qual se disputava a definição da legislação educacional do país, os critérios para a distribuição dos recursos públicos destinados à educação, o reconhecimento oficial ou não dos serviços educacionais prestados pelos estabelecimentos católicos e o controle sobre o Ministério da Educação e Saúde, com todos os seus postos e recursos, a famosa oposição entre os “pioneiros da educação nova” e católicos, nos anos trinta do século XX, não pode ser considerada absoluta, como demonstra a análise do relacionamento entre os educadores Lourenço Filho e padre Helder Camara. O próprio líder leigo católico Alceu Amoroso Lima chegou a afirmar que entre católicos e pioneiros ocorrreram “… não apenas oposições mas composições possíveis” (1).

Recairá sobre uma dessas “composições possíveis” o enfoque principal deste artigo. Entretanto, com o intuito de discutirmos algumas nuanças da conjuntura política e educacional daquele período, uma segunda hipótese abordada nesta exposição trata o relacionamento político, a colaboração intelectual entre Lourenço Filho e Helder Camara, bem como a admiração do segundo pelo pensamento e pela obra educacional do primeiro, como uma expressão peculiar, não intencional, daquilo que o historiador Edgar Carone denominou como a “união sagrada contra o comunismo” (2), ocorrida, nos anos trinta, entre sacerdotes e leigos católicos, intelectuais, políticos e militares em torno do regime político comandado por Getúlio Vargas.

Em termos gramscianos, pode-se dizer que o regime iniciado com a Revolução de 1930, passava por um momento no qual “a sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo que assegura a conformidade das massas populares ao tipo de produção ou de economia em um momento determinado)” recorre às “organizações ditas privadas, tais como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc.” para consolidar sua hegemonia “sobre o conjunto da sociedade nacional”. (3)

Pelo menos sumariamente, alguns momentos importantes da historia da educação brasileira devem ser recordados, para que se possa discutir o relacionamento entre os educadores em questão. Sob a direção de Dom Sebastião Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro desde 1921 e cardeal a partir de 1930, os católicos elegeram a área educacional como estratégica para a “recristianização das elites e do povo brasileiro” e para a arrecadação de recursos pela sua instituição através da rede de escolas confessionais. (4)

Conforme escreveu Schwartzman, Bomeny e Costa, “em 1931 a Igreja católica encontra em Francisco Campos (Ministro da educação de Vargas) um explícito apoiador de sua causa”, que articula um pacto de colaboração entre o principal dirigente católico e Getúlio Vargas, através do qual, “… a Igreja deveria oferecer ao novo regime uma ideologia que lhe desse substância e conteúdo moral, sem os quais ele não conseguiria se consolidar” (5). Em troca, Dom Leme “… obteve ajuda financeira estatal para amparar as escolas católicas, conseguiu vetar o divórcio e reintegrar a educação religiosa durante o período escolar, além de outras medidas. (6) Coerente com tal pacto, em abril de 1931 Campos lança um decreto que prescrevia o ensino religioso nas escolas oficiais do país, que era uma reivindicação católica desde a instauração da República, em 1889, e que fora frustrada até então.

Percebendo que a Igreja católica ameaçava suas propostas em favor da escola pública, obrigatória, laica e gratuita, os educadores da Associação Brasileira de Educação, dentre os quais estava Lourenço Filho, lançam, em 1932, o famoso “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”.

No ano seguinte, comandados por Dom Leme e Alceu Amoroso Lima, os católicos fundam a Liga Eleitoral Católica, para tentar influir na Constituinte de 1933, e a Confederação Católica Brasileira de Educação, para coordenar e centralizar a defesa dos interesses dos estabelecimentos confessionais de ensino contra as ameaças representadas por uma virtual implementação das propostas dos educadores da ABE.

Além da aprovação de suas principais reivindicações pela Constituinte, em julho de 1934 os católicos conseguem que Gustavo Capanema assuma o Ministério da Educação e Saúde, tendo sua nomeação e atuação no cargo monitorada diretamente por Alceu Amoroso Lima, “como parte do acordo geral que se estabelecera entre a Igreja e o Regime de Vargas, proposto anos antes por Francisco Campos”. (7)

I – Concepções e práticas educacionais do padre Hélder Câmara

Sobre suas concepções ideológicas e posicionamentos políticos nos anos trinta, em uma correspondência enviada aos seus colaboradores, o próprio Camara reconheceria que “… existisse TFP naqueles tempos e eu teria sido um de seus líderes”. (8)

1 - pe. helder e irma

Padre Helder com sua irmã, a freira Stefânia Maria (Maroquinha)

Na origem de sua visão de mundo politicamente autoritária e católica ultramontana, está a formação que recebera no Seminário Episcopal de Fortaleza, entre os anos de 1923 e 1931, embasada, fundamentalmente, no antimodernismo do Concílio Vaticano I e no ideário político conservador transmitido pelo líder leigo Jackson de Figueiredo. Ainda no seminário, Helder Camara integrou um grupo que se autodenominava “Jacksonianos”. Depois do desaparecimento de Jackson, em 1928, Câmara passou a ser orientado diretamente por Alceu Amoroso Lima, com o qual se correspondia regularmente, e de quem recebeu o aval para, depois de sua ordenação sacerdotal, em agosto de 1931, fundar os movimentos Juventude Operária Católica, Liga dos Professores Católicos e auxiliar o tenente Severino Sombra a criar a Legião Cearense do Trabalho, de inspiração assumidamente salazarista. A intensa atividade de Camara na direção destes movimentos culminou na sua entrada para a Ação Integralista Brasileira, em 1932, convidado diretamente pelo líder Plínio Salgado.

Foi com estas credenciais que o padre Hélder Câmara estreou, nacionalmente, no debate educacional entre católicos e pioneiros, com um artigo de combate, publicado na revista “A Ordem”, de julho de 1933, onde ataca diretamente um dos principais líderes do movimento escolanovista:

“Anísio Teixeira, um dos mestres da pedagogia nova no Brasil, acaba de publicar ‘Educação Progressiva’; estudos eivados duma philosofia errronea e seductora, capazes de fazer uma mal immenso, em nossa terra, onde a ausência de princípios seguros e norteadores, mesmo entre os nossos intellectuais, deixa muitos delles a mercê do primeiro vento de doutrina moderna surgido entre nós”. (9)

Alguns meses depois, desta vez nas páginas da Revista Brasileira de Pedagogia, Câmara voltaria a atacar Anísio Teixeira, afirmando que os admiradores deste,
“… não deviam consentir que elle escrevesse. Em poucas páginas, são tantas as contradições em que elle cáe, tantos os erros que ele avança, solene, tantos os pontos falhos dados como dogmas, que, ao surgirem as irreverencias de que elle é prodigo, bem se pode sorrir do arrogante e enfatuado inimigozinho de nossa fé”. (10)

Em fevereiro de 1934 Câmara atua como membro da comissão executiva organizadora da VI Conferência Nacional de Educação, promovida pela ABE, em Fortaleza. Na ocasião, após fazer uma exposição e um dos debates, protagonizou um boicote aos educadores ecolanovistas presentes, dentre os quais estava Anísio Teixeira, Almeida Júnior e Edgar Sussekind de Mendonça:
“Comandei a retirada do público numeroso que acorrera à minha palestra… recordaria Câmara, autocriticamente. Contra todas as regras da hospitalidade cristã e do espírito evangélico, deixei os visitantes – uns 30 educadores, vindos sobretudo do Rio – às moscas”. (11)

Com o acirramento do confronto entre católicos e escolanovistas na conferência, o educador Edgar Sussekind de Mendonça desacata o representante da Confederação Católica Brasileira de Educação, Dom Xavier de Matos. Em represália, logo após o encerramento do evento, no dia 12 de fevereiro de 1934, pessoalmente Câmara insufla um grupo de militantes integralistas a surrar o Sussekind de Mendonça. (12)

Em outra oportunidade, Camara também se insurge contra a ABE e seus membros. Enquanto se preparava para participar do primeiro Congresso Católico Nacional de Educação, que se realizaria em setembro de 1934, no Rio de Janeiro, em uma entrevista concedida ao jornal católico “O Nordeste”, o jovem padre cearense afirma:
“… Nossos inimigos se unem apenas pelo odio commum que nos votam. Mas não se entendem – A VI Conferencia de Educação permitiu-nos constatar que, na intimidade, os da A.B.E. não só não se toleram, mas se devoram, esterilizando-se em humilhantes atritos pessoais. Os seus congressos são inexpressivos, inoperantes, donde podemos afirmar que o Congresso de setembro não será apenas o primeiro Congresso Catholico Nacional de Educação, mas será primeiro mesmo como simples Congresso Pedagogico Nacional”. (13)

Incansável em sua cruzada contra os escolanovistas, na abertura do Congresso Católico Camara volta a fazer um discurso polemizador:
“Nós, e só nós, poderemos salvar o mundo e o Brasil do espetáculo entristecedor de pseudos educadores que não sabem o que querem e flutuando ao vento das doutrinas mais desencontradas se contradizem mutuamente e, o que é mais triste, a si mesmos se contradizem. No terreno psicológico vacilam entre psicologias objetivas extremadas, como o behaviourismo, e extremadas psicologias subjetivas, como a psicanálise”. (14)

II – Lourenço Filho e os católicos

Mesmo na condição de um dos principais expoentes do movimento de renovação da educação brasileira, Lourenço Filho consegue passar ao largo da polarização política e ideológica entre escolanovistas e católicos, combinando, em suas concepções, a defesa da preponderância estatal na coordenação da educação nacional com o respeito aos interesses católicos:
“Neste particular, a Escola Nova, como conjunto de doutrinas deixa de tomar atitude exclusivista. É antes conciliatória. Por certo que a autoridade do Estado prepondera na concepção da educação hoje, seria excusado disfarçá-lo. Mas por outro lado, chama em seu auxílio, os pais… e em relação à Igreja, a atitude de numerosos reformadores, embora não sectária, tende a solicitar sua cooperação e valimento”. (15)

O posicionamento teórico e prático de Lourenço Filho, favorável aos católicos, tornava-o alvo de comentários elogiosos por parte destes, como o escrito pelo intelectual católico e membro do Centro Dom Vital, Jonathas Serrano: “Fazemos ao professor Lourenço Filho a justiça de reconhecer que, na direção da instrução pública, em São Paulo, não criou obstáculos à aplicação do decreto de 30 de abril de 1931”. (16)

Considerando-se a influência do grupo católico sobre os cargos educacionais das várias instâncias estatais na época, tal declaração pode ser encarada como um verdadeiro salvo-conduto para que Lourenço Filho não tivesse sua atuação obstaculizada pelos mesmos. Aliás tal salvo-conduto era mais que merecido por Lourenço Filho, que para fazer valer o rigoroso regulamento interno do Instituto de Educação e para não frustrar a expectativa de seus aliados católicos com relação à sua atuação, em novembro de 1932, solicitou a abertura e compôs uma comissão de inquérito que investigou a distribuição de boletins “subversivos” por uma aluna do Instituto, que acabou sendo suspensa de suas atividades por trinta dias, por ter pregado a greve e a utilização de meios violentos para a resolução dos problemas sociais, tudo isso em nome de uma organização autodenominada Federação Vermelha dos Estudantes. (17)

Com a ressalva de que não se pretende aqui insinuar nenhuma vinculação de Lourenço Filho com a chamada “doutrina do sigma”, podemos observar uma certa coincidência entre a forma como o educador paulista concebia a combinação das atribuições estatais na educação com os interesses da Igreja, e a concepção educacional integralista de Camara, segundo a qual embora a “educação intensiva e integral do povo” fosse considerada como “um dever fundamental do Estado”, este “jamais poderá ultrapassar a legítima esfera dos seus direitos, aniquilando ou mesmo cerceando os direitos primordiais da família e da religião” (18). Ou seja, ambos defendem que as atribuições do Estado na área educacional sejam combinadas com a atuação e os interesses dos estabelecimentos confessionais.

Por tudo isso, a despeito de seus ataques aos representantes do movimento de renovação da educação brasileira, o padre cearense cultivava uma opinião francamente favorável ao educador Lourenço Filho, como pode ser constatado em uma resenha que escreveu sobre o livro “Testes ABC”:
“Dado o justo renome de que desfruta nos meios pedagogicos o Dr. Lourenço Filho, constitui um acontecimento importante a aparição de seu novo livro ‘Testes A.B.C. para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita’. O novo estudo do ilustre pedagogo confirma-lhe os títulos de agitador salutar de grandes problemas educacionais no nosso meio e de pesquisador inteligente e operoso, como os que mais o sejam. Ele, que em ‘Introdução ao estudo da Escola Nova’, rasgou tantos horizontes aos professores do Brasil, agora focaliza novos e importantes aspectos da questão educacional… Lourenço Filho, entrando na corrente das cogitações manifestadas modernamente, por Gray, La Salle, e Gates, conseguiu para o caso particular da leitura e escrita, um teste que talvez eles estejam procurando… Escrevesse em outra língua, o diretor do Instituto de Educação do Distrito Federal e o seu trabalho possivelmente haveria de conquistar renome universal”. (19)

É bem possível que, além do reconhecimento das atitudes e posicionamentos favoráveis aos católicos e da admiração pela competência intelectual e administrativa de Lourenço Filho, o padre Helder Camara cultivasse também uma simpatia pessoal pelo mesmo, a quem conhecera aos treze anos, em 1922, quando da passagem do educador paulista por Fortaleza. Era o menino Hélder quem buscava na casa de Lourenço Filho os artigos que este escrevia para serem publicados no Jornal “O Diário do Ceará”, do qual seu irmão mais velho, Gilberto Camara, era redator. Em algumas ocasiões Helder ficava aguardando Lourenço Filho concluir um artigo, enquanto a esposa do educador lhe fazia companhia. (20)

Quando o padre Helder Camara assumiu a Diretoria de Instrução Pública do Ceará, em junho de 1935, após ter coordenado com êxito a campanha eleitoral da Liga Eleitoral Católica em seu Estado, é possível que essa simpatia pessoal tenha contribuído para que ele se sentisse à vontade para solicitar a colaboração informal de Lourenço Filho, que ocupara o mesmo cargo no início dos anos vinte. Câmara toma posse do cargo em 5 de junho de 1935 e assim que inicia sua gestão, por correspondência, solicita e recebe sugestões de Lourenço Filho.

Num rápido balanço de sua atuação no cargo, além de contemplar as reivindicações corporativas de sua instituição, como a regulamentação do ensino religioso nas escolas públicas e a organização do II Congresso Católico Regional de Educação, Camara se empenhou na criação de um jardim de infância na Escola Normal, iniciou a realização de um censo escolar, incentivou a formação de classes homogeneizadas e aplicou os testes ABC, medidas que evidenciam a influência das ideias de Lourenço Filho em sua atuação.

Por discordar das medidas repressivas autorizadas pelo governador Menezes Pimentel contra uma manifestação integralista ocorrida no interior do Estado, Camara pede exoneração do seu cargo no dia 21 de novembro de 1935, cinco meses e meio depois de sua posse. Motivado também pela falta de apoio de seu superior hierárquico, o arcebispo Dom Manoel da Silva Gomes, ao seu rompimento com o governo, e ainda por vários outros problemas de ordem pessoal, a alternativa vislumbrada por Camara foi mudar-se para o Rio de Janeiro. Para concretizar esse projeto, em um telegrama datado de 23 de novembro de 1935, portanto dois dias depois de seu pedido de demissão, solicitou que o amigo Lourenço Filho lhe arranjasse um novo emprego na capital federal:

LOURENÇO FILHO RUA MARIS BARROS 227 RIO =
IMPERATIVO CONCIENCIA ABANDONEI
DIRETORIA INSTRUÇÃO FACE ARBITRARIEDADE
GOVERNO ANSEIO TODAVIA TRABALHAR
EDUCAÇÃO CUJA CAUSA SINTO POSSO SER
UTIL HORRIVEL PRESENCIAR MORTE MEUS
SONHOS EXULTARIA AMIGO CONSEGUISSE
CAPANEMA MARGEM COLABORAR INSTITUTO OU
MINISTERIO SOLICITARIA CONVITE SEU FIM
POSSA MOSTRAR MOVER ARCEBISPO
RESPONDA GUILHERME ROCHA 808 =
HELDER
A resposta enviada por Lourenço Filho foi totalmente animadora para Câmara:
Padre Helder Camara
Rua Guilherme Rocha 808
Fortaleza (Ceará)
Estou trabalhando maximo empenho sua vinda ponto
Ministro Educação tem pronta reforma Ministerio
a ser enviada Camara ponto prometeu considerar
caso maior interesse questão poucos dias Abraços
Lourenço Filho (21)

O emprego foi de fato conseguido, mas não no ministério: Lourenço Filho contrata-o como seu assessor no Instituto de Educação do Distrito Federal e o padre Helder muda-se de Fortaleza para o Rio de Janeiro em janeiro de 1936. Como estamos analisando e tentando contextualizar a colaboração entre um reconhecido educador escolanovista com um sacerdote e educador católico e integralista, devemos discutir, a seguir, as circunstâncias políticas pelas quais passava o país, e, particularmente, sua capital federal, no segundo semestre de 1935 e primeiro de 1936, período em que ocorre a chamada Intentona Comunista, seguida pela ação repressiva do Governo Vargas, com repercussões consideráveis sobre o setor educacional do país.

Nessa época, no Rio de Janeiro, as hostilidades dos católicos a alguns educadores escolanovistas chegavam ao extremo. Uma observadora privilegiada como a Irmã Laurita Pessoa Raja Gabaglia, filha do presidente Epitácio Pessoa, assessora e depois biógrafa do Cardeal Sebastião Leme, a partir do ângulo de visão dos católicos, avaliou que os educadores escolanovistas “não digeriam” as vitórias católicas na constituição de 1934 e, por isso, no “Distrito Federal, […] o Secretário da Educação Anísio Teixeira, mostrava-se radicalmente contrário ao ensino confessional e disposto a torná-lo por todos os meios inaplicável”. (22)

Precavendo-se contra a gestão de Pedro Ernesto e de Anísio Teixeira, ainda segundo Raja Gabaglia, Dom Leme, “… logo que vira a capital da República constituída em distrito autônomo e entregue a uma administração esquerdista, aconselhara o cônego Olimpio de Melo, ex-vigário de Bangu e membro do conselho executivo do Partido Autonomista, a candidatar-se a vereador”. (23)

Eleito vereador e conduzido à presidência da Assembleia Municipal, Olímpio de Melo passou a trabalhar pela aprovação de um projeto de regulamentação do ensino de religião nas escolas municipais, o que foi conseguido no de 5 de junho de 1935. Porém o prefeito Pedro Ernesto decidiu não sancionar o projeto aprovado, segundo Raja Gabaglia, “menos talvez por lhe ser pessoalmente hostil do que por acatamento à oposição intransigente do seu Secretário da Educação” (24). Pressionado por Antonio Carlos de Andrada, Presidente da Câmara Federal e interinamente na Presidência da República em virtude de uma viagem de Vargas à Argentina, Pedro Ernesto desistiu de seu veto e deixou que a regulamentação do ensino religioso no Distrito Federal fosse aprovada por decurso de prazo.

Concomitantemente a estes acontecimentos, em outra frente Dom Leme contava com a atuação do líder leigo Alceu Amoroso Lima. Ainda em junho de 1935, época em que tramitava o projeto de regulamentação do ensino religioso no Distrito Federal, por carta, Alceu pressionava ao Ministro da Educação por uma atuação mais decidida do governo contra principais inimigos da Igreja Católica: os comunistas ou aqueles que assim fossem designados pelos católicos. Além de apoiar Eurico Gaspar Dutra e Filinto Muller, respectivamente como Ministro da Guerra e Chefe de Polícia do Distrito Federal, Alceu defende um amplo expurgo no Estado:
“… Expurgar pois o Exército e a Marinha de elementos políticos revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindicatos e dos quadros do Ministério do Trabalho elementos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade nesse setor importantíssimo a homens de toda confiança moral e capacidade técnica (e não a socialistas como o Diretor do Departamento Municipal de Educação), tudo são tarefas que o governo deve levar adiante e infatigavelmente, pois delas dependem a estabilidade das instituições e a paz social. (25)

Após a eclosão da revolta comunista de novembro de 1935, essa recomendação inquisitorial do dirigente católico será plenamente atendida. No dia 25 de novembro o país entra em Estado de Sítio. “A repressão e as prisões podem ser feitas agora, de maneira contínua e segundo os interesses os mais escusos das oligarquias, o que a leva a prender indiscriminadamente comunistas, socialistas, liberais e outros. Os sindicatos são varejados, os operários são presos e somem, o número de mortos aumentam, tudo é feito brutalmente, sob orientação de Filinto Muller, chefe da polícia, e com o consentimento de Getúlio Vargas, do Exército, das bancadas de São Paulo etc.”, escreve Edgar Carone. (26)

No trabalho de Carone são citados os nomes das pessoas que sofrem com a sanha repressiva do governo, entre os quais os dos professores Hermes Lima e Edgard Castro Rebelo, do escritor Graciliano Ramos e dos parlamentares Abel Chermont e Abguar Bastos. Quando trata dos métodos utilizados pela polícia de Filinto Muller o relato do historiador torna-se dramático: “… são marinheiros e operários cujos tornozelos, cujas carnes foram arrancadas, queimadas a maçarico; ou é Luís Carlos Prestes, que é posto em solitária, durante meses; ou Carlos Marighela, simples estudante, que é espancado nos pés e rins e depois queimado por todo o corpo com pontas de cigarros, ou Hary Berger, que apanha até ficar louco. Os exemplos se repetem em centenas de casos, no Rio, em São Paulo, no Nordeste, tornando-se tônica comum, mas sendo sempre desmentidos pelas autoridades”. (27)

Para satisfação das lideranças católicas, esse clima persecutório chega à Secretaria de Educação do Distrito Federal, da qual Anísio Teixeira é exonerado em dezembro de 1935, sendo substituído por Francisco Campos. Para não ser preso, Anísio parte para o exílio e depois se esconde na fazenda de seu cunhado, em Caetité, Bahia. Já o Prefeito Pedro Ernesto além de ser substituído pelo Cônego Olímpio de Melo acaba sendo detido em abril de 1936.

Embora formalmente ocupasse um cargo de confiança de Anísio Teixeira, Lourenço Filho não só não seria prejudicado pela queda do Secretário de Educação – provavelmente porque mantivesse uma boa relação com o novo secretário, Francisco Campos, de quem já fora chefe de gabinete, quando da passagem deste pelo Ministério da Educação -, como mesmo nos tumultuados meses de novembro de 1935 a janeiro de 1936 conseguiu articular a contratação de Helder Camara para assessorá-lo no Instituto de Educação do Distrito Federal.

Convidado por Everardo Backheuser para trabalhar na chefia da sessão de medidas e programas do Instituto de Pesquisas Educacionais, também do Distrito Federal, e para ocupar o posto de redator-chefe da Revista Brasileira de Pedagogia, da Confederação Católica Brasileira de Educação, Camara permanece apenas por alguns meses trabalhando com Lourenço Filho (28). Apesar disso, num depoimento publicado na revista que passou a chefiar, embora apareçam insinuadas algumas de suas divergências com as ideias de Lourenço filho, fica evidenciado o entusiasmo pelo trabalho que estava sendo realizado por este no Instituto de Educação:
“Lourenço Filho fez do seu Instituto a obra-prima de sua vida. O seu melhor trabalho não é ‘Introdução ao estudo da escola nova’, visão de conjunto da pedagogia moderna, util, interessante, mas nem sempre isenta de apaixonamento e erro; não é ‘Joazeiro de Padre Cícero’, estudo perspicaz, sutil, mas por vezes, falho e unilateral; nem mesmo o seu volume de ‘Testes ABC’ onde o mestre brasileiro deu, sobre maturidade para leitura e escrita a resposta que os mestres estrangeiros debalde procuravam. A sua obra feliz por excelência é o Instituto de Educação.

É uma escola ‘diferente’ , onde se vem processando a elaboração verdadeira de tudo o que a moderna pedagogia possue de realmente bom. Seria lastimável que o sopro da escola nova passasse violento, destruindo, sem quasi construir. No Distrito o Instituto ficará como uma nota de equilíbrio, um dado positivo em meio á confusão geral.” (29)

CONCLUSÃO
Ao considerarmos o conservadorismo religioso, ideológico e político do jovem padre Helder Camara e de sua instituição na época, podemos concluir que só mesmo em virtude da atitude conciliadora de Lourenço Filho com relação aos interesses católicos é que a colaboração entre ambos pôde ter ocorrido.

Como decorrência disso, em outra oportunidade, talvez seja relevante discutirmos se essa presumida flexibilidade no discurso e na prática de Lourenço Filho não contribuiu para a diminuição do preconceito de outros educadores católicos em relação ao ideário escolanovista, a exemplo do que, provavelmente, ocorreu com o padre Helder Camara, como pode ser inferido das medidas que tentou implementar durante sua curta gestão na Diretoria de Instrução Pública do Ceará.

Por sua vez, para Lourenço Filho a relação com Hélder Câmara, que, como vimos, estava intimamente vinculado à elite dirigente católica, tornava-o menos vulnerável ao clima de intolerância política e ideológica apoiado diretamente pelos católicos, e do qual foi vítima Anísio Teixeira, dentre tantos outros.

Outro fator que pode ajudar a entendermos a aproximação entre Lourenço Filho e Helder Camara, foi a estratégia comum, utilizada por ambos, de ocupar posições no Estado, como meio para a implementação de seu projeto educacional.

Para concretizar essa estratégia, Lourenço Filho e Helder Camara tiveram que pagar o tributo do apoio a um governo que se dispunha a fazer concessões aos interesses representados por ambos, tendo em vista a formação de uma ampla coalizão centro-direitista que lhe fornecesse a sustentação política necessária para a liquidação da oposição representada pela ala esquerda do movimento tenentista e por socialistas e comunistas.

NOTAS

1. Ver o prefácio escrito por Alceu Amoroso Lima ao livro de CURY, Carlos R. Jamil. Ideologia e educação brasileira. São Paulo, Cortes/Autores Associados, 1988.

2. CARONE, Edgar. A República Nova – 1930-1937. São Paulo, DIFEL, s/d, p. 342-378.

3. GRAMSCI, Antonio. Lettere dal Carcere. Turim, 1965, p. 481, citado por ANDERSON, Perry. “As antinomias de Gramsci”. In: Crítica Marxista. São Paulo, Editora Joruês, 1986, p. 13.

4. LEME, D. Sebastião. Carta pastoral à Arquidiocese de Olinda. Petrópolis, Vozes, 1916.

5. SCHWARTZMAN, Simon / BOMENY, Helena M.B. / COSTA, Vanda M.R. Tempos de Capanema. São Paulo, Edusp/Paz e Terra, 1984, p. 44.

6. MAINWARING, Scott. Igreja católica e política no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 48.

7. SCHWARTZMAN, op. cit., p. 46-47.

8. CAMARA, D. Helder. Correspondência enviada aos seus colaboradores, Recife, 25/26 de janeiro de 1972.

9. CAMARA, Pe. Helder. “Educação Progressiva”. In: Revista A Ordem, Ano XII – n. 41-42. Rio de Janeiro, Centro Dom Vital, julho/agosto de 1933, p. 544.

10. CAMARA, Pe. Helder. “Resenha de Livros”. In: Revista Brasileira de Pedagogia, Confederação Católica Brasileira de Educação, ano 1 – n. 7, agosto de 1934, p. 141.

11. CAMARA, D. Helder. “Minha passagem pela Ação Integralista Brasileira. Recife, setembro de 1973, texto mimeografado, p. 10.

12. PILETTI, Nelson & PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara – Entre o poder e a profecia. São Paulo, Ática, 1997, p. 92-93.

13. Jornal O Nordeste, Fortaleza, 29 de junho de 1934.

14. CAMARA, Pe. Helder. “Discurso aos congressistas”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, Confederação Católica Brasileira de Educação, ano 1, n. 9-10, outubro/novembro de 1934, p. 334-335.

15. LOURENÇO FILHO, M.B. Introdução ao estudo da escola nova, p. 220, citado por CURY, op. cit., p. 90.

16. A citação de Jonathas Serrano aparece no livro de LIMA, Danilo. Educação, Igreja e ideologia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p. 78.

17. Conforme informações fornecidas por Ruy Lourenço Filho.

18. Jornal O Nordeste, Fortaleza, 25 de outubro de 1934.

19. CAMARA, Pe. Helder. “Resenha de Livros”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, C.C.B.E., ano 1, n. 4, maio de 1934, p.237.

20. CASTRO, Marcos de. Dom Hélder: o bispo da esperança. Rio de Janeiro, Graal, 1978, p. 33.

21. Conforme as fotocópias dos telegramas fornecidas por Ruy Lourenço Filho.

22. RAJA GABAGLIA, Laurita Pessôa. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1962, p. 350.

23. Íd., ibid., p. 350-351.

24. Íd., ibid., p. 352.

25. Carta de Alceu Amoroso Lima a Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1935, publicada em SCHWARTZMAN, Simon. Op. cit., p. 176.

26. CARONE, op. cit., p. 342-378.

27. Id., ibid., p. 342-378.

28. Em 1939, aprovado em concurso público, Camara trabalharia por quase um ano no INEP, sob a direção de Lourenço Filho, e depois pediria transferência para outro órgão do M.E.S. De 1949 a 1961 ambos atuariam como conselheiros no Conselho Nacional de Educação.

29. CAMARA, Pe. Hélder. “A Escrita na escola primária”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, C.C.B.E., ano 3, n. 28-29, setembro/outubro de 1936, p. 210.

(Artigo publicado originalmente como: PRAXEDES, W. L. A. . A relação entre Lourenço Filho e Hélder Câmara nos anos trinta: uma interpretação política. Educação Brasileira a Atualidade de Lourenço Filho. Cadernos Estudos e Documentos – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 41, p. 153-167, 1999.)

A teoria das representações sociais de Pierre Bourdieu

Walter Praxedes

Bourdieu e Louis Lassabatère

Pierre Bourdieu (à esquerda) e seu amigo Louis Lassabatère. (1)

Pesquisar a respeito das representações sociais é outra forma de buscar entender como cada agente desenvolve as suas formas de “percepção, pensamento e ação” através das quais se realiza a apreensão do mundo e a orientação das condutas práticas no dia-a-dia e também nas suas relações com os outros agentes.

Pierre Bourdieu defende a concepção de que as representações sociais são influenciadas pelas ideias, valores, crenças e ideologias existentes anteriormente em uma sociedade, e que se fazem presentes na linguagem que utilizamos para nos comunicar, nas religiões e no chamado senso comum que compõem o habitus de cada agente, e também as concepções que circulam entre os participantes dos campos sociais, grupos profissionais e classes sociais.

É importante ressaltar que tais representações possuem uma origem histórica e coletiva. Muito embora as nossas representações sociais estejam alojadas no inconsciente e sejam influenciadas por representações existentes desde tempos passados, quando agimos e interagirmos com outros indivíduos possuímos a capacidade de formular e reformular nossas próprias representações e assim orientar os pontos de vista particulares que elaboramos sobre a realidade e as decisões práticas que adotamos.

Essas representações sociais são também fortemente influenciadas pelas posições sociais que ocupamos nas hierarquias existentes nos campos e entre as classes sociais. Assim, elaboramos as nossas representações para que estejam de acordo com os interesses consciente ou inconscientemente vinculados à posição que ocupamos nos campos e na sociedade.

Os indivíduos e grupos sociais de todos os tipos, de amigos, associações profissionais, classes sociais, “raças”, “etnias”, gêneros etc., desenvolvem representações específicas que dão sentido e explicam a sua posição e dos demais na sociedade. Como nos ensina Pierre Bourdieu (2004: p. 158), “as representações dos agentes variam segundo sua posição (e os interesses associados a ela) e segundo o seu habitus como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de uma posição no mundo social”.

As representações sociais podem ser consideradas como a matéria prima dos preconceitos construídos no pensamento humano a partir de esquemas inconscientes de percepção, avaliação e apreciação. Incorporamos e construímos esses esquemas inconscientes de entendimento através do aprendizado da língua e dos valores e ideias expressas pelas culturas nas quais convivemos desde o nascimento, ou seja, nas manifestações culturais populares, nas religiões etc.

Os preconceitos de gênero, étnicos e raciais contra um indivíduo ou coletividade ou sobre a condição social de alguém podem provocar como efeito a sua confirmação efetiva, pois os seres humanos são suscetíveis de serem influenciados pelos julgamentos que os outros realizam sobre eles. As pesquisas realizadas por Pierre Bourdieu indicam que na educação familiar e escolar, as expectativas que temos sobre o comportamento e o desempenho dos estudantes influenciam de fato nas suas condutas e resultados futuros.

Apontamentos

1- As representações incidem diretamente sobre aquilo que Pierre Bourdieu classifica como habitus do agente, definido como um “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações…”, ou seja, na terminologia empregada pelo sociólogo francês, trata-se de um processo de “interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade”. (Bourdieu, 1994, p. 60-61).

2- Os estereótipos e estigmas utilizados no cotidiano como princípios de classificação e de juízo empregados na prática possuem como conteúdo um conjunto de representações sociais já aceitas como verdadeiras ou válidas, sem questionamento. São formas de classificação simbólica do outro.

3- Essas formas de classificação práticas produzem efeitos sociais, revelando a conexão entre representações e realidade, podendo “contribuir para produzir o que aparentemente elas descrevem ou designam” (Bourdieu, 1996, p. 107). As representações produzem mudanças na realidade objetiva, que, por sua vez incide sobre as representações, o que torna necessário “incluir no real a representação do real” (Idem, p. 108).

4- Quando elaboramos nossas representações realizamos a percepção e a avaliação do existente, mas essa elaboração já é filtrada (ou condicionada) pelos pressupostos cognitivos, valores e interesses que possuímos. Simultaneamente a esta percepção da realidade para conhece-la, a representação elaborada tem também como conteúdo o interesse em influenciar as representações dos outros agentes, modificando-as segundo o ponto de vista que atende as necessidades de quem formula tais representações. Em uma simples conversa pode estar em jogo uma disputa em torno das representações que serão reconhecidas como mais ou menos adequadas à realidade.

5- A representação da realidade se transforma em realidade da representação ao produzir efeitos sobre os pensamentos e as práticas dos agentes. “As classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais” (Idem, p. 107).

6- No mundo social, “os agentes classificam os demais agentes” (Idem, p. 115) e classificam a si mesmos através de “estratégias simbólicas de apresentação e representação de si” que se “opõem às classificações e às representações (deles mesmos) que os outros lhes impõem” (Idem, p. 115).

7- “As representações que os agentes sociais possuem das divisões da realidade… contribuem para a realidade das divisões” (Idem, p. 114). O poder de classificar um indivíduo ou grupo social através de um conceito científico ou estereótipo consagrado pela cultura popular como raça, etnia, nacionalidade, “família” ou “sexo”, “negro”, “pobre”, “índio” revela a capacidade de impor significações.

8- As representações “podem contribuir para produzir o que aparentemente elas descrevem ou designam, ou seja, a realidade objetiva” (p. 107).

9- As representações mentais são “atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que os agentes investem seus interesses e pressupostos” (Idem, p. 108).

10- As representações objetivas (materiais como bandeiras, insígnias, símbolos, emblemas, cartazes etc.) são “estratégias interessadas de manipulação simbólica tendentes a determinar a representação (mental) que os outros podem construir a respeito tanto dessas propriedades como de seus portadores” (Idem, p. 108).

11- No mundo social ocorre “uma luta permanente para definir a “realidade”” (Idem, p. 112). Um debate político ou acadêmico é uma luta entre diferentes formas de classificação e definição da realidade e que pode fazer ou desfazer regiões, identidades, grupos, classes etc., em que os agentes estão buscando “modificar a realidade social ao modificar a representação dos agentes a esse respeito” (Idem, p. 118)

12. A ação política depende da capacidade de cada agente “produzir e impor representações (mentais, verbais, gráficas ou teatrais) do mundo social capazes de agir sobre esse mundo, agindo sobre as representações dos agentes a seu respeito” (idem, p. 117).

13- “As categorias segundo as quais um grupo se pensa, e segundo as quais ele representa sua própria realidade, contribuem para a realidade desse mesmo grupo” (Idem, p.123).

14- “Mesmo quando se limita a dizer com autoridade aquilo que é, ou então, quando apenas se contenta em enunciar o ser, ou autor produz uma mudança no ser” (Idem, p. 109).

15- “Pelo fato de dizer as coisas com autoridade, ou seja, diante de todos e em nome de todos, pública e oficialmente, ele [o autor] as destaca do arbitrário, sancionando-as, santificando-as e consagrando-as, fazendo-as existir como sendo dignas de existir, ajustadas à natureza das coisas, “naturais”” (Idem, p. 109); evidenciando assim “o poder quase mágico das palavras” (Idem, p.111) de influir sobre as percepções da realidade.

16- “A força social das representações não é necessariamente proporcional ao seu valor de verdade”, mas o resultado da correlação de “forças materiais num determinado momento” (Idem, p. 114).

17- Os sistemas escolares através dos currículos impõem significados sobre como devem se dar as relações no espaço escolar e sobre os conteúdos que deverão ser trabalhados como relevantes e dignos, definindo assim o que pode ser considerado irrelevante ou simplesmente desnecessário de estudar. Esse aspecto das lutas entre as representações no sistema escolar se expressa na definição da língua oficial de um país, por exemplo, “através da imposição da língua “nacional”, o sistema comum de categorias de percepção e de apreciação capaz de fundar uma visão unitária do mundo social” (Idem, p. 111).

18- “O mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto” (Idem, p. 112);

19- Toda teoria é um programa de produção de representações sobre o pensamento e sobre a realidade, ou seja, sobre a produção da capacidade de percepção da realidade através de “categorias de percepção do mundo social” (Idem, p. 123) que possibilitam descrever segundo tais categorias quais são e como se relacionam os indivíduos e grupos sociais;

20- “A ciência transforma a representação do mundo social e, ao mesmo tempo, o próprio mundo social, ao viabilizar práticas ajustadas a essa representação transformada” (Idem, p. 122-123). Apresentada como neutra e meramente descritiva a ciência se transforma em prescritiva ao condicionar as percepções que os agentes passam a ter sobre as possibilidades de intervir na realidade.

Enfim, as representações são ideias, conceitos, concepções, valores, princípios e imagens com os quais pensamos e atribuímos significado à realidade, às circunstâncias que geram as condições de existência de cada indivíduo ou grupo humano. As nossas práticas, as nossas atitudes cotidianas são orientadas pelas representações que formamos em nossas mentes sobre quem somos, o que devemos fazer e como devemos interagir com as outras pessoas.

Nota:

  1. Pierre Bourdieu, dix ans déjà. http://www.larepubliquedespyrenees.fr/2012/01/23/pierre-bourdieu-dix-ans-deja,224322.php

Referências

BOURDIEU, Pierre. “Esboço de uma teoria da prática”. In: ORTIZ, Renato (org.) Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, 1994.

______. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

______. A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1996).