A pedagogia proposta por Pierre Bourdieu

Walter Praxedes

Desde a publicação do livro Os herdeiros…, em 1964, Bourdieu propõe que a prática de uma “pedagogia racional” deve adotar como ponto de partida a consideração dos fatores reais que condicionam as desigualdades de desempenho na educação escolar. O planejamento e a implementação das atividades educativas devem possibilitar que o maior número possível de estudantes tenha acesso a todas as formas de cultura “[…] desde a frequência aos museus até o manejo de noções e técnicas econômicas e a consciência política” (Bourdieu, Passeron, 2006, p. 87), passando pelas artes e literatura.

As aulas magistrais que poucos estudantes conseguem assimilar, por exemplo, podem ser substituídas por um trabalho pedagógico que ensine as técnicas de estudo sistemático, como a elaboração de notas e fichas de leitura, lista de exercícios e as técnicas de redação, até mesmo valorizando e ensinando a importância da disciplina e da concentração no trabalho intelectual, sem supor que os estudantes já deveriam contar com uma formação adquirida na educação básica ou no meio familiar, que de fato, a maioria não conta quando chega ao ensino superior. A ação pedagógica pode fornecer uma grande contribuição para a igualdade social, ao possibilitar “[…] aos estudantes das classes desfavorecidas superar suas desvantagens” (Bourdieu, Passeron 2006, p. 113).

As desigualdades culturais que se expressam nas diferenças de desempenho e sucesso escolar dos estudantes nas atividades pedagógicas são condicionadas socialmente, como resultado do acesso diferenciado das famílias e classes sociais aos bens culturais e saberes valorizados pela escola. Sendo assim, uma pedagogia que vise a aprimorar os processos de ensino e aprendizagem deve fornecer aos estudantes as condições que estes não dispõem em seus meios sociais e culturais de origem. Como afirmam Bourdieu e Passeron (2006, p. 113), uma educação verdadeiramente democrática deve ter como finalidade incondicional “permitir ao maior número possível de indivíduos a aquisição no menor tempo possível, da forma mais completa e perfeitamente possível, o maior número possível das competências que conformam a cultura educacional em um momento dado”, para que se possam neutralizar os fatores sociais que geram as desigualdades culturais e de desempenho na educação escolar.

Desta forma, a ação pedagógica poderia romper com a lógica que transforma os privilégios econômico e cultural herdados de suas famílias pelos estudantes em mérito individual. Esta lógica excludente leva à seleção e à hierarquização dos estudantes de acordo com o desempenho nos exames e provas, que são avaliadas como se fossem apenas o resultado do empenho e da competência individual, e não do acesso privilegiado aos bens culturais, valores e modos de comportamentos que são esperados pelos professores.

 
“No estado atual da sociedade e das tradições pedagógicas, a transmissão das técnicas e dos hábitos de pensamento exigidos pela educação nos remete primordialmente ao meio familiar. Portanto, toda democratização real supõe que os ensine ali onde os mais desfavorecidos podem adquiri-los, quer dizer, na escola; que se amplie o domínio do que pode ser racional e tecnicamente adquirido através de uma aprendizagem metódica em prejuízo do que é abandonado geralmente à sorte dos talentos individuais, ou seja, de fato, à lógica dos privilégios sociais […]” (Bourdieu, Passeron 2006, p. 110).

 

A escola pode contribuir para que todos os estudantes tenham acesso às obras culturais que as classes dirigentes querem manter como privilégio sob seu monopólio, a exemplo da frequência a museus, ao teatro, o aprendizado da dança, da música e de outras artes. Defendendo um ponto de vista que é facilmente compreensível, embora apresente uma aparência de uma concepção elitista e até conservadora, Pierre Bourdieu critica duramente o que ele denomina o “culto da cultura popular”, pois essa valorização das manifestações culturais populares mantém os mais pobres excluídos do acesso aos saberes dominantes e chega a ser inconsequente e falsamente revolucionário, em seu entendimento, pois termina por restringir o “povo” ou “enfurná-lo” em uma cultura que é desvalorizada socialmente.

Essa é uma consequência que ocorre quando a linguagem dos jovens negros norte-americanos é considerada “inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas”, ao mesmo tempo em que essa mesma linguagem “permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas para obtenção de empregos” (Bourdieu 2007, p. 93).

É o mesmo fenômeno que acontece nos exames vestibulares no Brasil, que não reconhecem a cultura e a linguagem populares que não tenham como origem a própria escola, possibilitando que sejam aprovados e conquistem as vagas mais concorridas aqueles detentores do capital cultural acumulado lentamente na escola e na convivência em famílias mais escolarizadas.

No entendimento de Pierre Bourdieu, quando os dominados entram em contato com as culturas dominantes, por mais contraditório que isso possa parecer, “a resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora” (Bourdieu 2004, p. 187), pois a estratégia de acumulação do capital cultural mais valorizado na hierarquia social pode aparecer inicialmente como uma submissão dos dominados diante das culturas dominantes, mas depois se transforma em uma estratégia de capacitação para a aquisição dos instrumentos intelectuais necessários para a subversão da ordem social.

Considerando-se que as desigualdades de acesso à cultura considerada legítima persistirão por um longo período, a única instituição que pode diminuir estas desigualdades é a escola. Para Bourdieu (1998, p. 62), “[…] a instituição escolar deve desenvolver em todos os membros da sociedade, sem distinção, a aptidão para as práticas culturais que a sociedade considera como as mais nobres”. Pois “[…] o domínio do código de decifração das obras culturais só pode ser adquirido mediante o preço de uma aprendizagem metódica e organizada por uma instituição expressamente ordenada para este fim” (iBidem, p. 63). Para se tornar verdadeiramente democrática, a escola deveria dar a mesma formação escolar e acesso aos bens culturais a todos os estudantes, independentemente de sua origem familiar.

As atividades pedagógicas desenvolvidas no cotidiano escolar deveriam ser orientadas pela pesquisa dos meios e estratégias mais eficientes para reduzir paulatinamente a distância entre a mensagem pedagógica emitida pelos professores e a mensagem pedagógica entendida pelos estudantes nos processos de recepção. Como o discurso dos professores muitas vezes aparece como incompreensível, o aprimoramento na capacidade real de decodificação dos conteúdos ministrados pelos professores por parte dos estudantes deveria ser a meta mais urgente a ser alcançada em toda atividade educativa.

Enquanto esse processo pedagógico de democratização da educação não ocorrer na prática, as classes sociais mais favorecidas continuarão a monopolizar a utilização da instituição escolar e a manipular os bens culturais para manter sua posição dominante na hierarquia social.

Os “Princípios para uma reflexão sobre os conteúdos de ensino”

As concepções pedagógicas que Pierre Bourdieu defendia desde a publicação do livro Os herdeiros…, de 1964, vão receber uma sistematização no trabalho que realizou como dirigente de uma comissão nomeada pelo Ministério da Educação Nacional, da Juventude e dos Esportes da França, no final de 1988. A comissão dirigida por Pierre Bourdieu e François Gros e da qual participavam vários intelectuais franceses foi encarregada de elaborar uma proposta de revisão dos conteúdos ensinados nas escolas francesas.

Em março de 1989 a comissão publicou o documento “Princípios para uma reflexão sobre os conteúdos de ensino”, que ficou conhecido como Informe do Collège de France. Embora tenha recebido a redação final de Bourdieu, o documento foi aprovado por unanimidade pelos membros da comissão encarregada de sua elaboração. O documento elaborado e publicado sob a direção de Bourdieu propõe sete princípios teóricos que deveriam orientar uma ampla reforma curricular na França. As concepções defendidas nesse documento nos interessam, particularmente, porque os princípios apresentados revelam uma grande coerência com o diagnóstico realizado por Bourdieu sobre o sistema de ensino francês em suas pesquisas de sociologia da educação. Também revelam sua preocupação política de intervir na sociedade francesa não apenas como pesquisador, mas também como um educador que propõe algumas diretrizes teóricas e práticas para uma reorganização da educação em seu país.

O Informe do Collège de France parte da necessidade de que os currículos sejam permanentemente rediscutidos para que incorporem tanto as inovações científicas como as demandas geradas pelas mudanças constantes que ocorrem na sociedade. Em vez de serem considerados definitivos, os programas devem sempre ser abertos, flexíveis para que constantemente possam ser revisados, funcionando mais como um parâmetro para a atuação de professores e estudantes do que como um código imperativo (iBidem, p. 117).

Para a rediscussão permanente dos conteúdos de ensino, os professores e alunos deveriam levar em consideração a necessidade de que fosse sempre objetivada uma aprendizagem ativa baseada na promoção da reflexão crítica, da criatividade e do espírito de invenção (Bourdieu 2010, p. 115), aliada às formas de raciocínio histórico e dedutivo, com a valorização da experimentação e da pesquisa tendo em vista a construção de novos conhecimentos (iBidem, p. 116). Seria, portanto, necessário mudar as formas de controle da aprendizagem e de avaliação dos resultados dos processos pedagógicos, substituindo os exames por uma avaliação contínua da capacidade de os estudantes aplicarem os conhecimentos obtidos na escola em situações práticas da vida.

Capacitar os estudantes no domínio metódico de técnicas de estudo e trabalho intelectual depende de que as atividades pedagógicas forneçam-lhes ferramentas intelectuais práticas, como a utilização de dicionário, uso de abreviaturas, exercícios sobre estilos de linguagem e comunicação, aprendizagem de diferentes técnicas de redação, elaboração de fichários, construção de banco de dados e pesquisa documental com o uso de equipamentos de informática, combinadas com os exercícios para o aprimoramento do raciocínio lógico-matemático, visando à leitura e à elaboração de tabelas, gráficos e indicadores estatísticos, além da orientação sobre como organizar as atividades de estudo de acordo com o tempo disponível, sabendo priorizar as atividades mais importantes com paciência e concentração. O ensino das línguas também deveria contribuir para que as pessoas fossem formadas em suas próprias línguas de origem, “ao mesmo tempo em que aprendem as línguas oficiais” (Bourdieu 2010, p. 149).

A intenção de apresentar estas diretrizes práticas para a realização de atividades pedagógicas no cotidiano escolar era intencionalmente, segundo Bourdieu (2010, p. 117), “uma maneira de contribuir para reduzir as desigualdades ligadas à herança cultural”. O alcance desse objetivo dependeria de uma melhora na capacidade de transmissão do saber, por parte dos educadores, de modo que sejam mais valorizados os conteúdos educativos realmente aprendidos pelos estudantes, e não aqueles programas enciclopédicos que na prática são irrealizáveis em virtude do tempo e das condições disponíveis.

A proposta sugere que uma quantidade infinita de saberes enciclopédicos que não serão realmente estudados, seja substituída por meio de uma melhor articulação dos conteúdos que possam realmente ser assimilados de forma crítica e reflexiva pelos estudantes, priorizando-se aqueles conteúdos interdisciplinares selecionados pelos professores. As atividades pedagógicas também deveriam combinar os estudos teóricos com os trabalhos práticos, as atividades de estudo individuais devendo ser complementadas pelos trabalhos coletivos realizados em grupos. Os professores teriam de combinar a autonomia para definir os conteúdos e métodos de ensino sob sua atribuição com a necessidade de planejamento coletivo das atividades pedagógicas.

Mas, para que formem a capacidade educativa necessária ao atendimento dessas demandas enormes, deveriam contar com a oportunidade de realizar uma formação continuada com licenças semestrais e anuais sabáticas, para que realizem novos cursos, pesquisas e adquiram novas qualificações, participando também de coletivos de reflexão e implementação de “um esforço permanente de busca pedagógica, ao mesmo tempo metódica e prática, que associe os professores diretamente comprometidos com o trabalho de formação” (iBidem, p. 120). No sétimo e último princípio apresentado no documento Informe do Collège de France é proposto que o ensino das conquistas universais do conhecimento científico seja combinado com as contribuições “próprias das ciências da natureza e das ciências do homem” (iBidem, p. 125) consideradas complementares entre si e não opostas. Por fim, o documento declara como fundamental o respeito à “pluralidade dos modos de vida” e das diferentes civilizações e “tradições culturais” (iBidem, p. 123), para que o ensino promova um acesso amplo à “história das línguas e das literaturas, das culturas e das religiões, das filosofias e das ciências” (iBidem, p. 124).

Muitos estudiosos da educação reconhecem a importância da crítica sociológica elaborada por Bourdieu para evidenciar as conexões entre as desigualdades de desempenho escolar e a reprodução das desigualdades sociais. Pode ser muito benéfico para a ação pedagógica que esses estudiosos e os educadores também dirijam sua atenção para as propostas pedagógicas que o próprio Bourdieu elabora visando à transformação das relações pedagógicas, de modo que possibilitem melhores e igualitárias condições de aprendizagem para os estudantes.
“Um trabalho pedagógico expressamente orientado pela pesquisa metódica de sua maior produtividade tenderia, pois, a reduzir conscientemente a distância entre o nível de emissão e o nível de recepção, seja elevando-se o nível de recepção ao comunicar ao mesmo tempo a mensagem e o código de sua decifração numa expressão (verbal, gráfica ou gestual) cujo código já é dominado pelo receptor, seja reduzindo-se provisoriamente o nível de emissão de acordo com um programa de progressão controlada em que cada mensagem tenha por função preparar a recepção da mensagem do nível de emissão superior, conseguindo assim produzir uma elevação contínua do nível de recepção, ao dar aos receptores os meios de adquirir, pela repetição da emissão e pelo exercício, a posse completa do código” (Bourdieu, Passeron 1992, p. 138).

 

Referências

Bourdieu, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.

_____. La noblesse d´État. Paris, Minuit, 1989. _____. Homo academicus. Paris, Minuit, 1984.

_____. Homo academicus. Florianópolis, Ed. UFSC, 2011.

_____. O campo científico. In: Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática, 1994.

_____. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática, 1994.

_____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1992a. _____. Razões práticas. Campinas, Papirus, 1996.

_____. A economia das trocas linguísticas — O que falar quer dizer. São Paulo, Edusp, 1996.

_____. Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998.

_____. Contrafogos — Táticas para enfrentar a invasão liberal. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

_____. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

_____. (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 1997.

Bourdieu, P. et al. O amor pela arte — Os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk, 2003.

_____. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003a.

_____. Os usos sociais da ciência — Por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo, Editora Unesp, 2004.

_____. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 2004.

_____. Para uma sociologia da ciência. Lisboa, Edições 70, 2004a.

_____. Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

_____. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007.

_____. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk, 2007b. _____.

_____. O senso prático. Petrópolis, Vozes, 2009.

_____. La eficácia simbólica — Religión y política. Buenos Aires, Biblos, 2009a.

_____. Capital cultural, escuela y espacio social. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2010.

Bourdieu, Pierre, ChamBoredon, Jean-Claude, Passeron, Jean-Claude. A profissão de sociólogo — preliminares epistemológicas. Petrópolis, Vozes, 1999.

Bourdieu, Pierre, Passeron, Jean-Claude. A reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992.

_____. Los herederos: los estudiantes y la cultura. Buenos Aires, Siglo XXI Editores Argentina, 2006.

Bourdieu, P., Saint-martin, M. As categorias do juízo professoral. In: Bourdieu, P. Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998.

 

 

A educação reflexiva na teoria social de Pierre Bourdieu

 

 

A educação, os sistemas de ensino e as ações pedagógicas que ocorrem no interior das famílias e no cotidiano escolar ocupam um lugar central na teoria social e nas pesquisas do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). A abrangente teoria sociológica de Bourdieu trata a educação como um componente fundamental dos processos de constituição do mundo social, como podemos facilmente perceber ao estudarmos alguns dos conceitos que elaborou como habitus, prática, estratégia, campo, capital cultural, violência simbólica e reprodução social.

 

Pierre Bourdieu (assis au centre) entouré de ses élèves. Jacques Lefevre se tient debout, à droite (avec l'écharpe).

Pierre Bourdieu,  sentado ao centro, professor de filosofia no Liceu provincial Théodore-de Banville, Moulins, Auvergne, França, 1954.

Formado em Filosofia pela Escola Normal Superior, em 1954, com vinte e quatro anos, Pierre Bourdieu passa a lecionar a disciplina de filosofia no Liceu Provincial. Um dos seus primeiros alunos, Jacques Lefevre estudou com ele no segundo ano do Liceu e se recorda que aquele foi um dos seus  melhores anos  na escola. As aulas de filosofia de Bourdieu o influenciaram para que estudasse Ciência Política em Paris. Mas além de bom professor, Lefevre guarda na lembrança a disponibilidade e gentileza de Bourdieu, que jogava futebol com seus alunos, e nas aulas lia e comentava o Jornal Le Monde  para a turma.  O ex-aluno de Bourdieu o reencontrou em Paris, em 1989,  recebendo de presente um exemplar autografado do livro “A nobreza de Estado” ( La Noblesse de l’État, ainda inédito no Brasil). (1)

 

Pierre Bourdieu dans sa

Construídos gradativamente a partir do final da década de 1950 até a morte de Bourdieu em 2002, esses conceitos resultaram de uma original combinação entre uma teoria social geral e o desenvolvimento de pesquisas empíricas metodologicamente bem controladas sobre as sociedades argelina e francesa, abordando inúmeros problemas de pesquisa que colocaram em foco as comunidades camponesas cabilas do norte da África, as elites dirigentes francesas, as mulheres como vítimas da dominação masculina. Ao mesmo tempo em que estudava os sistemas de ensino e os estudantes franceses, Bourdieu investigava também por que os jovens camponeses tinham dificuldades para conseguir uma noiva na região rural do interior da França em que ele próprio havia nascido e que aceleradamente se modernizava na década de 1960. E, como o próprio autor reconhece em uma entrevista à professora Maria Andréa Loyola, “o fato de ser provinciano, de ter vindo de uma pequena cidade do interior, de ser mal integrado ao mundo parisiense, ao mesmo tempo por escolha e por destino, tem muita importância” (Bourdieu 2002, p. 17).

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Para Bourdieu o sistema escolar confirma e reproduz as desigualdades “de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais”.

A concepção de pesquisa educacional Resultado de imagem para pierre bourdieuproposta por Bourdieu resulta de um conjunto de pressupostos científicos que o autor colocava em prática em suas investigações, ressaltando a importância da construção controlada e gradual do objeto de investigação e a importância da reflexividade para que tanto os pesquisadores como os educadores tenham sempre presente para si as influências sofridas no trabalho de busca do conhecimento sobre o mundo social e a educação.

Resultado de imagem para pierre bourdieuA teoria sociológica de Bourdieu pode contribuir tanto para a pesquisa como para a prática educativas, ao evidenciar aqueles mecanismos muitas vezes ocultos — ou que insistimos em não enxergar — presentes no cotidiano escolar, que fazem com que os sistemas de ensino contribuam para a reprodução das desigualdades sociais e formas de dominação política que hierarquizam as sociedades contemporâneas.

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Como ensinou Pierre Bourdieu, apenas ao conhecermos os mecanismos que fazem com que a educação escolar contribua para a reprodução das desigualdades e privilégios é que poderemos trabalhar para construir alternativas pedagógicas críticas e reflexivas que os minimizem ou até mesmo os neutralizem, como nos sugerem alguns princípios pedagógicos propostos ao longo de sua obra.
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O sociólogo Pierre Bourdieu nasceu em 1º de agosto de 1930, em Denguin, no interior da França. Seu pai foi funcionário dos correios, e sua mãe era proveniente de uma família de médios proprietários de terra. Como aluno empenhado, mesmo sem condições econômicas, Bourdieu estudou no prestigioso Liceu Louis-le-Grand, em Paris, e depois na Escola Normal Superior, formando-se em filosofia em 1954. Trabalha inicialmente como professor de ensino médio, mas entre 1955 e 1958 leciona na Faculdade de Letras de Argel, capital da Argélia, na época ocupada pelo exército francês, onde presta serviço militar obrigatório, realiza suas pesquisas sobre a sociedade cabila e publica o livro Sociologie de L’Algérie. Depois de realizar várias e importantes pesquisas sociais empíricas sobre a educação e a cultura, publica em 1964 o livro Os herdeiros — os estudantes e a cultura, em parceria com Jean-Claude Passeron. Em 1970 cria o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura e publica o livro La reproduction, éléments pour une théorie du système d’enseignement, também em parceria com Passeron.
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Com sua trajetória voltada para a pesquisa científica em sociologia, Bourdieu elabora uma vasta e inovadora obra teórica e de investigação. Em 1975 funda a revista Actes de la recherche en sciences sociales e em 1980 é eleito para o Collège de France, como professor titular da cadeira de Sociologia, tornando-se um dos intelectuais mais conhecidos e respeitados no mundo, tanto por sua vasta obra científica quanto por sua ação política de apoio aos movimentos sociais contrários à globalização e ao neoliberalismo. Bourdieu foi casado com a cientista social e fotógrafa Marie-Claire Brizard e tiveram os filhos Jerome, Emmanuel e Laurent. Em 23 de janeiro de 2002 Pierre Bourdieu falece em Paris.

Referências

(2) http://www.lanouvellerepublique.fr/Indre-et-Loire/Communautes-NR/n/Contenus/Articles/2013/09/09/J-ai-ete-l-un-des-premiers-eleves-de-Pierre-Bourdieu-1604927#

Walter Praxedes é cientista social, mestre e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (PR).

Para educadores, é preciso evitar banalização de discurso racista (Entrevista ao jornalista Dojival Vieira)

11/02/2014

Dojival Vieira Afropress – Agência Afroétnica de Notícias

 Foto de Culturas Afro e Indígena nas Escolas.
Da Redação

Maringá/PR – O Brasil passa por um momento em que é preciso discutir novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo e em que os discursos de denúncia e a defesa das ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

A opinião é dos professores Rosângela Rosa e Walter Praxedes, graduados em Ciências Sociais e mestres e doutores, respectivamente, em Educação e Antropologia.

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Segundo Rosângela e Walter a consequência disso é que “as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção”.  “A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira. Temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país”, acrescentam.

Eles estão lançando o livro Educando contra o Preconceito e a Discriminação Racial, que faz parte de uma coleção das Edições Loyola, destinada à formação de educadores, coordenada pelo educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares.

O livro chama a atenção dos educadores para que prestem mais atenção nas relações entre negros e brancos  no cotidiano escolar, na perspectiva da superação dos preconceitos e da discriminação, como também fiquem alertas aos conteúdos curriculares de todas as disciplinas “que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar”.

Confira, em seguida, na íntegra, a entrevista dos professores Rosângela, que também tem Pós-Doutorado em Antropologia pela Universidade de Barcelona, na Espanha, e Walter, que é professor universitário e coautor, com Pilleti, dos livros “O Mercosul e a sociedade global; Dom Helder Câmara: o profeta da paz; e Sociologia da Educação: do positivismo aos estudos culturais”.

Afropress – Quais os aspectos mais importantes abordados na obra dentro da Série Caminhos da Formação Docente e como ela pode ser utilizada no dia a dia pelos professores?

Rosângela e Walter Praxedes – Os movimentos negros sempre alertaram para a existência do racismo na nossa sociedade. A Coleção Caminhos da Formação Docente das Edições Loyola está direcionada para a formação de professores, e como estudiosos da Educação e das Ciências Sociais o nosso trabalho visa demonstrar que o desempenho escolar dos alunos negros é prejudicado pela discriminação que ocorre diretamente na interação entre os agentes que se relacionam no cotidiano escolar, professores, alunos, funcionários, familiares.

O nosso livro contribui para o educador prestar atenção diretamente tanto nas relações entre negros e brancos no cotidiano escolar, para que os preconceitos e a discriminação sejam superados, como também nos conteúdos curriculares de todas as disciplinas escolares que já nos chegam saturados de mensagens ideológicas eurocêntricas, preconceituosos em relação às pessoas classificadas como negras, e que em formas muitas vezes implícitas e quase imperceptíveis acabam difundidos acriticamente pelos professores e pelo sistema escolar.

Afropress – Como a Escola ainda contribui para a manutenção da cultura racista e discriminatória herdada do período do escravismo?

Rosângela/Walter Praxedes – Nas atividades didáticas em sala de aula, os educadores muitas vezes relevam ou deixam em segundo plano o fato de que as desigualdades de desempenho escolar das crianças e adolescentes negros em relação aos brancos que ocorre no cotidiano escolar, têm também raízes históricas que remontam ao passado escravista do nosso país.

Remontam, portanto, às relações de opressão entre colonizadores brancos e pessoas escravizadas, à política e ideologia do branqueamento da população brasileira do início da República, à ideologia do eugenismo das nossas elites intelectuais nas primeiras décadas do século XX, e à crença sempre difundida pelas classes dominantes brasileiras e até internacionais de que o Brasil sempre foi uma democracia racial na qual as chamadas “raças” interagem de forma pacífica sem animosidade ou violência.

Afropress – Qual o impacto que essa cultura escolar racista ainda tem na formação da criança negra?

Rosângela/Walter Praxedes – Quando discutimos em sala de aula os resultados da pesquisa realizada pela UNESCO no Brasil em 2006, e várias outras pesquisas, até os educadores militantes dos movimentos negros ficam surpreendidos com as informações que indicam que em todas as regiões do país e classes econômicas, tanto nas famílias mais pobres quanto nas mais abastadas e privilegiadas economicamente, nos estabelecimentos públicos ou particulares e diferentes disciplinas “os estudantes negros estão em condição de desvantagem em relação aos estudantes brancos”. E quanto maior a diferença de renda familiar, maior a desigualdade no desempenho escolar entre os dois grupos.

Isso quer dizer que mesmo com mais recursos econômicos, os alunos negros continuam sendo prejudicados pelo processo escolar. E isso demonstra precisamente que os preconceitos étnicos e raciais contra um indivíduo ou coletividade podem ter conseqüências práticas extremamente negativas. Os seres humanos são muito suscetíveis aos julgamentos que os outros realizam sobre eles.

Não é por acaso que inúmeras pesquisas na área de sociologia da educação indicam que, tanto no trabalho quanto na educação familiar e escolar, as expectativas que se tem sobre o desempenho dos indivíduos influenciam de fato no seu desempenho futuro.

A expectativa dos professores quanto ao desempenho dos alunos condiciona (embora não determine totalmente) o desempenho dos alunos. Aquilo que pensamos sobre as perspectivas de um aluno influi no seu desempenho escolar e na construção da sua identidade.

Afropress – Como estão vendo o cenário da luta antirracista no Brasil – desafios e perspectivas?

Rosângela/Walter Praxedes – Um problema muito relevante que teremos que discutir é a necessidade de novas estratégias culturais e políticas de combate ao racismo, pois os discursos de denúncia do racismo e a defesa de ações afirmativas, embora coerentes e necessários, estão se transformando em algo banalizado, como se de tanto discutirmos estes temas eles já tivessem sido resolvidos na sociedade.

Então as pessoas começam a considerar nossos discursos e nossas propostas práticas como se fossem uma paisagem a que estamos tão acostumados que nem damos mais atenção.  A luta antirracista no Brasil não pode ser banalizada desta maneira.

Por isso temos que tentar ampliar o nosso repertório de estratégias para que as pessoas não considerem o nosso discurso sempre “mais do mesmo”. Como se nos dissessem: “de novo com esta conversa”. Este é o momento da criatividade da cultura afrobrasileira nos ensinar a superar esta banalização que começa a ocorrer com o nosso discurso, sem que tenha ocorrido a verdadeira superação do racismo no nosso país.

Afropress – Nas manifestações de junho, especialmente, em S. Paulo e Rio praticamente não se notou a presença do movimento negro organizado. A que atribuem essa desconexão da parcela organizada do movimento com a realidade? A vinculação à pauta partidária para maioria das lideranças teria alguma relação com essa ausência?

Rosângela/Walter Praxedes – Mesmo com todos os problemas que persistem na sociedade brasileira, nós estamos passando pelo maior período de democracia da nossa história.

Desde o fim do Regime Militar a democracia no Brasil vem se construindo de uma maneira que os movimentos sociais, partidos políticos e entidades acabam encontrando canais para negociar suas demandas com o Estado e mesmo para se fazerem presentes com cargos em um Governo de coalizão como é o caso das presidências de Fernando Henrique, Lula e Dilma.

Com isso os novos e mais complexos conflitos que surgem todos os dias muitas vezes não são percebidos pelos agentes que privilegiam a atuação junto às instâncias do Estado.

Os movimentos de junho de 2013 nos avisaram que existem imensas demandas de participação política que estão sendo represadas e não são representadas pelos agentes políticos convencionais.

Por enquanto estas manifestações estão sendo descaracterizadas pela infiltração de agentes provocadores. Mas vai passar este momento e os movimentos sociais vão se reaproximar das forças sociais populares que precisam ter suas reivindicações levadas em considerações, e vão redescobrir aquilo que sabíamos na época da ditadura, que a política não se faz apenas no âmbito do Estado, mas também na agregação paciente de força visando a construção de um projeto futuro de sociedade.

Afropress – Quando o livro será lançado? Onde? Qual a tiragem?

Rosângela/Walter Praxedes – O livro faz parte de uma coleção das Edições Loyola destinada à formação de educadores, que é coordenada pelo grande educador e professor da USP, Nelson Piletti. A primeira edição saiu com 2 mil exemplares, mas esperamos que o livro chegue ao maior número possível de educadores e ativistas da luta antirracista no Brasil.

Afropress – Falem um pouco da trajetória pessoal e profissional?

Rosângela/Walter Praxedes – Nós estamos estudando, trabalhando e compartilhando a vida há quase trinta anos. Quando iniciamos o curso de Ciências Sociais na USP visitávamos com freqüência o apartamento do querido e saudoso professor Clóvis Moura, que ficava na Avenida Angélica, e com ele aprendemos que a luta contra o racismo no Brasil passa também por esta dimensão da pesquisa acadêmica.

Em Maringá estamos há 22 anos e participamos da fundação de um cursinho pré vestibular articulado pelo movimento negro. Na Universidade Estadual de Maringá trabalhamos na realização de eventos com a participação de estudiosos e ativistas de todo o Brasil, como o prof. Kabengele Munanga, o jornalista Dojival Vieira, a ativista e filósofa Sueli Carneiro e tantos outros, além da organização de grupos de estudo, publicações e cursos sobre as relações raciais no Brasil. Este Educando contra o preconceito e a discriminação racial é uma síntese deste nosso trabalho simultaneamente acadêmico e político contra o racismo, a favor das ações afirmativas e da igualdade.

Afropress – Façam as considerações que julgarem pertinentes.

Rosângela/Walter Praxedes – Nós queremos agradecer a acolhida a este nosso trabalho e parabenizar o Afropress por estes 8 anos de sua competente luta contra o racismo e em favor da abertura de novos espaços para os negros em nosso país.

Serviço:

Livro: Educando contra o Preconceito e a discriminação racial

Autores: Rosangela e Walter Praxedes

Edições Loyola, 2.014 – S. Paulo

odiario.com

  • 20/11/2013

    O Dia da Consciência Negra e a luta pela igualdade

  • ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES* E WALTER PRAXEDES**

Embora biologicamente falando não existam raças humanas, os preconceitos que incorporamos na vida social continuam a nos ensinar a julgar e a avaliar as capacidades dos indivíduos e coletividades de acordo com a raça biológica na qual os classificamos.

Na prática, sempre que associamos um comportamento social à característica biológica de um indivíduo ou grupo estamos raciocinando de forma racista. Em outras palavras, mesmo desmentidos pelas ciências, os preconceitos racistas permanecem vivos nas mentes de muitos indivíduos e coletividades, tornando-os propensos a atitudes intolerantes.

Uma vez que uma realidade natural próxima ao que é classificado como raça não existe, o termo “raça” pode ser considerado uma ficção que adquire força de realidade quando é usado para classificar os seres humanos.

A concepção de raça e de identidade negra, empregada muitas vezes pelos movimentos sociais de combate ao racismo contra os negros, realiza pelo menos dois objetivos: a) uma tentativa de construção simbólica de um sentimento de pertencimento a uma coletividade discriminada e classificada racialmente; b) a busca do fortalecimento de uma solidariedade defensiva antirracista como uma forma de resistência contra a exploração, a perda de direitos, a exclusão social e a humilhação.

Os movimentos sociais negros atuam visando à conscientização da sociedade brasileira de que os negros são tratados há cinco séculos como raça inferior e de que atualmente essa discriminação persiste, apesar do discurso oficial do Estado brasileiro, favorável ao tratamento igualitário de todos os cidadãos, e do discurso racista “à brasileira”, que nega a existência do racismo em nosso país.

É mesmo um paradoxo que uma conquista importante do conhecimento científico e da cidadania democrática como o foi a constatação da igualdade universal da espécie humana apenas com muita dificuldade seja assimilada pelos seres humanos. Por isso o Dia da Consciência Negra nasceu para nos fazer recordar a importância da igualdade entre os humanos.

* Pós-doutora em Antropologia.
** Doutor em Educação.
Autores do livro “Educando contra o preconceito e da discriminação racial”.

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odiario.com
  • 21/03/2009

    A catarse do Dia da Consciência Negra

Walter Praxedes e Rosângela Rosa Praxedes

Catarse é uma palavra de origem grega que dá nome a um processo de libertação do que nos é estranho, daquilo que nos perturba, nos incomoda e corrompe a nossa dignidade.

Ela tem origem na medicina da Grécia Antiga e tinha o significado de purgação. O filósofo Platão escreveu que a catarse é uma maneira do ser humano se purificar do que tem de pior e recordar o que tem de melhor.

Num dia de catarse vamos fazer celebrações para persuadir os cidadãos de que existem purificações para os nossos atos injustos, por meio de sacrifícios e festas agradáveis e alegres ¿tanto para os vivos como para os mortos¿.

Não é outro o significado da Sexta-Feira Santa, que recorda a paixão de Cristo para os cristãos; ou do dia 7 de setembro, em que celebramos a construção de uma nacionalidade independente que sonha em ser livre da opressão dos colonizadores.

Na história do Brasil a escravidão foi um processo econômico e político da mesma importância da conquista do nosso território pelos colonizadores e do extermínio dos moradores originários do lugar.

A cidade de Maringá nasceu cerca de 450 anos depois do início da conquista do território pelos colonizadores portugueses, e meio século após a abolição da escravidão em nosso País.

Mas a cidade e os seus moradores não podem ser considerados inocentes em relação às conseqüências do colonialismo e da escravidão. Em poucas décadas de história da nossa cidade as populações locais originárias foram também exterminadas, depois do território ser recortado e vendido pela ganância dos comerciantes de terra.

Também não podemos ser irresponsáveis diante da situação de preconceito e discriminação racista contra os cerca de 25% da população da cidade, formada por descendentes dos escravizados que trazem na cor da sua pele um sinal que dificulta em muito conseguir trabalho na nossa cidade, resultando para os trabalhadores classificados como negros os empregos mais desprestigiados e de menor remuneração, a moradia nos bairros periféricos sem infra-estrutura adequada e uma barreira invisível para o ingresso no ensino superior, o que possibilitaria uma melhor formação educacional cidadã e profissional.

O feriado do Dia da Consciência Negra em Maringá, dia em que recordaremos o sacrifício de Zumbi dos Palmares, será um momento de catarse no nosso calendário, para refletirmos sobre todas as injustiças que os negros sofreram e sofrem em nossa cidade.

Muito mais importante do que o interesse mesquinho de alguns segmentos econômicos e políticos, será um dia para a integração de todos os cidadãos no compromisso com a construção de uma cidade hospitaleira em que todos os seus moradores são tratados como iguais e os seus visitantes como bem-vindos.

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REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO E UM NOVO SENSO COMUM: O TEMPO DA ORIGEM E A DANAÇÃO DE CAM

Rosângela Rosa Praxedes e Walter Praxedes

Observamos nos últimos anos uma preocupação com a valorização e o crescimento da participação dos negros em vários setores da sociedade brasileira, tanto nos meios de comunicação quanto nos espaços político-sociais. Ainda não obtivemos uma visibilidade à altura de nossa participação no conjunto da população brasileira e da contribuição que a população negra trouxe para esta sociedade, porém, como conseqüência da resistência negra, organizada ou não, estamos assistindo a uma lenta e consistente superação das representações eurocêntricas advindas da criação de um sujeito negro colonizado.

No centro da resistência negra, ao nosso ver, combinada com a ação política, deve figurar um trabalho contínuo de criação de novas representações sobre o negro.

As representações são idéias, conceitos, concepções, valores, princípios e imagens com os quais pensamos sobre a realidade, sobre nossas condições de existência. As nossas práticas, as nossas atitudes cotidianas são orientadas pelas representações que formamos em nossas mentes sobre quem somos, o que devemos fazer e como devemos interagir com as outras pessoas.

As representações estão entre os elementos que formam a identidade de cada um, mas não são pensamentos inatos que definiriam a essência de cada ser humano, ou seja, elas são construídas relacionalmente nas trocas intersubjetivas. Não é possível viver sem representar, isto é, sem construir um conjunto de idéias em nossas mentes a respeito de tudo que se apresenta para nós.

As representações podem surgir do contexto contemporâneo, das relações sociais, manifestações culturais e nas relações econômicas em vigência, mas podem também ter uma origem histórica anterior, em sociedades anteriores, mitologias e religiões do passado que chegaram até a atualidade.

Um exemplo de representação sobre os negros, ainda vigente no nosso imaginário de origem judaico-cristã, foi assim sintetizado e analisada por Alfredo Bosi:

O TEMPO DA ORIGEM: A DANAÇÃO DE CAM

O destino do povo africano, cumprido através dos milênios, depende de um evento único, remoto mas, irreversível: a maldição de Cam, de seu filho Canaã e de todos os seus descendentes. O povo africano será negro e será escravo: eis tudo… Transcrevo, em seguida, o passo bíblico fundamental onde a lenda encontrou sua formulação canônica:

Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam é o pai de Canaã. Esses três foram os filhos de Noé e a partir deles se fez o povoamento de toda a terra.

Noé, o cultivador, começou a plantar a vinha. Bebendo vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e advertiu, fora, a seus dois irmãos. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no sobre os seus próprios ombros e, andando de costado, cobriram a nudez de seu pai; seus rostos estavam voltados para trás e eles não viram a nudez de seu pai. Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse:

– Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos.

E disse também:

– Bendito seja Iahweh, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate a Jafé. Que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja teu escravo!

(Genesis, 9, 18-27)

A narração da Escritura prossegue dando o elenco das gerações de Cam, Sem e Jafé. “Camitas” seriam os povos escuros da Etiópia, da Arábia do Sul, da Núbia, da Tripolitânia, da Somália (na verdade, os africanos do Velho Testamento) e algumas tribos que habitavam a Palestina antes que os hebreus as conquistassem. (Bosi, 1996: 257-258)

O filósofo Cornel West também interpreta a narrativa bíblica comentada por Bosi, considerando que “… dentro desta lógica, a pele negra é uma maldição divina devida ao desrespeito e à rejeição da autoridade paterna” (West citado por Giroux, 1999: 136).

Como no exemplo acima, podemos analisar as representações investigando o que elas simulam e o que dissimulam sob o manto da origem religiosa e mítica da inferiorização dos humanos considerados negros.

Pesquisar as representações é investigar como foram geradas historicamente, quais as influências que receberam de outras representações, e quais as influências que exercem sobre a maneira como vivemos e nos relacionamos uns com os outros. Podemos estudar criticamente as representações sobre o negro para entendermos como se formam, o que elas mostram, o que escondem e como influenciam as nossas ações cotidianas.

Não podemos esquecer que ao elaborarmos as nossas representações somos influenciados pela cultura da sociedade e do meio cultural específico em que vivemos, mas também construímos idéias próprias, novas, a partir da nossa imaginação e de como pensamos a nossa vivência com os outros indivíduos. As representações formam um conjunto de saberes sociais incorporados pelo sujeito em sua vivência, mas reformulados e colocados em ação através de sua prática cotidiana. Ninguém pode, portanto, se considerar inocente em relação às representações que cultiva.

Os negros estão lutando pela alteração das representações presentes na identidade nacional brasileira segundo as quais são ainda vistos como cidadãos inferiores. Precisamos continuar o trabalho de desconstrução das representações dominantes sobre o ser negro em nosso país, que quase sempre nos associam às situações hierárquicas econômicas, religiosas, culturais e estéticas herdadas de nosso passado colonial. A associação do termo negro à crise, feiúra, pobreza, ignorância e marginalidade deverá ser revertida.

Como nos demonstra o estudo de Alfredo Bosi citado acima, a crítica cultural pode dar uma grande contribuição para a superação das representações que dominam as nossas identificações e para a construção de um novo senso comum sobre os negros brasileiros.

Referências

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional – Novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, UFMG/ UNESCO, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000.

Texto publicado originalmente em PRAXEDES, Rosângela R.; PRAXEDES, W. Representações sobre o negro e um novo senso comum. Revista Espaço Acadêmico. N. 32 – Janeiro de 2004. http://www.espacoacademico.com.br/032/32rwpraxedes.htm

Barack Obama, racismo e meritocracia

Walter Praxedes  e Rosângela Rosa Praxedes

O resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos merece uma análise que não embarque no otimismo ingênuo. Para início de conversa, cabe pedirmos licença para lembrarmos o óbvio: dois dos problemas mais graves da sociedade norte-americana foram a escravidão e a imposição de estereótipos negativos sobre os seres humanos classificados como negros naquele país.

Nos Estados Unidos, uma pessoa que seja imaginada como descendente de negro é considerada negra e inferior pela sociedade branca racista e isso teve conseqüências devastadoras para toda a sociedade, como também ocorreu no Brasil, apesar das diferenças entre as formas de preconceito e discriminação existentes nos dois países.

Para levarmos em consideração tais diferenças, podemos recordar a forma como o saudoso professor Oracy Nogueira diferencia em duas modalidades os pressupostos valorativos que orientam as atitudes discriminatórias, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, como podemos observar a seguir:

“Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem” (NOGUEIRA, 1979, p. 79).

No uso desta caracterização, Oracy Nogueira (1979, p.78) chega à conclusão que o preconceito e as atitudes discriminatórias, nas formas em que se apresentam no Brasil, podem ser tipificados como sendo um “preconceito de marca”, em contraposição às situações correlatas que ocorrem nos Estados Unidos às quais ele reserva a designação de “preconceito de origem”.

Pois bem, a vitória de Obama pode contribuir para manter o preconceito racial nos Estados Unidos, mas, agora, camuflado como uma forma de discriminação contra os mais vulneráveis: mulheres e homens negros marginalizados, desempregados pela crise econômica, que perderam suas casas e raízes comunitárias e junto toda a esperança. Milhões de negros estão nas prisões ou cumprindo algum tipo de pena naquele país. A partir da última eleição, os racistas brancos podem dizer com todas as letras que os negros que aceitarem as regras do jogo merecem ocupar posições importantes. Quem não tiver competência vai ser responsável pelo próprio destino porque a sociedade dá oportunidades iguais para todos. Bem, é óbvio que essa não é mais do que uma versão da velha e sempre sedutora ideologia do culto ao mérito individual.

O discurso da vitória que foi pronunciado por Obama, e que está sendo amplamente utilizado pelas elites conservadoras, reafirmou esta ideologia meritocrática de valorização do esforço e da competência. Isso quer dizer que se alguém for considerado negro nos Estados Unidos (e também no Brasil, é claro), é melhor que seja um Barack Obama ou um Pelé. O problema é que ninguém vive com dignidade sob tamanha pressão. Uma sociedade justa e decente para se viver respeita as pessoas como elas são, independentemente da cor da sua pele ou do formato do seu nariz, mas em virtude de sua dignidade inerente à condição humana. Hoje, quem não é racista concorda com tal raciocínio, mas ainda precisamos reafirmar que temos o direito de viver com dignidade mesmo que não sejamos julgados como os mais inteligentes, os mais capacitados ou mais bonitos dos seres humanos ou que sabem fazer gol de bicicleta. O ideal é vivermos bem e sermos respeitados pelos outros, mesmo não tendo nenhuma capacidade considerada extraordinária.

Uma hipótese que deriva deste raciocínio é que a vitória de Obama, que contou com o apoio do eleitorado e dos movimentos sociais negros dos Estados Unidos, pode passar a ilusão de que o sistema é justo e de que basta você trabalhar com competência que você chega “lá”. Então, podemos avaliar que do ponto de vista das pessoas que não participam da vida política em organizações, movimentos sociais e partidos políticos, que é a maioria tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a vitória de Obama pode fortalecer a ideologia individualista de culto ao mérito de que dá para superar todos os obstáculos através do esforço individual e não é necessário uma organização anti-racista.

Por outro lado, não desconsideramos que a presença de um agente político que é considerado como “negro” na presidência da maior potência militar e econômica do planeta ajuda a quebrar os preconceitos mais simplistas e ignorantes daqueles que avaliam as capacidades dos seres humanos pela cor da sua pele. Evidentemente, Barack Obama não ganhou a eleição porque é negro, da mesma forma que ninguém ganha uma maratona ou a corrida de São Silvestre porque é negro. Ganhou porque teve a capacidade política extraordinária de juntar todos os apoios necessários para a sua vitória, do mais anônimo eleitor aos donos de jornais de maior prestígio nos Estados Unidos, assessores estrategistas e patrocinadores. Infelizmente ele tem o apoio de organizações militares e empresariais imperialistas e não foi colocado lá para questionar o imperialismo norte-americano, e sim para torná-lo mais eficiente e aceitável perante o mundo.

Muitos ainda associam a esperança de mudança depositada no novo presidente norte-americano ao que ocorreu no Brasil com a vitória de Lula. Mas esta é uma correlação baseada apenas na aparência e na simbologia que envolve os dois dirigentes, em virtude de suas origens populares e também pelo fato de que ambos são lideres políticos que passam confiança para os seus apoiadores que surgem de todos os segmentos sociais. A eleição do nosso presidente foi o ponto culminante dos movimentos sociais organizados na luta contra a ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Lula é respeitado pelo eleitorado pelas suas características pessoais, mas ele representa também a força da sociedade civil organizada em instituições como associações, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, igrejas. Barack Obama se viabilizou inicialmente a partir de sua atuação comunitária, mas nos últimos anos ele se credenciou como o representante das elites econômicas e políticas prejudicadas pelo governo Bush e que precisavam de uma liderança que representasse novidade e angariasse o apoio da maioria do eleitorado para o Partido Democrata.

Conclusão

Como dizia o poeta Bertolt Brecht, triste de um povo que necessite de heróis. Em nossa opinião, não precisamos de lideranças carismáticas ultra-competentes dotadas de méritos extraordinários. Precisamos é que todas as pessoas participem em condições de igualdade da vida social, econômica, cultural e política. Se estivermos sentindo a necessidade de heróis míticos como Dom Sebastião, Homem Aranha ou Barack Obama, isso quer dizer que cada um de nós, na verdade, se sente incapaz, sem poder e sem a esperança de que pode individualmente contribuir para que a vida humana de todos seja digna de se viver. Enfim, contra as nossas ilusões messiânicas, o ideal é que todas as formas de poder sejam descentralizadas e todos participem direta ou indiretamente de sua gestão.

Referências

NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.

WEST, Cornel. Questão de raça. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

Texto publicado originalmente em. PRAXEDES, W. ; PRAXEDES, Rosângela R. Barack Obama, racismo e meritocracia. Em:

http://www.espacoacademico.com.br/091/91wrpraxedes.htm

A burocratização do professor universitário e outros ensaios sobre a universidade

A burocratização do professor universitário

Walter Praxedes

Em uma carta ao professor Fernando de Azevedo, datada de 13 de novembro de 1935, o sociólogo Gilberto Freyre confessa ao amigo que jamais assumiria “deveres definitivos de professor” e se explica: “tenho medo de me burocratizar – e a burocracia pedagógica é a mais esterilizante”.

Qualquer professor universitário sabe que suas obrigações rotineiras o deixam muito longe de realizar o seu projeto de vida como alguém voltado para a busca do conhecimento e para a ação educativa.

Membro de comissões de inquéritos administrativos, autor de inúmeros e inúteis relatórios e participante de reuniões intermináveis, o professor universitário tem seu tempo de pesquisa e de ensino roubado. Some-se a tudo isso o tempo dedicado às articulações políticas em defesa ou ataque à sanha competitiva dos pares e encontraremos um pseudo-educador que precariamente pesquisa, escreve e leciona.

Como já advertia Florestan Fernandes nos anos setenta, o professor universitário corre o risco de deixar de ser um investigador, um cientista, para tornar-se um mero funcionário com horário marcado e ponto para assinar, deixando, assim, embaixo do tapete do cumprimento das normas a sua covardia, mediocridade e falta de criatividade.

Sufocado pela burocracia e corrompido pela competição por cargos e prestígio institucional, resta ao professor universitário tornar-se repetidor mecânico daqueles pensadores que conseguiram fazer de seus projetos de vida o oposto do que nós estamos fazendo com o nosso.

A sentença para a nossa decadência já foi proclamada por Hegel: “Naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda”.

A competição meritocrática da vida universitária pode até produzir gênios, mas todos nós sabemos como produz também neuróticos e esquizofrênicos. A concentração obsessiva facilmente se transforma em introversão narcisista. O medo de ousar na busca do novo tem nos tornado a cada dia mais conformistas.

Acredito que temos que pensar em novas possibilidades de reeducação daqueles que têm como missão a educação das novas gerações. Venho tentando imaginar alternativas que apontem para a nossa reeducação. Ainda não cheguei a nenhuma conclusão que possa ser apresentada para o debate, mas não tenho dúvidas de que a responsabilidade pela passividade, evasão ou oportunismo e falta de compromisso com o conhecimento por parte de muitos dos nossos alunos pode ser atribuída aos exemplos que lhes apresentamos.

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Entrevista ao jornalista Bruno Franco, Jornal da Universidade Federal do Rio de Janeiro  – UFRJ, em 27 de outubro de 2010.

Bruno Franco: Em seu artigo A burocratização do professor universitário, o senhor critica o excesso de obrigações rotineiras que inviabilizariam o projeto de vida de professores voltados à ação educativa e à produção de conhecimento. Quais seriam essas obrigações?

W.P. Os professores e pesquisadores ingressaram na carreira universitária para construir conhecimento, formar novos pesquisadores e profissionais, estabelecer diálogo e parcerias com os segmentos externos à universidade através da extensão. Todas as atividades que subtraem o tempo e a energia que os professores dedicam a estas atividades deveriam ser minimizadas ou eliminadas. Alguns exemplos: preencher os inúmeros relatórios desnecessários que jamais serão lidos ou que só servem para o controle e a vigilância do trabalho intelectual por parte das instituições; participar de comissões de sindicância com reuniões puramente formais e inúteis. Indicado pelo meu departamento, há alguns anos participei de uma sindicância que durou um semestre, porque foi feita uma denúncia de que havia uma carcaça de cpu com o tombo da universidade na casa de um aluno. O aluno ganhara a carcaça já descartada no ferro velho da universidade. Foi necessário o trabalho de 4 professores, 2 servidores e um representante dos alunos para a coleta de dezenas de horas de depoimentos, até a conclusão de que o aluno acusado e que fora expulso da universidade era inocente. Mas existem muitas atividades administrativas necessárias e relevantes que funcionam na prática como subterfúgios quando os docentes ficam desmotivados para o ensino e a pesquisa exatamente porque aparentam ser imprescindíveis.. Cada instituição tem o seu histórico de atividades que jamais deveriam justificar um professor ausentar-se da sala de aula, do seu laboratório, do atendimento aos alunos ou mesmo de suas atividades de lazer fora do horário de trabalho.

Bruno Franco: A institucionalização da competitividade entre professores, e as instituições às quais pertencem, gera efeitos perniciosos para o ensino e a pesquisa no país?

W.P. Escrevi em um artigo que o resultado da concorrência no mercado acadêmico combina uma precária satisfação com a própria obra com o ressentimento em relação à obra que não realizamos, mas que acena da janela do currículo Lattes de um concorrente real ou imaginário. A competição pode motivar alguns espíritos à busca de um melhor desempenho, mas o seu efeito colateral é a desagregação dos grupos de pesquisa, departamentos e de toda a universidade. Encarar os nossos colegas e alunos como adversários e competidores por uma posição mais prestigiosa, por bolsas de produtividade e cargos leva à destruição da solidariedade necessária para a construção de conhecimento. Melhor seria se aprendêssemos a trabalhar coletivamente, assumindo as limitações individuais e a importância do diálogo para superá-las.

Bruno Franco: O modelo atual de avaliação de produtividade acadêmica prioriza a ampla divulgação em conferências e revistas, sobretudo estrangeiras. Em que medida essa orientação prejudica outras atividades acadêmicas como o ensino, o acompanhamento acadêmico dos estudantes e as atividades de extensão? Seria necessária uma readaptação do modelo, de forma a valorizar mais essas atividades acadêmicas que vêm sendo depreciadas?

W.P. A produção científica universitária é resultado da obediência, convicta ou a contragosto, das normas vigentes nos órgãos oficiais de financiamento à pesquisa, comitês editoriais das revistas científicas e associações acadêmicas profissionais, que nas palavras de Edward Said, no livro Representações do intelectual, transformam os professores “em técnicos de sala, altaneiros e impossíveis de compreender, contratados por comissões, ansiosos para agradar a vários patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os não-especialistas”.

Muitos excelentes professores não são considerados “pesquisadores”. Professores que contribuem para a formação intelectual e exercem influência marcante sobre a identidade dos seus alunos não necessariamente se dedicam ao que é oficialmente denominado como “pesquisa científica”.  O poder dos pesquisadores com alta produtividade dentro do mercado acadêmico, impõe como critério de avaliação da competência dos professores a publicação de artigos em veículos considerados prestigiosos, nacionais e principalmente internacionais. Esse critério leva à desvalorização e até à humilhação de vários educadores extraordinários, levando-os algumas vezes ao desespero, à depressão e ao absenteísmo. Na minha instituição a publicação de um artigo científico em veículo indexado nacional agrega 200 pontos ao relatório bianual de atividades de um professor, o mesmo que lecionar 400 horas de aulas, ou aproximadamente 6 disciplinas de 68 horas cada, com a participação de centenas de acadêmicos, aos quais lecionamos, orientamos, avaliamos e fazemos sugestões às suas produções e assim por diante. Esta é uma distorção que leva nitidamente à desvalorização do ensino.

É mais útil para o país que um pesquisador produza numerosos artigos ou se concentre em produzir uma ou poucas obras, que necessitem de um maior tempo de maturação, mas mudem o estado-da-arte na sua área de conhecimento científico?

W.P. A pergunta parte de um paradoxo que não precisa ocorrer na prática. Muitos pesquisadores são ótimos elaboradores de artigos para jornais e revistas ou papers para apresentação em congressos. Outros trabalham vários anos na escrita de uma obra mais aprofundada e extensa.  Todas as modalidades de trabalho acadêmicos são válidas, sejam elas dissertações, teses, monografias, artigos, livros, ensaios, romances, poemas, partituras, etc, e nenhum modelo de trabalho intelectual pode ser erigido como o único correto e prestigioso, levando à desvalorização das demais formas de produção acadêmica, como ocorre atualmente, quando um artigo publicado em tal revista internacional se transforma no critério de relevância de uma produção, desqualificando as demais.

Há um desequilíbrio entre a produção de pesquisas voltadas ao mercado e pesquisas que não tragam grandes retornos econômicos? É natural e desejável que isso ocorra?

W.P. Esse desequilíbrio é gerado pelo controle que as organizações empresariais exercem sobre a atividade de pesquisa, e não propriamente pela produção de um conhecimento que possa ser utilizado no mercado (que é uma forma de sociabilidade historicamente vigente nas sociedades modernas). A ciência é uma forma de produção de conhecimento internacional. A maior parcela das pesquisas científicas realizadas no mundo ocorre em laboratórios e fundações controladas por empresas transnacionais localizadas nos países mais ricos do hemisfério norte. O cientista se transformou em mais um trabalhador alienado, para usarmos uma expressão clássica da sociologia do trabalho. Aproximadamente a metade das investigações tem fins militares. As pesquisas científicas realizadas nos laboratórios das empresas multinacionais e agências da indústria bélica transformam a atividade de pesquisa voltada para melhorar as condições de vida no planeta em atividades marginais e pouco influentes na vida social. É nesse contexto científico internacional que devemos entender a relevância de construirmos na universidade brasileira aqueles conhecimentos que sirvam de contraponto e resistência à produção científica dominante, cujos fins estratégicos são a dominação política e a lucratividade. Para isso, ao invés de nos destruirmos mutuamente através da competição cotidiana por prestígio, cargos e recursos, deveríamos criar e fortalecer os grupos de pesquisa e demais coletivos e associações universitárias realmente interessados na construção de novos conhecimentos e não na ocupação das posições de privilégio nas hierarquias sociais.

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Sobre ensino superior, favor e compadrioWalter Praxedes

O ensino superior brasileiro atual, nas modalidades pública e privada, se estrutura através de duas formas de sociabilidade distintas, muito embora complementares e quase nunca excludentes uma em relação à outra.

Na universidade pública o que solda os relacionamentos entre docentes, servidores e alunos, muito mais profundamente do que a formalidade das regras institucionais, é a relação de troca de favor. O favor gera a dependência da pessoa, que passa a ter suas atitudes toleradas como exceções à  regra que atendem ao interesse mútuo e se completa com a cumplicidade entre os agentes. Na universidade pública o favor está presente em todas as instâncias, mesmo que combinado com o mérito acadêmico. É o “toma-lá-dá-cá” do cotidiano, quase sempre disfarçado e, de preferência, nunca explícito. É assim que se criam as identidades dos grupos de pressão e de interesse que tornam privado o que apenas formalmente é público. Alguém se recorda de uma atividade política ou acadêmica relevante que tenha ocorrido no interior das nossas universidades sem resultar do compadrio, do  conluio, em suma, da troca de favor?

Max Weber, em sua conferência “A ciência como vocação”, proferida no já distante ano de 1918, alertava para o fato de que “nenhum professor universitário gosta que lhe recordem as discussões sobre nomeação, pois raramente são agradáveis.”

A troca de favor é um traço característico da sociabilidade entre os brasileiros, como nos ensina Roberto Schwarz no descortinador ensaio “As idéias fora do lugar”, que serviu para lembrar-nos  de que “…com mil formas e nomes, o favor afetou no conjunto a existência nacional… Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção européia, não devia nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade e o funcionário para o seu posto.”

O ensaísta se refere ao nosso século XIX, mas alguém pode se levantar para dizer que a interpretação acima não se refere à docência universitária na atualidade, tanto no ensino público quanto no privado?

As idéias continuam fora do lugar. Enquanto abraçamos as idéias que propõem as formas mais generosas de sociabilidade, continuamos com a prática do “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Cabe aqui recordar ao leitor um editorial do jornal Folha de São Paulo (13/10/1997): “Sabe-se que, em alguns cursos, muitas defesas de tese são rituais meramente formais, viciados por práticas de favores, compadrio e corporativismo. Hoje, a composição da banca de examinadores é uma atribuição do orientador, que escolhe aqueles que deverão julgar seu orientado. Trabalhos acadêmicos, que deveriam ser apreciados segundo critérios de impessoalidade e mérito, podem continuar subordinados a interesses de grupos e panelas”.

É preciso um parágrafo para lembrar que no ensino privado as indicações, imprescindíveis para o exercício da profissão, e os conluios internos devem estar submetidos ao resultado do caixa. Quem ingressa no ensino privado, como aluno, professor ou empresário, sabe que está entrando numa relação de compra e venda de serviços educacionais. Esta relação de troca mercantil de equivalentes é que torna possível a atividade de ensino no seu interior.

Levando-se em consideração que a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada e a remuneração objetiva não estão entre as opções realmente existentes, o que é melhor, troca de favores ou de equivalentes monetários?

Trocar favor pode parecer uma opção mais atraente, ainda mais porque é uma forma de sociabilidade que está presente no nosso inconsciente colonial. As relações mercantis, como nos ensina Marx, transformam os relacionamentos humanos em simples troca de mercadorias.

Entre o céu da proteção do grupo e o inferno da competição do mercado pode haver muito mais do que vã sociologia. Pode haver a respeitabilidade apenas aparente daquele que faz parte do grupo dos escolhidos para ingressar na universidade bem pouco pública; ou a alegria passageira daquele que se entrega ao canto das sereias do sucesso no mercado educacional. Muito melhor seria a superação de ambas as formas de sociabilidade, ou pelo menos da hipocrisia que nos faz agarrar a uma ou à outra como tábua de salvação e única verdade.

Parafraseando André Gide, resta desculpar-me reconhecendo que tudo isso já foi dito, mas, como ninguém escuta, é preciso repetir sempre.

A solidão do professor universitário

Freqüentemente caímos no engano de debater a estrutura da universidade brasileira como uma construção sem construtor, como um aparelho inumano que corrompe os agentes que estão no seu interior.

Muito mais proveitoso para a análise seria considerar que os nossos atos e as relações que estabelecemos no mundo acadêmico se objetivam em estruturas cujas finalidades fogem ao controle dos seus autores. A matriz dessas estruturas monstruosas que recebem o nome de universidades está entre os próprios professores universitários e suas incríveis relações sociais com os demais servidores, alunos e com a comunidade externa. Acho que não devemos nos eximir de nossas responsabilidades pela criação dessas estruturas coercitivas e corrompidas culpando apenas os governos e o Banco Mundial.

Em sua experiência cotidiana, a conduta desse ser social, o professor universitário, é a de alguém que pesquisa e profere aulas, orienta os novos pesquisadores e participa da gestão universitária para ganhar a vida e alcançar a glória, mesmo quando edulcora sua posição na divisão do trabalho com uma representação revolucionária sobre os próprios atos.

Talvez um pouco antiga, uma reflexão de Mario Vargas Llosa sobre a nossa hipocrisia parece-me a cada dia mais atual:

“Embora seja extraordinário que esteja inscrito num partido revolucionário e cumpra com as tarefas sacrificadas da militância, se autodefina como marxista e sempre proclame sua convicção de que o imperialismo norte-americano – o Pentágono, os monopólios, a ofensiva cultural de Washington – é a fonte de nosso subdesenvolvimento… é um candidato permanente às bolsas das fundações Guggenheim e Rockefeller (que quase sempre consegue)… Quem é ele? O intelectual progressista”. [1]

Podemos até imaginar que a nossa atividade é revolucionária. Efetivamente, porém, qualificamos a força de trabalho que na melhor das hipóteses irá alienar-se ao capital e, na pior, engrossará o exército de desempregados.

As conseqüências das nossas ações educativas são imprevisíveis e quase sempre não coincidem com nossas intenções. Ao aluno que ministro aulas de sociologia marxiana no curso de Direito está à espera um posto de delegado, e quero crer que não contribuo para a formação de futuros torturadores.

Acho que precisamos reconhecer que a verdade da nossa práxis imaginária está na práxis real. Não é por que se arroga o monopólio do saber sobre a realidade natural e social  que o professor universitário deva deixar de ser estudado e interpretado como um burocrata típico que difunde os seus interesses específicos como se fossem universais, escondendo os bastidores de um cotidiano marcado pelas disputas mais mesquinhas e desleais.

Competindo com os próprios pares e amigos, como um político hábil, o professor universitário é aquele que consegue conversar horas a fio, até com quem possui intimidade, sem deixar escapar suas reais intenções, suas estratégias para publicar, conseguir uma bolsa de estudos ou um convite para viajar ao exterior.

Pode até soar antipático, mas vou recordar uma análise cortante do professor Milton Santos, para quem, no Brasil,  “…a vida intelectual ainda está organizada em torno de clubes, de clãs e do enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as noites em reuniões sociais com os colegas que mandam, do que “queimar as pestanas”, como antigamente se dizia, em frente aos livros”. [2]

A concorrência leva-o a se isolar em seu labor intelectual. Solitário e desprezado, muitas vezes o caminho que encontra para conviver com os colegas, também solitários e a quem também despreza, é se conflitando. Competir e conflitar é uma forma de convivência que pode até ser tensa, mas satisfaz a necessidade de presença do outro. Por isso construímos verdadeiros infernos departamentais, sem os quais muitos de nós não conseguem viver.

Não quero ficar me escondendo atrás das citações, outro costume nosso bem típico, mas não consigo deixar de concluir com um trecho de uma carta de Martin Heidegger para Hannah Arendt, que expressa a solidão característica da nossa condição, e que tem levado muitos de nós ao desespero, à depressão, ao vício e até ao suicídio:

“Se em geral me retraio há um longo tempo, isso se dá porque me deparei em todo o meu trabalho com uma falta de compreensão aflitiva e não pude ter mais do que umas poucas experiências pessoais belas em minha atividade docente. Já perdi aliás há muito tempo o costume de esperar dos assim chamados alunos um agradecimento qualquer ou mesmo uma meditação sincera.” [3]

 

____________

P.S.: Agradeço os comentários e sugestões dos professores Roberto Romano e Paulo Roberto de Almeida ao meu artigo Ensino superior, favor e compadrio, publicado no número anterior da nossa revista. É um alento saber que os dois reconhecem que a vida universitária brasileira entrou num descaminho que quase sempre encobrimos para que possamos reproduzir o existente sem culpa.

[1] LLOSA, Mário Vargas. “O intelectual barato”. In: LLOSA, M.V. Contra vento e maré. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1985.

[2] SANTOS, Milton. “A era da inteligência baseada na máquina”. In: TRINDADE, Azoilda L. (org.) Multiculturalismo – mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.

[3] LUDZ, Úrsula (org.). Hannah Arendt – Martin Heidegger: Correspondência. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2001.

A relação entre o padre Helder Camara e o educador Lourenço Filho na década de 1930: uma interpretação política

Da esquerda para a direita (de pé): o 3º é o poeta Manuel Bandeira, o 5º é o líder católico Alceu Amoroso Lima e o 7º é o padre Helder Camara. Sentados: o educador Manuel Bergstrom Lourenço Filho e o 3º é o então ministro da Educação Gustavo Capanema. A foto é do arquivo particular de Rui Loureço, filho do educador, gentilmente cedida para o autor.

Da esquerda para a direita (de pé): o 3º é o poeta Manuel Bandeira, o 5º é o líder católico Alceu Amoroso Lima e o 7º é o padre Helder Camara. Sentados: o educador Manuel Bergstrom Lourenço Filho e o 3º é o então ministro da Educação Gustavo Capanema. A foto é do arquivo particular de Rui Loureço, filho do educador, gentilmente cedida para o autor.

Walter Praxedes

Resumo: Este artigo propõe uma interpretação política que contextualiza a relação de colaboração entre os educadores Lourenço Filho e padre Helder Camara na década de 1930 como uma expressão peculiar da coalizão centro-direitista que dava sustentação política para o regime comandado por Getúlio Vargas, demonstrando como a famosa oposição entre os educadores escolanovistas e católicos, verificada na história da educação brasileira, não pode ser considerada como absoluta.

Palavras-chave: Escola nova, católicos, interpretação política

Apesar de sua importância na história da constituição da área educacional brasileira como um campo de lutas no qual se disputava a definição da legislação educacional do país, os critérios para a distribuição dos recursos públicos destinados à educação, o reconhecimento oficial ou não dos serviços educacionais prestados pelos estabelecimentos católicos e o controle sobre o Ministério da Educação e Saúde, com todos os seus postos e recursos, a famosa oposição entre os “pioneiros da educação nova” e católicos, nos anos trinta do século XX, não pode ser considerada absoluta, como demonstra a análise do relacionamento entre os educadores Lourenço Filho e padre Helder Camara. O próprio líder leigo católico Alceu Amoroso Lima chegou a afirmar que entre católicos e pioneiros ocorrreram “… não apenas oposições mas composições possíveis” (1).

Recairá sobre uma dessas “composições possíveis” o enfoque principal deste artigo. Entretanto, com o intuito de discutirmos algumas nuanças da conjuntura política e educacional daquele período, uma segunda hipótese abordada nesta exposição trata o relacionamento político, a colaboração intelectual entre Lourenço Filho e Helder Camara, bem como a admiração do segundo pelo pensamento e pela obra educacional do primeiro, como uma expressão peculiar, não intencional, daquilo que o historiador Edgar Carone denominou como a “união sagrada contra o comunismo” (2), ocorrida, nos anos trinta, entre sacerdotes e leigos católicos, intelectuais, políticos e militares em torno do regime político comandado por Getúlio Vargas.

Em termos gramscianos, pode-se dizer que o regime iniciado com a Revolução de 1930, passava por um momento no qual “a sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo que assegura a conformidade das massas populares ao tipo de produção ou de economia em um momento determinado)” recorre às “organizações ditas privadas, tais como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc.” para consolidar sua hegemonia “sobre o conjunto da sociedade nacional”. (3)

Pelo menos sumariamente, alguns momentos importantes da historia da educação brasileira devem ser recordados, para que se possa discutir o relacionamento entre os educadores em questão. Sob a direção de Dom Sebastião Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro desde 1921 e cardeal a partir de 1930, os católicos elegeram a área educacional como estratégica para a “recristianização das elites e do povo brasileiro” e para a arrecadação de recursos pela sua instituição através da rede de escolas confessionais. (4)

Conforme escreveu Schwartzman, Bomeny e Costa, “em 1931 a Igreja católica encontra em Francisco Campos (Ministro da educação de Vargas) um explícito apoiador de sua causa”, que articula um pacto de colaboração entre o principal dirigente católico e Getúlio Vargas, através do qual, “… a Igreja deveria oferecer ao novo regime uma ideologia que lhe desse substância e conteúdo moral, sem os quais ele não conseguiria se consolidar” (5). Em troca, Dom Leme “… obteve ajuda financeira estatal para amparar as escolas católicas, conseguiu vetar o divórcio e reintegrar a educação religiosa durante o período escolar, além de outras medidas. (6) Coerente com tal pacto, em abril de 1931 Campos lança um decreto que prescrevia o ensino religioso nas escolas oficiais do país, que era uma reivindicação católica desde a instauração da República, em 1889, e que fora frustrada até então.

Percebendo que a Igreja católica ameaçava suas propostas em favor da escola pública, obrigatória, laica e gratuita, os educadores da Associação Brasileira de Educação, dentre os quais estava Lourenço Filho, lançam, em 1932, o famoso “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”.

No ano seguinte, comandados por Dom Leme e Alceu Amoroso Lima, os católicos fundam a Liga Eleitoral Católica, para tentar influir na Constituinte de 1933, e a Confederação Católica Brasileira de Educação, para coordenar e centralizar a defesa dos interesses dos estabelecimentos confessionais de ensino contra as ameaças representadas por uma virtual implementação das propostas dos educadores da ABE.

Além da aprovação de suas principais reivindicações pela Constituinte, em julho de 1934 os católicos conseguem que Gustavo Capanema assuma o Ministério da Educação e Saúde, tendo sua nomeação e atuação no cargo monitorada diretamente por Alceu Amoroso Lima, “como parte do acordo geral que se estabelecera entre a Igreja e o Regime de Vargas, proposto anos antes por Francisco Campos”. (7)

I – Concepções e práticas educacionais do padre Hélder Câmara

Sobre suas concepções ideológicas e posicionamentos políticos nos anos trinta, em uma correspondência enviada aos seus colaboradores, o próprio Camara reconheceria que “… existisse TFP naqueles tempos e eu teria sido um de seus líderes”. (8)

1 - pe. helder e irma

Padre Helder com sua irmã, a freira Stefânia Maria (Maroquinha)

Na origem de sua visão de mundo politicamente autoritária e católica ultramontana, está a formação que recebera no Seminário Episcopal de Fortaleza, entre os anos de 1923 e 1931, embasada, fundamentalmente, no antimodernismo do Concílio Vaticano I e no ideário político conservador transmitido pelo líder leigo Jackson de Figueiredo. Ainda no seminário, Helder Camara integrou um grupo que se autodenominava “Jacksonianos”. Depois do desaparecimento de Jackson, em 1928, Câmara passou a ser orientado diretamente por Alceu Amoroso Lima, com o qual se correspondia regularmente, e de quem recebeu o aval para, depois de sua ordenação sacerdotal, em agosto de 1931, fundar os movimentos Juventude Operária Católica, Liga dos Professores Católicos e auxiliar o tenente Severino Sombra a criar a Legião Cearense do Trabalho, de inspiração assumidamente salazarista. A intensa atividade de Camara na direção destes movimentos culminou na sua entrada para a Ação Integralista Brasileira, em 1932, convidado diretamente pelo líder Plínio Salgado.

Foi com estas credenciais que o padre Hélder Câmara estreou, nacionalmente, no debate educacional entre católicos e pioneiros, com um artigo de combate, publicado na revista “A Ordem”, de julho de 1933, onde ataca diretamente um dos principais líderes do movimento escolanovista:

“Anísio Teixeira, um dos mestres da pedagogia nova no Brasil, acaba de publicar ‘Educação Progressiva’; estudos eivados duma philosofia errronea e seductora, capazes de fazer uma mal immenso, em nossa terra, onde a ausência de princípios seguros e norteadores, mesmo entre os nossos intellectuais, deixa muitos delles a mercê do primeiro vento de doutrina moderna surgido entre nós”. (9)

Alguns meses depois, desta vez nas páginas da Revista Brasileira de Pedagogia, Câmara voltaria a atacar Anísio Teixeira, afirmando que os admiradores deste,
“… não deviam consentir que elle escrevesse. Em poucas páginas, são tantas as contradições em que elle cáe, tantos os erros que ele avança, solene, tantos os pontos falhos dados como dogmas, que, ao surgirem as irreverencias de que elle é prodigo, bem se pode sorrir do arrogante e enfatuado inimigozinho de nossa fé”. (10)

Em fevereiro de 1934 Câmara atua como membro da comissão executiva organizadora da VI Conferência Nacional de Educação, promovida pela ABE, em Fortaleza. Na ocasião, após fazer uma exposição e um dos debates, protagonizou um boicote aos educadores ecolanovistas presentes, dentre os quais estava Anísio Teixeira, Almeida Júnior e Edgar Sussekind de Mendonça:
“Comandei a retirada do público numeroso que acorrera à minha palestra… recordaria Câmara, autocriticamente. Contra todas as regras da hospitalidade cristã e do espírito evangélico, deixei os visitantes – uns 30 educadores, vindos sobretudo do Rio – às moscas”. (11)

Com o acirramento do confronto entre católicos e escolanovistas na conferência, o educador Edgar Sussekind de Mendonça desacata o representante da Confederação Católica Brasileira de Educação, Dom Xavier de Matos. Em represália, logo após o encerramento do evento, no dia 12 de fevereiro de 1934, pessoalmente Câmara insufla um grupo de militantes integralistas a surrar o Sussekind de Mendonça. (12)

Em outra oportunidade, Camara também se insurge contra a ABE e seus membros. Enquanto se preparava para participar do primeiro Congresso Católico Nacional de Educação, que se realizaria em setembro de 1934, no Rio de Janeiro, em uma entrevista concedida ao jornal católico “O Nordeste”, o jovem padre cearense afirma:
“… Nossos inimigos se unem apenas pelo odio commum que nos votam. Mas não se entendem – A VI Conferencia de Educação permitiu-nos constatar que, na intimidade, os da A.B.E. não só não se toleram, mas se devoram, esterilizando-se em humilhantes atritos pessoais. Os seus congressos são inexpressivos, inoperantes, donde podemos afirmar que o Congresso de setembro não será apenas o primeiro Congresso Catholico Nacional de Educação, mas será primeiro mesmo como simples Congresso Pedagogico Nacional”. (13)

Incansável em sua cruzada contra os escolanovistas, na abertura do Congresso Católico Camara volta a fazer um discurso polemizador:
“Nós, e só nós, poderemos salvar o mundo e o Brasil do espetáculo entristecedor de pseudos educadores que não sabem o que querem e flutuando ao vento das doutrinas mais desencontradas se contradizem mutuamente e, o que é mais triste, a si mesmos se contradizem. No terreno psicológico vacilam entre psicologias objetivas extremadas, como o behaviourismo, e extremadas psicologias subjetivas, como a psicanálise”. (14)

II – Lourenço Filho e os católicos

Mesmo na condição de um dos principais expoentes do movimento de renovação da educação brasileira, Lourenço Filho consegue passar ao largo da polarização política e ideológica entre escolanovistas e católicos, combinando, em suas concepções, a defesa da preponderância estatal na coordenação da educação nacional com o respeito aos interesses católicos:
“Neste particular, a Escola Nova, como conjunto de doutrinas deixa de tomar atitude exclusivista. É antes conciliatória. Por certo que a autoridade do Estado prepondera na concepção da educação hoje, seria excusado disfarçá-lo. Mas por outro lado, chama em seu auxílio, os pais… e em relação à Igreja, a atitude de numerosos reformadores, embora não sectária, tende a solicitar sua cooperação e valimento”. (15)

O posicionamento teórico e prático de Lourenço Filho, favorável aos católicos, tornava-o alvo de comentários elogiosos por parte destes, como o escrito pelo intelectual católico e membro do Centro Dom Vital, Jonathas Serrano: “Fazemos ao professor Lourenço Filho a justiça de reconhecer que, na direção da instrução pública, em São Paulo, não criou obstáculos à aplicação do decreto de 30 de abril de 1931”. (16)

Considerando-se a influência do grupo católico sobre os cargos educacionais das várias instâncias estatais na época, tal declaração pode ser encarada como um verdadeiro salvo-conduto para que Lourenço Filho não tivesse sua atuação obstaculizada pelos mesmos. Aliás tal salvo-conduto era mais que merecido por Lourenço Filho, que para fazer valer o rigoroso regulamento interno do Instituto de Educação e para não frustrar a expectativa de seus aliados católicos com relação à sua atuação, em novembro de 1932, solicitou a abertura e compôs uma comissão de inquérito que investigou a distribuição de boletins “subversivos” por uma aluna do Instituto, que acabou sendo suspensa de suas atividades por trinta dias, por ter pregado a greve e a utilização de meios violentos para a resolução dos problemas sociais, tudo isso em nome de uma organização autodenominada Federação Vermelha dos Estudantes. (17)

Com a ressalva de que não se pretende aqui insinuar nenhuma vinculação de Lourenço Filho com a chamada “doutrina do sigma”, podemos observar uma certa coincidência entre a forma como o educador paulista concebia a combinação das atribuições estatais na educação com os interesses da Igreja, e a concepção educacional integralista de Camara, segundo a qual embora a “educação intensiva e integral do povo” fosse considerada como “um dever fundamental do Estado”, este “jamais poderá ultrapassar a legítima esfera dos seus direitos, aniquilando ou mesmo cerceando os direitos primordiais da família e da religião” (18). Ou seja, ambos defendem que as atribuições do Estado na área educacional sejam combinadas com a atuação e os interesses dos estabelecimentos confessionais.

Por tudo isso, a despeito de seus ataques aos representantes do movimento de renovação da educação brasileira, o padre cearense cultivava uma opinião francamente favorável ao educador Lourenço Filho, como pode ser constatado em uma resenha que escreveu sobre o livro “Testes ABC”:
“Dado o justo renome de que desfruta nos meios pedagogicos o Dr. Lourenço Filho, constitui um acontecimento importante a aparição de seu novo livro ‘Testes A.B.C. para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita’. O novo estudo do ilustre pedagogo confirma-lhe os títulos de agitador salutar de grandes problemas educacionais no nosso meio e de pesquisador inteligente e operoso, como os que mais o sejam. Ele, que em ‘Introdução ao estudo da Escola Nova’, rasgou tantos horizontes aos professores do Brasil, agora focaliza novos e importantes aspectos da questão educacional… Lourenço Filho, entrando na corrente das cogitações manifestadas modernamente, por Gray, La Salle, e Gates, conseguiu para o caso particular da leitura e escrita, um teste que talvez eles estejam procurando… Escrevesse em outra língua, o diretor do Instituto de Educação do Distrito Federal e o seu trabalho possivelmente haveria de conquistar renome universal”. (19)

É bem possível que, além do reconhecimento das atitudes e posicionamentos favoráveis aos católicos e da admiração pela competência intelectual e administrativa de Lourenço Filho, o padre Helder Camara cultivasse também uma simpatia pessoal pelo mesmo, a quem conhecera aos treze anos, em 1922, quando da passagem do educador paulista por Fortaleza. Era o menino Hélder quem buscava na casa de Lourenço Filho os artigos que este escrevia para serem publicados no Jornal “O Diário do Ceará”, do qual seu irmão mais velho, Gilberto Camara, era redator. Em algumas ocasiões Helder ficava aguardando Lourenço Filho concluir um artigo, enquanto a esposa do educador lhe fazia companhia. (20)

Quando o padre Helder Camara assumiu a Diretoria de Instrução Pública do Ceará, em junho de 1935, após ter coordenado com êxito a campanha eleitoral da Liga Eleitoral Católica em seu Estado, é possível que essa simpatia pessoal tenha contribuído para que ele se sentisse à vontade para solicitar a colaboração informal de Lourenço Filho, que ocupara o mesmo cargo no início dos anos vinte. Câmara toma posse do cargo em 5 de junho de 1935 e assim que inicia sua gestão, por correspondência, solicita e recebe sugestões de Lourenço Filho.

Num rápido balanço de sua atuação no cargo, além de contemplar as reivindicações corporativas de sua instituição, como a regulamentação do ensino religioso nas escolas públicas e a organização do II Congresso Católico Regional de Educação, Camara se empenhou na criação de um jardim de infância na Escola Normal, iniciou a realização de um censo escolar, incentivou a formação de classes homogeneizadas e aplicou os testes ABC, medidas que evidenciam a influência das ideias de Lourenço Filho em sua atuação.

Por discordar das medidas repressivas autorizadas pelo governador Menezes Pimentel contra uma manifestação integralista ocorrida no interior do Estado, Camara pede exoneração do seu cargo no dia 21 de novembro de 1935, cinco meses e meio depois de sua posse. Motivado também pela falta de apoio de seu superior hierárquico, o arcebispo Dom Manoel da Silva Gomes, ao seu rompimento com o governo, e ainda por vários outros problemas de ordem pessoal, a alternativa vislumbrada por Camara foi mudar-se para o Rio de Janeiro. Para concretizar esse projeto, em um telegrama datado de 23 de novembro de 1935, portanto dois dias depois de seu pedido de demissão, solicitou que o amigo Lourenço Filho lhe arranjasse um novo emprego na capital federal:

LOURENÇO FILHO RUA MARIS BARROS 227 RIO =
IMPERATIVO CONCIENCIA ABANDONEI
DIRETORIA INSTRUÇÃO FACE ARBITRARIEDADE
GOVERNO ANSEIO TODAVIA TRABALHAR
EDUCAÇÃO CUJA CAUSA SINTO POSSO SER
UTIL HORRIVEL PRESENCIAR MORTE MEUS
SONHOS EXULTARIA AMIGO CONSEGUISSE
CAPANEMA MARGEM COLABORAR INSTITUTO OU
MINISTERIO SOLICITARIA CONVITE SEU FIM
POSSA MOSTRAR MOVER ARCEBISPO
RESPONDA GUILHERME ROCHA 808 =
HELDER
A resposta enviada por Lourenço Filho foi totalmente animadora para Câmara:
Padre Helder Camara
Rua Guilherme Rocha 808
Fortaleza (Ceará)
Estou trabalhando maximo empenho sua vinda ponto
Ministro Educação tem pronta reforma Ministerio
a ser enviada Camara ponto prometeu considerar
caso maior interesse questão poucos dias Abraços
Lourenço Filho (21)

O emprego foi de fato conseguido, mas não no ministério: Lourenço Filho contrata-o como seu assessor no Instituto de Educação do Distrito Federal e o padre Helder muda-se de Fortaleza para o Rio de Janeiro em janeiro de 1936. Como estamos analisando e tentando contextualizar a colaboração entre um reconhecido educador escolanovista com um sacerdote e educador católico e integralista, devemos discutir, a seguir, as circunstâncias políticas pelas quais passava o país, e, particularmente, sua capital federal, no segundo semestre de 1935 e primeiro de 1936, período em que ocorre a chamada Intentona Comunista, seguida pela ação repressiva do Governo Vargas, com repercussões consideráveis sobre o setor educacional do país.

Nessa época, no Rio de Janeiro, as hostilidades dos católicos a alguns educadores escolanovistas chegavam ao extremo. Uma observadora privilegiada como a Irmã Laurita Pessoa Raja Gabaglia, filha do presidente Epitácio Pessoa, assessora e depois biógrafa do Cardeal Sebastião Leme, a partir do ângulo de visão dos católicos, avaliou que os educadores escolanovistas “não digeriam” as vitórias católicas na constituição de 1934 e, por isso, no “Distrito Federal, […] o Secretário da Educação Anísio Teixeira, mostrava-se radicalmente contrário ao ensino confessional e disposto a torná-lo por todos os meios inaplicável”. (22)

Precavendo-se contra a gestão de Pedro Ernesto e de Anísio Teixeira, ainda segundo Raja Gabaglia, Dom Leme, “… logo que vira a capital da República constituída em distrito autônomo e entregue a uma administração esquerdista, aconselhara o cônego Olimpio de Melo, ex-vigário de Bangu e membro do conselho executivo do Partido Autonomista, a candidatar-se a vereador”. (23)

Eleito vereador e conduzido à presidência da Assembleia Municipal, Olímpio de Melo passou a trabalhar pela aprovação de um projeto de regulamentação do ensino de religião nas escolas municipais, o que foi conseguido no de 5 de junho de 1935. Porém o prefeito Pedro Ernesto decidiu não sancionar o projeto aprovado, segundo Raja Gabaglia, “menos talvez por lhe ser pessoalmente hostil do que por acatamento à oposição intransigente do seu Secretário da Educação” (24). Pressionado por Antonio Carlos de Andrada, Presidente da Câmara Federal e interinamente na Presidência da República em virtude de uma viagem de Vargas à Argentina, Pedro Ernesto desistiu de seu veto e deixou que a regulamentação do ensino religioso no Distrito Federal fosse aprovada por decurso de prazo.

Concomitantemente a estes acontecimentos, em outra frente Dom Leme contava com a atuação do líder leigo Alceu Amoroso Lima. Ainda em junho de 1935, época em que tramitava o projeto de regulamentação do ensino religioso no Distrito Federal, por carta, Alceu pressionava ao Ministro da Educação por uma atuação mais decidida do governo contra principais inimigos da Igreja Católica: os comunistas ou aqueles que assim fossem designados pelos católicos. Além de apoiar Eurico Gaspar Dutra e Filinto Muller, respectivamente como Ministro da Guerra e Chefe de Polícia do Distrito Federal, Alceu defende um amplo expurgo no Estado:
“… Expurgar pois o Exército e a Marinha de elementos políticos revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindicatos e dos quadros do Ministério do Trabalho elementos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade nesse setor importantíssimo a homens de toda confiança moral e capacidade técnica (e não a socialistas como o Diretor do Departamento Municipal de Educação), tudo são tarefas que o governo deve levar adiante e infatigavelmente, pois delas dependem a estabilidade das instituições e a paz social. (25)

Após a eclosão da revolta comunista de novembro de 1935, essa recomendação inquisitorial do dirigente católico será plenamente atendida. No dia 25 de novembro o país entra em Estado de Sítio. “A repressão e as prisões podem ser feitas agora, de maneira contínua e segundo os interesses os mais escusos das oligarquias, o que a leva a prender indiscriminadamente comunistas, socialistas, liberais e outros. Os sindicatos são varejados, os operários são presos e somem, o número de mortos aumentam, tudo é feito brutalmente, sob orientação de Filinto Muller, chefe da polícia, e com o consentimento de Getúlio Vargas, do Exército, das bancadas de São Paulo etc.”, escreve Edgar Carone. (26)

No trabalho de Carone são citados os nomes das pessoas que sofrem com a sanha repressiva do governo, entre os quais os dos professores Hermes Lima e Edgard Castro Rebelo, do escritor Graciliano Ramos e dos parlamentares Abel Chermont e Abguar Bastos. Quando trata dos métodos utilizados pela polícia de Filinto Muller o relato do historiador torna-se dramático: “… são marinheiros e operários cujos tornozelos, cujas carnes foram arrancadas, queimadas a maçarico; ou é Luís Carlos Prestes, que é posto em solitária, durante meses; ou Carlos Marighela, simples estudante, que é espancado nos pés e rins e depois queimado por todo o corpo com pontas de cigarros, ou Hary Berger, que apanha até ficar louco. Os exemplos se repetem em centenas de casos, no Rio, em São Paulo, no Nordeste, tornando-se tônica comum, mas sendo sempre desmentidos pelas autoridades”. (27)

Para satisfação das lideranças católicas, esse clima persecutório chega à Secretaria de Educação do Distrito Federal, da qual Anísio Teixeira é exonerado em dezembro de 1935, sendo substituído por Francisco Campos. Para não ser preso, Anísio parte para o exílio e depois se esconde na fazenda de seu cunhado, em Caetité, Bahia. Já o Prefeito Pedro Ernesto além de ser substituído pelo Cônego Olímpio de Melo acaba sendo detido em abril de 1936.

Embora formalmente ocupasse um cargo de confiança de Anísio Teixeira, Lourenço Filho não só não seria prejudicado pela queda do Secretário de Educação – provavelmente porque mantivesse uma boa relação com o novo secretário, Francisco Campos, de quem já fora chefe de gabinete, quando da passagem deste pelo Ministério da Educação -, como mesmo nos tumultuados meses de novembro de 1935 a janeiro de 1936 conseguiu articular a contratação de Helder Camara para assessorá-lo no Instituto de Educação do Distrito Federal.

Convidado por Everardo Backheuser para trabalhar na chefia da sessão de medidas e programas do Instituto de Pesquisas Educacionais, também do Distrito Federal, e para ocupar o posto de redator-chefe da Revista Brasileira de Pedagogia, da Confederação Católica Brasileira de Educação, Camara permanece apenas por alguns meses trabalhando com Lourenço Filho (28). Apesar disso, num depoimento publicado na revista que passou a chefiar, embora apareçam insinuadas algumas de suas divergências com as ideias de Lourenço filho, fica evidenciado o entusiasmo pelo trabalho que estava sendo realizado por este no Instituto de Educação:
“Lourenço Filho fez do seu Instituto a obra-prima de sua vida. O seu melhor trabalho não é ‘Introdução ao estudo da escola nova’, visão de conjunto da pedagogia moderna, util, interessante, mas nem sempre isenta de apaixonamento e erro; não é ‘Joazeiro de Padre Cícero’, estudo perspicaz, sutil, mas por vezes, falho e unilateral; nem mesmo o seu volume de ‘Testes ABC’ onde o mestre brasileiro deu, sobre maturidade para leitura e escrita a resposta que os mestres estrangeiros debalde procuravam. A sua obra feliz por excelência é o Instituto de Educação.

É uma escola ‘diferente’ , onde se vem processando a elaboração verdadeira de tudo o que a moderna pedagogia possue de realmente bom. Seria lastimável que o sopro da escola nova passasse violento, destruindo, sem quasi construir. No Distrito o Instituto ficará como uma nota de equilíbrio, um dado positivo em meio á confusão geral.” (29)

CONCLUSÃO
Ao considerarmos o conservadorismo religioso, ideológico e político do jovem padre Helder Camara e de sua instituição na época, podemos concluir que só mesmo em virtude da atitude conciliadora de Lourenço Filho com relação aos interesses católicos é que a colaboração entre ambos pôde ter ocorrido.

Como decorrência disso, em outra oportunidade, talvez seja relevante discutirmos se essa presumida flexibilidade no discurso e na prática de Lourenço Filho não contribuiu para a diminuição do preconceito de outros educadores católicos em relação ao ideário escolanovista, a exemplo do que, provavelmente, ocorreu com o padre Helder Camara, como pode ser inferido das medidas que tentou implementar durante sua curta gestão na Diretoria de Instrução Pública do Ceará.

Por sua vez, para Lourenço Filho a relação com Hélder Câmara, que, como vimos, estava intimamente vinculado à elite dirigente católica, tornava-o menos vulnerável ao clima de intolerância política e ideológica apoiado diretamente pelos católicos, e do qual foi vítima Anísio Teixeira, dentre tantos outros.

Outro fator que pode ajudar a entendermos a aproximação entre Lourenço Filho e Helder Camara, foi a estratégia comum, utilizada por ambos, de ocupar posições no Estado, como meio para a implementação de seu projeto educacional.

Para concretizar essa estratégia, Lourenço Filho e Helder Camara tiveram que pagar o tributo do apoio a um governo que se dispunha a fazer concessões aos interesses representados por ambos, tendo em vista a formação de uma ampla coalizão centro-direitista que lhe fornecesse a sustentação política necessária para a liquidação da oposição representada pela ala esquerda do movimento tenentista e por socialistas e comunistas.

NOTAS

1. Ver o prefácio escrito por Alceu Amoroso Lima ao livro de CURY, Carlos R. Jamil. Ideologia e educação brasileira. São Paulo, Cortes/Autores Associados, 1988.

2. CARONE, Edgar. A República Nova – 1930-1937. São Paulo, DIFEL, s/d, p. 342-378.

3. GRAMSCI, Antonio. Lettere dal Carcere. Turim, 1965, p. 481, citado por ANDERSON, Perry. “As antinomias de Gramsci”. In: Crítica Marxista. São Paulo, Editora Joruês, 1986, p. 13.

4. LEME, D. Sebastião. Carta pastoral à Arquidiocese de Olinda. Petrópolis, Vozes, 1916.

5. SCHWARTZMAN, Simon / BOMENY, Helena M.B. / COSTA, Vanda M.R. Tempos de Capanema. São Paulo, Edusp/Paz e Terra, 1984, p. 44.

6. MAINWARING, Scott. Igreja católica e política no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 48.

7. SCHWARTZMAN, op. cit., p. 46-47.

8. CAMARA, D. Helder. Correspondência enviada aos seus colaboradores, Recife, 25/26 de janeiro de 1972.

9. CAMARA, Pe. Helder. “Educação Progressiva”. In: Revista A Ordem, Ano XII – n. 41-42. Rio de Janeiro, Centro Dom Vital, julho/agosto de 1933, p. 544.

10. CAMARA, Pe. Helder. “Resenha de Livros”. In: Revista Brasileira de Pedagogia, Confederação Católica Brasileira de Educação, ano 1 – n. 7, agosto de 1934, p. 141.

11. CAMARA, D. Helder. “Minha passagem pela Ação Integralista Brasileira. Recife, setembro de 1973, texto mimeografado, p. 10.

12. PILETTI, Nelson & PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara – Entre o poder e a profecia. São Paulo, Ática, 1997, p. 92-93.

13. Jornal O Nordeste, Fortaleza, 29 de junho de 1934.

14. CAMARA, Pe. Helder. “Discurso aos congressistas”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, Confederação Católica Brasileira de Educação, ano 1, n. 9-10, outubro/novembro de 1934, p. 334-335.

15. LOURENÇO FILHO, M.B. Introdução ao estudo da escola nova, p. 220, citado por CURY, op. cit., p. 90.

16. A citação de Jonathas Serrano aparece no livro de LIMA, Danilo. Educação, Igreja e ideologia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p. 78.

17. Conforme informações fornecidas por Ruy Lourenço Filho.

18. Jornal O Nordeste, Fortaleza, 25 de outubro de 1934.

19. CAMARA, Pe. Helder. “Resenha de Livros”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, C.C.B.E., ano 1, n. 4, maio de 1934, p.237.

20. CASTRO, Marcos de. Dom Hélder: o bispo da esperança. Rio de Janeiro, Graal, 1978, p. 33.

21. Conforme as fotocópias dos telegramas fornecidas por Ruy Lourenço Filho.

22. RAJA GABAGLIA, Laurita Pessôa. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1962, p. 350.

23. Íd., ibid., p. 350-351.

24. Íd., ibid., p. 352.

25. Carta de Alceu Amoroso Lima a Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1935, publicada em SCHWARTZMAN, Simon. Op. cit., p. 176.

26. CARONE, op. cit., p. 342-378.

27. Id., ibid., p. 342-378.

28. Em 1939, aprovado em concurso público, Camara trabalharia por quase um ano no INEP, sob a direção de Lourenço Filho, e depois pediria transferência para outro órgão do M.E.S. De 1949 a 1961 ambos atuariam como conselheiros no Conselho Nacional de Educação.

29. CAMARA, Pe. Hélder. “A Escrita na escola primária”. In: Revista Brasileira de Pedagogia. Rio de Janeiro, C.C.B.E., ano 3, n. 28-29, setembro/outubro de 1936, p. 210.

(Artigo publicado originalmente como: PRAXEDES, W. L. A. . A relação entre Lourenço Filho e Hélder Câmara nos anos trinta: uma interpretação política. Educação Brasileira a Atualidade de Lourenço Filho. Cadernos Estudos e Documentos – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 41, p. 153-167, 1999.)

O Tratado sobre a tolerância de Voltaire e a intolerância nossa de cada dia

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Walter Praxedes

Podemos aprender muito com a leitura do Tratado sobre a tolerância, escrito por Voltaire em 1763, para expor como concebia a convivência pacífica entre seres humanos diferentes e divergentes, mas que se relacionam entre si. Mesmo com as incoerências do autor e contradições que aparecem ao longo do texto e da distância que nos separa da época da publicação da obra, o pensamento de Voltaire ainda é inspirador para que possamos realizar as nossas próprias reflexões sobre o tema. Aliás, é isso o que torna relevante a leitura de um texto clássico e não uma presumida capacidade de explicar com exatidão a realidade.

Na época, o livro foi proibido de circular na França, tão acirrados eram os conflitos entre católicos e protestantes, tema principal do livro. Os acontecimentos que motivaram a elaboração da obra foram a condenação e execução do comerciante de tecidos de religião calvinista Jean Calas, de 63 anos, em 10 de março de 1762, pelo tribunal criminal de Toulouse, com entusiasmado apoio da população católica local, que determinou que o réu fosse “quebrado vivo”, estrangulado e tivesse o corpo incinerado em uma fogueira. A acusação contra Jean Calas era de ter assassinado o seu filho que, segundo boatos, pretendia se converter ao catolicismo.

Informado sobre os acontecimentos, Voltaire redige o Tratado sobre a tolerância entre outubro de 1762 e abril do ano seguinte, discutindo os erros do processo e o clima de intolerância religiosa contra Jean Calas depois da morte por suicídio de seu filho Marc-Antoine Calas. Ainda em março de 1763 o caso é reaberto pelo Conselho do Rei. Dois anos depois Jean Calas é oficialmente inocentado e sua família indenizada pelo Estado francês.

A leitura do Tratado sobre a tolerância também nos ensina que a intolerância que muitas vezes prevalece no tratamento que os povos europeus dispensam aos outros povos com os quais entraram em contato desde o século XVI, é uma consequência até óbvia do tratamento mútuo observável entre os próprios europeus, em muitas situações habitantes de um mesmo país.

Para Voltaire o conflito religioso que levou à condenação injusta de Jean Calas demonstrava que a religiosidade pode deixar de lado a caridade para promover a violência nas relações humanas, incentivando o ódio e a perseguição, ao invés de promover o amor e a solidariedade. Para superar o fanatismo, e “diminuir o número de maníacos”, segundo Voltaire (2015, p. 4) a melhor maneira era “submeter essa doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente os homens. Essa razão é suave, humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que a força é capaz”.

Logo se vê que o autor depositava uma grande esperança na difusão do racionalismo iluminista como um meio para promover a convivência democrática e a tolerância. Dois séculos e meio depois, infelizmente, já tivemos exemplos de sobra de como a racionalidade cientifica pode estar a serviço da intolerância, como demonstram as pesquisas tecnológicas de aplicação militar.

Voltaire nasceu em 1694 e viveu até 1778, um período histórico em que germinam as ideias e se acirram os conflitos que levaram à Revolução Francesa de 1789, e que alterou radicalmente as relações de poder entre a nobreza, de um lado, e de outro o chamado terceiro estado, composto pela burguesia, as nascentes classes médias de trabalhadores intelectuais e pequenos proprietários, trabalhadores urbanos e camponeses.
Uma reflexão que pode nos ocorrer, então, diz respeito às possíveis consequências do prevalecimento do ideal da tolerância, defendido por Voltaire, nesse contexto histórico revolucionário. Caso os estamentos e classes sociais em conflito, ou seja, o Rei, a nobreza e o chamado terceiro estado, adotassem o ideal da tolerância mútua, a revolução teria sido impedida e o antigo regime e as relações sociais feudais continuariam em vigência naquele país. A tolerância se revelaria, assim, como uma forma de conservação da ordem social.
Já a intolerância dos dominados em relação ao regime monárquico e ao feudalismo, por sua vez, gerou a violência revolucionária que colocou fim a séculos de opressão social e consolidou politicamente a modernização da sociedade francesa.

Voltaire apresenta inúmeros exemplos históricos de tolerância em diferentes povos, na tentativa de persuadir os franceses sobre a superioridade ética e benefícios práticos da convivência tolerante. O texto visa convencer os leitores de que a tolerância é viável e necessária para a conveniência da realização dos interesses privados e do estado. Foi elaborado para que as ideias nele defendidas fossem colocadas em prática na ação política e na vida social. Por isso os seus argumentos não partem de uma concepção idealizada e sublime de uma humanidade pacífica, e sim de situações históricas e formas de resolução dos conflitos que sejam efetivamente viáveis, pois aceitos pelos seus contemporâneos e pelos dirigentes do estado e pelo rei.
O estilo do texto é de um discurso que apela ao bom senso dos possíveis leitores cristãos. O autor deixa bem evidente que não defende a tolerância por estar imune aos preconceitos contra os outros povos, costumes e religiões, mas sim por considerar que a convivência tolerante pode trazer melhores resultados para todos.

Voltaire nem faz questão de esconder os seus preconceitos contra os egípcios, povo que ele considera “sempre turbulento, sedicioso e covarde, povo que havia linchado um romano por ter matado um gato, povo desprezível em quaisquer circunstâncias, não obstante o que digam dele os admiradores das pirâmides” (Voltaire, 2015, p. 59). “Seu antissemitismo, tão pouco de acordo com suas convicções iluministas”, como bem expressou Eric Auerbach (2012, p. 281), o levou a escrever que não se encontra em toda a história do povo judeu “nenhum traço de generosidade, de magnanimidade, de beneficência” (Voltaire, 2015, p.. 73); em algumas passagens de sua obra predomina uma visão desumanizada e estereotipada dos negros (Voltaire, 1978, p. 62-63). Mesmo pensando dessa forma, Voltaire achava que era possível a convivência tolerante com esses diferentes povos. É evidente que podemos questionar se de fato alguém consegue ter uma convivência respeitosa e pacífica com aqueles sobre os quais cultiva representações tão negativas.

Tolerância e intolerância como estratégias

Tolerância e intolerância são duas formas de conceber como devem se dar as relações entre os humanos, seus grupos, classes sociais, nações e suas instituições religiosas, empresas, estados. São duas concepções diferentes sobre quais as estratégias que devem ser empregadas para a busca da resolução de conflitos de interesses ou de crenças, com ou sem o uso da violência.

A tolerância é a concepção de que as relações humanas devam ser baseadas na convivência pacifica entre indivíduos e coletividades que tem diferentes interesses, costumes, concepções e até aparência, mas que mesmo com divergências necessitam e optam pela continuidade dos relacionamentos sociais e transações mercantis, formando uma unidade nas relações sociais entre contrários.

Caso a estratégia da tolerância seja adotada, o conflito entre classes sociais, por exemplo, deverá ser limitado, pois as classes em luta terão que conter as suas demandas, para manter a possibilidade de realizar pelo menos uma parte de seus interesses. As classes proprietárias terão que garantir um mínimo de condições aceitáveis para que os trabalhadores não sejam eliminados ou simplesmente abandonem seus postos de trabalho. Já os trabalhadores terão que respeitar que a propriedade foi estabelecida como um direito para os patrões, que de outro modo não manteriam os seus empreendimentos que oferecem as oportunidades de emprego para os trabalhadores.

No contexto de uma sociedade capitalista os patrões não podem ser intolerantes com os seus trabalhadores, pois estes valorizam o capital, e nem os trabalhadores podem eliminar seus empregadores, pois ficariam sem os investimentos que garantem os seus salários. A tolerância volta a se revelar, então, como uma condição para a manutenção desse tipo de sociedade. Conflitos motivados por convicções religiosas ou costumes diferentes devem então ser controlados para que não inviabilizem o mínimo de convivência que pelo menos parcialmente beneficia a todos.

Do ponto de vista dos mais céticos, aqueles que concebem que deva prevalecer a tolerância nas relações humanas ou se beneficiam com a convivência pacífica, ou então não contam com os meios violentos à sua disposição para preferir a intolerância como estratégia para a subjugação pela força ou eliminação dos seus inimigos. Por isso optam pelas relações políticas democráticas, que são aquelas que preveem que os conflitos de opinião, crença e interesse serão resolvidos através da observância às leis e regras vigentes, de preferência previamente pactuadas entre os possíveis litigantes.

As sociedades contemporâneas são compostas por interesses tão heterogêneos e inconciliáveis, que não podemos ter a ilusão de que a convivência democrática e pacífica possa ser considerada como um valor absoluto pela unanimidade dos seres humanos, pois existem segmentos importantes e poderosos que dependem da perpetuação da violência para manter a lucratividade dos seus negócios. Em um relatório divulgado em 2013, aparece a informação de que as 100 maiores empresas fabricantes de armas faturaram 402 bilhões de dólares naquele ano, de acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), sendo que a maior parte desse faturamento ficou com empresas sediadas nos Estados Unidos e na Europa.

Uma fabricante de armas como a empresa norte-americana Boeing, mais conhecida por suas atividades civis de fabricação de aviões, ocupa o segundo lugar entre as 10 maiores empresas do setor, com faturamento de 30,7 bilhões de dólares, empregando 168.400 trabalhadores. A brasileira Embraer aparece na 62ª posição no mesmo ranking, faturando 6,3 bilhões de dólares em vendas, empregando 19.280 trabalhadores. A lista inclui muitas outras empresas que lucram com a intolerância no mundo atual e que são mais conhecidas pela fabricação de eletrodomésticos e automóveis como Hyundai, Hewlett-Packard (HP), Rolls-Royce, General Electric, Samsung, Mitsubishi etc.

Incontáveis acontecimentos violentos já expressaram o grau extremo a que chegou a intolerância nas relações entre os humanos de diferentes concepções, crenças, interesses ou cor da pele no mundo contemporâneo. É o que demonstram os exemplos dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos; a invasão das tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, que já deixou centenas de milhares de mortos; os conflitos entre judeus e palestinos na faixa de Gaza; os conflitos envolvendo o governo sírio e seus opositores armados; os atentados contra jornalistas da revista Charlie Hebdo e a um mercado judaico em janeiro de 2015, em Paris; o tratamento aviltante dispensado aos imigrantes que chegam à Europa diariamente.

Também devemos recordar o assassinato de nove fiéis negros que participavam de uma reunião de estudos bíblicos na Igreja Metodista Africana Emanuel na cidade de Charlleston, Carolina do Sul (EUA), no dia 17 de junho de 2015. A este respeito, uma matéria jornalística divulgada no portal da rede de comunicação inglesa BBC em 23/06/5015 informa que atualmente 784 grupos de ódio racial e defesa da supremacia branca estão em atividade nos Estados Unidos, dentre os quais 142 grupos com inspiração neonazista, e outros 72 vinculados à já antiga Ku Klux Klan.

Ainda no mês de junho de 2015, no dia 26, ocorreram mais três atentados terroristas de repercussão mundial, um contra turistas no balneário de Sousse, na Tunísia, e outro contra fiéis muçulmanos em uma mesquita no Kuwait, deixando dezenas de mortos e feridos, e um terceiro atentado contra um trabalhador francês na cidade de Lion, França.

A mensagem que fica é que a violência não poupa nenhum grupo social, nacionalidade, confissão religiosa e orientação comportamental no mundo contemporâneo.
Os exemplos de violência na sociedade brasileira atual, as disputas pela propriedade da terra, o racismo cotidiano contra as populações negras e indígenas, a violência contra mulheres, crianças e homossexuais, demonstram também que estamos muito longe da tolerância enfatizada há dois séculos e meio por Voltaire.

Conclusão

A crítica que fazemos à intolerância não deve sensibilizar aqueles que se beneficiam com a violência e o sentimento de insegurança que ela propaga. Mas num mundo em que a intolerância predomina ninguém pode se considerar seguro. A lucratividade obtida por uma minoria que aumenta os seus negócios na medida em que aumenta também a insegurança da maioria não pode prevalecer em relação ao direito de todos ao respeito à sua integridade física e identitária.

Embora esta defesa da tolerância possa parecer ingênua diante da onda contemporânea de violência, temos que difundi-la como antídoto contra aquelas concepções que propagam que o mundo só pode ser uma arena de luta de todos contra todos, afinal, esta é sua maior estratégia de marketing.
Para promover o respeito à alteridade, o conhecimento intercultural pode contribuir para que sejam superadas as barreiras do preconceito e do desconhecimento que separam e geram estranhamento entre indivíduos e grupos humanos.

Mas a defesa da concórdia entre os povos espalhados pela Terra, para não se tornar inócua, por se restringir às formas de animosidade entre indivíduos e grupos intolerantes em relação às identidades religiosas e culturais dos outros, deverá ser combinada com o reconhecimento de que a concentração da renda e da riqueza, do poderio militar e do acesso privilegiado às condições ambientais necessárias para a vida, a começar pela água e ar limpos e solos agricultáveis, são obstáculos que deverão ser superados para que prevaleça a verdadeira tolerância entre os seres humanos.

Referências

AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo, Duas Cidades, Editora 34, 2012.
BBC. “EE.UU.: ¿quiénes son los supremacistas blancos y cuál es su poder político?”
http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/06/150622_eeuu_tiroteo_charleston_supremacistas_blancos_bd?ocid=wsmundo.content-promo.email.newsletters..newsletter. Acesso em 26.06.2015
Stockholm International Peace Research Institute (Sipri).
http://www.sipri.org/research/armaments/production/recent-trends-in-arms-industry. Acesso em 22/06/2015
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo, Folha de São Paulo, 2015.
______. Cartas inglesas ou Cartas filosóficas. São Paulo, Abril Cultural, 1978.

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A educação e a superação da intolerância

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(Entrevista concedida à jornalista Fernanda Dantas, Revista Família Cristã. Ano 71 – n, 839 – novembro de 2005, p. 40. São Paulo, Edições Paulinas.)

 

  • O mundo parece estar cada vez mais marcado pela intolerância. A violência invade as casas e a relação com o outro está cada vez mais prejudicada. Mesmo assim, é possível pais educarem seus filhos para a tolerância?

Walter Praxedes: Acredito que sim. A educação dos nossos filhos deve ser pensada com a combinação de duas direções, que devem ser inseparáveis: a primeira direção é educá-los para a vida possível hoje, nas circunstâncias atuais de competição por um emprego e de auto proteção contra possíveis atos de violência do Estado ou dos outros cidadãos. Isso porque se eles não conseguirem sobreviver no mundo como o mundo realmente é hoje, consequentemente não poderão criar nenhum mundo diferente; a segunda direção é educarmos as crianças para que tentem construir um mundo diferente, baseado nos valores da convivência pacífica, da igualdade social e do respeito às diferenças de cada um e entre as comunidades e religiões. Se nos preocuparmos apenas em educar as crianças para a sobrevivência no mundo atual a resposta à  sua pergunta talvez seja negativa, e vamos acreditar que devemos educá-las para a competição no mercado e para a guerra, isto é, vamos prepará-las para responder aos atos de intolerância que vierem a sofrer com mais intolerância e violência. Mas se pensarmos no mundo que precisamos construir, baseado na convivência pacífica entre os diferentes, temos que educar as crianças para que tenham imaginação e coragem  para a busca de novos caminhos para as comunidades e para a humanidade.

  • De que forma (prática)?

W.P.: Conviver pacificamente com o diferente se aprende convivendo, e não se isolando em escolas, shoppings, condomínios e bairros só para a elite ou para as classes médias. Acho muito bom para todos a convivência em escolas e bairros com populações heterogêneas, diversificadas  dos pontos de vista social, étnico, racial, político, religioso e comportamental. A partir da convivência entre os diferentes poderão ser exercitadas formas de negociação de conflitos, de respeito aos valores e interesses que não se concorda. Para isso, desde o início da vida escolar as crianças já podem participar de reuniões para o debate e decisões que afetem a vida da comunidade escolar. Como exemplos do que estou propondo, devemos recordar a importância das associações de pais, alunos e educadores, os grêmios estudantis e centros acadêmicos, a participação das associações comunitárias na gestão escolar etcO mesmo deve ocorrer nos bairros, condomínios e associações de moradores. Se apenas os adultos tomarem as decisões, as crianças e adolescentes nunca aprenderão a opinar,  a dar sugestões e a ouvir as idéias contrárias. Em resumo, temos que recriar espaços públicos de convivência, debate e deliberação. A educação para a tolerância depende da criação de instituições democráticas para a negociação de conflitos de valores e de interesses.

 Existe muita distância entre o discurso dos pais do que realmente eles praticam sobre preconceito?

W.P.: Acho que existe sim esse descompasso entre o que queremos transmitir e o que realmente transmitimos como idéias para os nossos filhos, ou seja, o que eles entendem e como recebem o nosso discurso. Todos nós temos preconceitos, que são princípios, valores, idéias sobre a vida e sobre os outros. São idéias preconcebidas que nos orientam no dia-a-dia. Como pais, transmitimos estes preconceitos para os nossos filhos até sem  intenção. Por isso, como adultos, temos que analisar e criticar constantemente os nossos próprios preconceitos para sabermos se eles estão difundindo para os nossos filhos idéias depreciativas sobre os nossos semelhantes, enfim, se eles não estão justificando a discriminação e a humilhação daqueles que consideramos diferentes de nós. Bem, para isso, é  necessário  abertura de espírito e aceitar viver em dúvida sobre validade ou não das idéias que temos. Falando de forma genérica, muitos pais estão com muito medo da violência e da competição de mercado. Por isso isolam os seus filhos do mundo violento e tentam capacitá-los  para que se tornem futuros profissionais de sucesso. Se esquecem, portanto, de que ninguém consegue viver se estiver preocupado sempre em competir com os outros e se estiver vivendo isolado, com medo dos outros. Acho que até inconscientemente transmitimos estes preconceitos que levam ao isolamento nos lares e ao afastamento em relação às comunidades.

  • Qual o papel da escola na educação para a tolerância?

W.P. A escola tem uma importância muito grande, pois é o primeiro espaço público frequentado assiduamente pelas crianças. Se for um espaço público de convivência entre os diferentes, com tolerância, sem violência física e sem violência simbólica contra ninguém, as crianças não sofrerão tanto como atualmente sofrem na maioria das escolas brasileiras e de muitos países. Também aprenderão a conviver em meio aos conflitos e às diferenças de opinião.

  Em um país multicultural como o Brasil, qual tipo de intolerância ainda sobrevive com força?

W.P.: Não tenho dúvida que de que as maiores formas de intolerância que existem em nosso país é a exclusão, a marginalização e a subestimação das capacidades dos negros e índios. Em uma palavra, a humilhação dos negros e índios é a mais evidente forma de intolerância, embora não seja a única. Em algumas escolas e bairros nem há violência física ou simbólica contra negros e índios, simplesmente porque eles não tem acesso a esses locais. A intolerância pode ser aberta, através de maus tratos e humilhações verbais, mas pode também ser dissimulada, através da impossibilidade efetiva de que os grupos discriminados frequentem os espaços dominados por aqueles que os discriminam. Muito obrigado.

Dom Hélder Câmara e a educação popular

Walter Praxedes*
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Antes de que um número considerável de sacerdotes e leigos católicos se engajassem na busca da “transformação do mundo” através dos trabalhos pastorais, como ocorreu a partir do final da década de 1950 no Brasil, foi preciso que no interior da Igreja, se consolidasse a idéia de que “a mensagem de Cristo incluía a criação de uma ordem social justa”, e por isso não deveria haver uma separação entre a fé cristã e a execução de uma “missão social” que apontasse para a superação ou alívio da miséria.

Para promover essa “missão social”, aos leigos caberia um papel apostólico muito mais ativo, incluindo até uma maior responsabilidade na eclesiologia católica, a fim de que pudessem atuar com desenvoltura onde faltassem sacerdotes em número suficiente.

O estudioso do catolicismo brasileiro Thomás Bruneau ressalta o papel fundamental desempenhado por Dom Hélder Câmara nessa nova forma de engajamento dos católicos no mundo. Ex-arcebispo de Olinda e Recife (1964-1985), fundador e primeiro secretário-geral da CNBB, entre 1952-1964, Dom Hélder Câmara, nasceu em 7 de fevereiro de 1909, em Fortaleza, e faleceu em 27 de agosto de 1999, em Recife. Conhecido mundialmente por sua atuação destemida e ao mesmo tempo serena em favor dos excluídos, coube a Dom Hélder desempenhar o papel de orientador dessas mudanças nas concepções e nas ações dos católicos. De acordo com as palavras de Thomás Bruneau:
“Antes da ação da Igreja na promoção da mudança social, houve a elaboração, por um grupo de bispos, de uma ideologia que justificava e urgia tal atividade. A formulação dessa ideologia resultou de um trabalho consciente de Dom Hélder, a força propulsora que anima o setor progressista da Igreja. Ele estava consciente de que qualquer instituição, incluindo a Igreja, deve ter líderes que esbocem as linhas mestras e estabeleçam objetivos. Era ele um desses líderes, cercado de um grupo de uns dez outros bispos, duas ou três vintenas de padres, e mais ou menos o mesmo número de leigos jovens e ativos”.

Como explicitaria melhor nos encontros dos Prelados da Amazônia e do Vale do São Francisco de 1952, muito longe de propor o caminho da revolução social como solução para os problemas do país, Dom Hélder defendia nos anos cinquenta, a colaboração entre a Igreja, os sindicatos rurais e o Estado para a promoção de reformas sociais de base.

Em 1956 e em 1959, por exemplo, Dom Hélder organizou as históricas Conferências dos Bispos do Nordeste – a de Campina Grande, Paraíba, e a de Natal, Rio Grande do Norte. Na preparação desses encontros, além de contar com o importante apoio de Dom José Távora, Dom Expedito Lopes, Dom Manuel Pereira da Costa e Dom Eugênio Sales, Dom Hélder colocou vários técnicos leigos que o assessoravam na CNBB em contato com técnicos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), designados pelo governo para realizar estudos que subsidiassem as discussões dos bispos.

Nos dois encontros, o próprio presidente Juscelino Kubitschek esteve presente para celebrar com Dom Hélder um verdadeiro pacto de colaboração entre o Estado e a Igreja. Comprometeu-se a implementar medidas como a liberação de verbas para obras de infraestrutura, a realização de projetos habitacionais, fomento à agroindústria, construção de hidrelétricas e modernização do porto de Recife, entre outras, visando promover o desenvolvimento econômico e combater a miséria da região.

No final do encontro de Campina Grande, ocorrido entre 21 e 26 de maio de 1956, foi divulgado um comunicado onde já aparece consolidada a idéia de que a Igreja deva se envolver nas questões terrenas:
“A ninguém cause estranheza ver-nos envolvidos com problemas de ordem material. Para o homem, unidade substancial de corpo e alma, a inter-relação entre questões materiais e questões espirituais é constante”.

Mas, para mais espanto dos conservadores de dentro e fora da instituição católica, os bispos ainda declararam a Igreja “sem nenhuma vinculação com as situações injustas” e se colocaram “ao lado dos injustiçados, para cooperar com eles numa tarefa de recuperação e redenção”.

No II Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Natal, no discurso proferido em 24 de maio de 1959, o Presidente Juscelino manifestaria o seu apoio aos bispos brasileiros e às suas metas de modernização do Nordeste:
“Essa iniciativa do Governo Federal é devida, forçoso é proclamar, à inspiração caridosa da Igreja e ao desejo enérgico de salvar da miséria tantos valores patrícios nossos, manifestado pelos pastores espirituais do Nordeste, desde o primeiro encontro de Campina Grande”.

A condição de representante do episcopado brasileiro na época, levou Dom Hélder a apoiar o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à CNBB e financiado pelo Governo Federal, e que se constituiu como uma iniciativa inédita dos católicos no campo da educação popular.

Inspirado na experiência das Escolas Radiofônicas de Sutatenza, cidade colombiana, criadas pelo padre José Joaquim Salcedo, o bispo-auxiliar de Natal Dom Eugênio Sales, com o apoio da Ação Católica Brasileira, criou a Emissora de Educação Rural de Natal para promover a educação dos trabalhadores rurais. Essa experiência foi bem sucedida e se estendeu para várias cidades nordestinas.

A partir de Natal, Dom Eugênio Sales passou a dirigir o Secretariado de Ação Social da CNBB e, com a assessoria de Marina Bandeira que trabalhava no Palácio São Joaquim, no Rio de Janeiro, articulou a atuação das emissoras de rádio católicas para que promovessem o desenvolvimento do trabalho de educação de base.

Logo depois, segundo Marina Bandeira, “Dom Távora, já então bispo de Aracaju, propôs a criação de um novo organismo, que se ocuparia em toda a extensão de educação popular. Teve o pleno apoio do presidente Jânio Quadros, que viu esse trabalho funcionando no interior de Sergipe e se propôs ajudar. Criou-se então o MEB, Movimento de Educação de Base, entidade patrocinada pela CNBB (inicialmente até o nome era Movimento de Educação de Base da CNBB), com verbas do Ministério da Educação, segundo convênio assinado com Jânio”.

Dom Helder foi com Dom Távora até o Palácio da Alvorada, em Brasília, para conversar com o presidente Jânio Quadros sobre o projeto do MEB. Logo no início da conversa ficou claro “o entusiasmo de Jânio pela idéia”. Depois de receberem a confirmação de que contariam com o apoio do governo federal para o MEB, os dois bispos sairam “vibrando” do encontro.

O objetivo do MEB não era simplesmente alfabetizar o trabalhador rural, mas possibilitar uma educação integral que desenvolvesse a consciência política, social e religiosa dos participantes. Na formação dos educandos deveria ocorrer um processo de “conscientização” que começaria com a alfabetização dos adultos através da valorização do código oral e da cultura popular. Simultaneamente os participantes passariam a interpretar a sua condição de vida como resultado das injustiças existentes na estrutura da sociedade brasileira. O passo seguinte seria a luta pela transformação da sociedade através da ação comunitária dos trabalhadores: “Viver é Lutar”, sintetizava o título de uma cartilha do MEB, que trazia a proposta de aliar a alfabetização com a conscientização para a participação política, como pode ser lido em algumas de suas estrofes:

Seu José sabe que o povo
precisa se organizar,
que progresso, nesta vida,
sozinho não vai achar.
Reuniu seus companheiros,
p’ra um sindicato fundar.
Um sindicato decente
mostra o caminho da gente,
p’ra justiça procurar.

‘Lutemos unidos todos,
sem temor e sem vaidades;
pois unidos venceremos
as nossas dificuldades.
Unidos tudo podemos,
unidos seremos fortes;
a mão de Deus ajudando,
garanto, seremos fortes’.
Mutirão – segundo caderno de leitura
do Movimento de Educação de Base.

Como escreveu o professor Luís Eduardo Wanderley, que participou ativamente do MEB, foi a partir de iniciativas como essa que se redefiniu “a atuação prática dos cristãos na sociedade brasileira… Os leigos assumiram novas tarefas, trouxeram reflexões teóricas e teológicas para o interior da Igreja no Brasil e introduziram a questão política de uma maneira aguda, que iria se reascender nos anos pós-1970.”

A contribuição de Dom Hélder Câmara para o surgimento e a estruturação do Movimento de Educação de Base aparece bem ressaltada no relatório confidencial elaborado para subsidiar a decisão do Comitê Nobel do Parlamento da Noruega, que avaliou a possibilidade de conceder ao ex-arcebispo de Olinda e Recife o Prêmio Nobel da Paz, para o qual foi indicado entre os anos 1970 e 1974. Segundo o relatório elaborado por Jacob Sverdrup, professor de filologia da Universidade de Oslo, na Noruega:

“Deve-se mencionar o grande programa de educação de adultos, onde Hélder Câmara figura como protagonista. A elaboração do programa demonstra bem a filosofia de Câmara. O ensino era apenas um meio para tornar os alunos membros cientes e ativos da sociedade. Esse despertar social foi guiado num certo sentido – para libertar o povo das forças que o oprimiam. Através do ensino, o povo deveria ser ativado para um processo de desenvolvimento social”.

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Referências

BRUNEAU, Thomás. Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo, Loyola, 1974.
PILETTI, Nelson e PRAXEDES, Walter. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia. São Paulo, Ática, 1997.
PRAXEDES, Walter. Dom Hélder Câmara e a educação popular no Brasil. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 1997. Dissertação de mestrado.
SVERDRUP, Jacob. “Relatório sobre Dom Hélder Câmara”. Prêmio Nobel da Paz, 1970. Oslo, Grondahi e filho impressor, 1970.
WANDERLEY, Luiz Eduardo. Educar para transformar. Petrópolis, Vozes, 1984.
* Walter Praxedes é doutor em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e professor de sociologia da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

A diversidade humana na escola: reconhecimento, multiculturalismo e tolerância

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Walter Praxedes

A formação das identidades depende dos processos de socialização e de ensino e aprendizagem que ocorrem de acordo com as características físicas, cognitivas, afetivas, sexuais, culturais e étnicas dos envolvidos nos processos educativos.

O desenvolvimento da identidade do ser humano, como nos ensina Habermas (1983), pode ser analisado como um processo de aprendizagem:
a) Lingüística: para a comunicação;
b) Cognitiva: para a busca dos conhecimentos necessários para a vida em sociedade;
c) Interativa: para a ação e a interação com o outro.
De uma perspectiva geral, todos os processos educativos devem levar ao desenvolvimento desses três conjuntos de competências.

A educação é o resultado de relações sociais que podem capacitar aqueles que participam do processo educativo para: a) a sobrevivência nas sociedades contemporâneas;b) a busca da superação da ordem social existente;c) os objetivos a) e b); d) nenhum dos dois objetivos.

Cabe aos participantes dos processos educativos a decisão sobre a ênfase que será adotada. A educação é também um processo social do qual participamos enquanto realizamos uma opção entre diferentes valores e objetivos a serem alcançados.

Uma educação democrática é aquela em que todos os envolvidos podem participar na definição dos rumos da educação, e não só os dirigentes, professores, acadêmicos e técnicos.

A escola é um espaço público para a convivência fora da vida privada, íntima, familiar. Ao nos capacitarmos para a convivência participativa na escola, participamos de um processo de aprendizagem que também nos ensina como participar do restante da vida social.

A escola como esfera pública democrática pode possibilitar a capacitação de pais, alunos e educadores para a participação na busca de soluções para os problemas da escola, do bairro, da cidade, do Estado, do País e da vida da espécie humana no Planeta.

A democracia é um processo de negociação permanente dos conflitos de interesses e idéias. Para haver essa negociação permanente é preciso o respeito à diferença. Uma escola que respeita a diferença é uma escola pluralista que ensina a viver em uma sociedade que também é heterogênea.

Para tanto, todos devem ter o direito de falar, opinar e participar nos processos decisórios. É participando que se aprende a participar. Uma escola “perfeita”, na qual ninguém precisa dar nenhuma opinião, é um desastre educativo. O problema é que o controle e a disciplina, a idéia de ordem, organização e limpeza muitas vezes se tornam prioritários em relação ao direito de participação.

Um ponto de partida para que exista o respeito à diversidade na escola é aceitarmos que os agentes que interagem na escola têm interesses, visões de mundo e culturas diferentes e nenhum de nós tem o monopólio da verdade, da inteligência e da beleza. Daí a necessidade de negociações permanentes para que todos façam concessões, e todos tenham ao menos parte dos seus interesses e valores contemplados no espaço público da escola.

RECONHECIMENTO

Ao tratar da diversidade humana na escola podemos ter como parâmetro a necessidade de reconhecimento que caracteriza os seres humanos.

Para interpretarmos quem somos como coletividade, ou quem sou como indivíduo, dependemos do reconhecimento que nos é dado pelos outros. “Ninguém pode edificar a sua própria identidade independentemente das identificações que os outros fazem dele”, nos ensina Habermas (1983: 22).

O reconhecimento pelos outros é uma necessidade humana, já que o ser humano é um ser que só existe através da vida social.

Como também nos ensina Charles Taylor (1994: 58), “um indivíduo ou um grupo de pessoas podem sofrer um verdadeiro dano, uma autêntica deformação se a gente ou a sociedade que os rodeiam lhes mostram como reflexo, uma imagem limitada, degradante, depreciada sobre ele.”

Um falso reconhecimento é uma forma de opressão. A imagem que construímos muitas vezes sobre os portadores de deficiências e grupos subalternos, pobres, negros, prostitutas, homossexuais, é deprimente e humilhante para estes e causa-lhes sofrimento e humilhação, ainda mais por que tais representações depreciativas são construídas quase sempre para a legitimação da exclusão social e política dos grupos discriminados.

Para que haja respeito à diversidade na escola é necessário que todos sejam reconhecidos como iguais em dignidade e em direito. Mas para não nos restringirmos a uma concepção liberal de reconhecimento, devemos também questionar os mecanismos sociais, como a propriedade, e os mecanismos políticos, como a concentração do poder, que hierarquizam os indivíduos diferentes em superiores e dominantes, e em inferiores e subalternos.

Em outras palavras, ao considerarmos que os seres humanos dependem do reconhecimento que lhes é dado, estamos reconhecendo que a identidade do ser humano não é inata ou pré-determinada, e isso nos torna mais críticos e reflexivos sobre a maneira como estamos contribuindo para a formação das identidades dos nossos alunos.

Como ainda nos ensina Taylor (1994: 58), “a projeção sobre o outro de uma imagem inferior ou humilhante pode deformar e oprimir até o ponto em que essa imagem seja internalizada”. E não “dar um reconhecimento igualitário a alguém pode ser uma forma de opressão”.

Porém, quando afirmamos que “todos os seres humanos são igualmente dignos de respeito” (Taylor, 1994: 65), isso não pode significar que devemos deixar de considerar as inúmeras formas de diferenciação que existem entre os indivíduos e grupos.

Devemos fornecer o apoio e os recursos necessários para que não haja assimetria, desigualdade nas oportunidades e no acesso aos recursos. De novo Taylor (1994: 64): “Para aqueles que têm desvantagens ou mais necessidades é necessário que sejam destinados maiores recursos ou direitos do que para os demais”.

MULTICULTURALISMOS E TOLERÂNCIA

As sociedades contemporâneas são heterogêneas, compostas por diferentes grupos humanos, interesses contrapostos, classes e identidades culturais em conflito. Vivemos em sociedades nas quais os diferentes estão quase que permanentemente em contato. Os diferentes são obrigados ao encontro e à convivência. E são assim também as escolas.

As idéias multiculturalistas discutem como podemos entender e até resolver os problemas gerados pela heterogeneidade cultural, política, religiosa, étnica, racial, comportamental, econômica, já que teremos que conviver de alguma maneira.

Stuart Hall (2003) identifica pelo menos seis concepções diferentes de multiculturalismo na atualidade:
1. Multiculturalismo conservador: os dominantes buscam assimilar as minorias diferentes às tradições e costumes da maioria;
2. Multiculturalismo liberal: os diferentes devem ser integrados como iguais na sociedade dominante. A cidadania deve ser universal e igualitária, mas no domínio privado os diferentes podem adotar suas práticas culturais específicas;
3. Multiculturalismo pluralista: os diferentes grupos devem viver separadamente, dentro de uma ordem política federativa;
4. Multiculturalismo comercial: a diferença entre os indivíduos e grupos deve ser resolvida nas relações de mercado e no consumo privado, sem que sejam questionadas as desigualdade de poder e riqueza;
5. Multiculturalismo corporativo (público ou privado): a diferença deve ser administrada, de modo a que os interesses culturais e econômicos das minorias subalternas não incomodem os interesses dos dominantes;
6. Multiculturalismo crítico: questiona a origem das diferenças, criticando a exclusão social, a exclusão política, as formas de privilégio e de hierarquia existentes nas sociedades contemporâneas. Apóia os movimentos de resistência e de rebelião dos dominados.

Os multiculturalismos nos ensinam que reconhecer a diferença é reconhecer que existem indivíduos e grupos que são diferentes entre si, mas que possuem direitos correlatos, e que a convivência em uma sociedade democrática depende da aceitação da idéia de compormos uma totalidade social heterogênea na qual:
a) não poderá ocorrer a exclusão de nenhum elemento da totalidade;
b) os conflitos de interesse e de valores deverão ser negociados pacificamente;
c) a diferença deverá ser respeitada.

A política do reconhecimento e as várias concepções de multiculturalismo nos ensinam, enfim, que é necessário que seja admitida a diferença na relação com o outro. Isto quer dizer tolerar e conviver com aquele que não é como eu sou e não vive como eu vivo, e o seu modo de ser não pode significar que o outro deva ter menos oportunidades, menos atenção e recursos.

A democracia é uma forma de viver em negociação permanente tendo como parâmetro a necessidade de convivência entre os diferentes, ou seja, a tolerância. Mas para valorizar a tolerância entre os diferentes temos que reconhecer também o que nos une.

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Referências:
HABERMAS, Jurgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo, Brasiliense, 1983.
HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003.
TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la politica del reconocimiento. Mexico, Fondo de Cultura Econômica, 1994.

O olhar pedagógico de José Saramago

Walter Praxedes

O posicionamento assumido por José Saramago, no que diz respeito à intencionalidade do escritor e seu reflexo na obra literária, pode ser esclarecido pela concepção de engajamento do Sartre dos anos 40:

“…ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento. É legítimo, pois, propor-lhe esta segunda questão: que aspecto do mundo você quer desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento? O escritor ´engajado´ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar (SARTRE, 1993: 20).

Esta busca do desvelamento de fatos e relações é o que constitui o essencial da postura do escritor-cidadão José Saramago e do seu “olhar pedagógico”, que quer ver, desvendar e ensinar a ver através da comunicação intersubjetiva com os leitores. Como escreveu Proust “uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo” (citado por MORIN, 2000: 107).
O olhar e o desvendamento são dois aspectos que se complementam no ideário estético do educador Saramago. E é Sartre quem oferece um parâmetro para interpretarmos o “projeto” pedagógico implícito na expressão literária de José Saramago:

“…podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade… a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele.” (SARTRE, 1993: 21)

Da leitura dos escritos e das inúmeras entrevistas concedidas por Saramago, infere-se que o escritor avalia que as representações elaboradas pelos seres humanos sobre as suas relações sociais podem tolerar um cotidiano onde se reproduzem as situações de opressão e de exploração. Sua obra, portanto, se constituirá em uma pesquisa sobre a realidade material da sociedade e sobre o poder das representações elaboradas pelos seus membros. Qual o limite desse poder? O que dissimulam e escondem? Como resistir às representações que fascinam ou que estão impregnadas nos nossos valores? Como discernir as representações que permitem a busca do possível das representações que bloqueiam essa busca? Seu olhar pretenderá perceber aquilo que os outros podem estar vendo, mas não estão enxergando, e sua escrita revelará sua intenção pedagógica. O seu olhar artístico consegue atravessar essas representações, e através da escrita ele evidenciará o seu conteúdo anti-humano, para que os homens tomem posição para superá-las, pois, na sua concepção, o escritor deve ter o compromisso de intervir na sociedade, e já que trabalha no universo da produção simbólica, deve utilizar sua paciência, seu talento e disponibilidade para contribuir para a “reorganização axiológica” das civilizações contemporâneas. Sua prosa, portanto, chega a ser utilitária, e, para alcançar seus objetivos, o escritor utiliza-se de inúmeros recursos expressivos:

“designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua” (SARTRE, 1993: 18).

A noção de “olhar”, esclarecida por Alfredo Bosi (1999: 10), expressa “a visão do autor, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, … o foco narrativo”. No entendimento de Bosi olhar tem sobre a noção de ponto de vista a “vantagem de ser móvel”…, ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ao mesmo tempo cognitivo, e ao mesmo tempo passional:

“Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento” (BOSI, 1999: 10). Ainda, segundo Bosi, os “…valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do romancista, e esta pode ora coincidir com a ideologia dominante no seu meio, ora afastar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro” (BOSI, 1999: 12).

Em um outro trabalho, ao explicar as vertentes do pensamento antigo sobre o olhar, Bosi nos ensina que

“…o olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar” (BOSI, 1988: 66).

Saramago frequentemente recorre à noção de olhar e suas inúmeras possibilidades para construir raciocínios reflexivos, metafóricos e alegóricos. No romance Jangada de pedra a percepção do olhar é relativa ao observador, é assim que a personagem Pedro Orce o concebe ao imaginar em uma pedra as formas de uma embarcação, afinal

“… cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão” (JP: 207).

No Memorial do convento, na interpretação das professoras Isabel Vaz e Maria do Carmo Castelo-Branco (LEÃO e CASTELO-BRANCO, 1999: 114),”… ver é signo exegético de toda a obra, talvez, metaforicamente, configurado na personagem Blimunda, mas funcionando como apelo a uma visão outra, que é a do homem que tem como missão decifrar os enigmas do passado para, e através deles, superar os que o presente lhe impõe. Ver é, assim, opinar, teorizar, discutir para, enfim, argumentando, ajuizar e passar o testemunho, tal como o faz Blimunda quando vê arder o “seu homem” na fogueira e lhe diz: “Vem” (p. 359), assegurando, deste modo, o projeto de continuidade”. Os olhos de Blimunda, descritos pelo narrador como “…claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra…” (MC: 53), têm a capacidade de enxergar além das aparências, ver por dentro o conteúdo, a substância interior da matéria e dos corpos.

No romance História do cerco de Lisboa, Saramago volta a discorrer sobre as nuanças e sutilezas do olhar:

“Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incômodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida…” (HCL: 166)

Ao mencionarmos um olhar saramaguiano, em síntese, estamos tratando de representações que aparecem na narrativa, tanto através das vozes das personagens, quanto nas digressões do narrador. Horácio Costa incorpora e assim sintetiza a importância do olhar na obra de José Saramago:

“Todo o esforço crítico se vincula à visão; qualquer objecto, para ser analisado com propriedade, deve antes ser visto. Trazer à luz da razão crítica, tornar visível – ou mais visível, se for o caso – algo oculto ou semioculto, ou previamente empanado por outros corpos ou circunstâncias invisibilizadoras é algo indissolúvel do impulso que leva à interpretação, à análise.” (COSTA, 1997: 362)

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo (1999). Machado de Assis – O enigma do olhar. São Paulo, Editor Ática, pp. 229.
____ (1988). Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, Adauto (Organizador) (1988). O Olhar. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 65-87.
COSTA, Horácio (1997). José Saramago – O período formativo. Lisboa, Editorial Caminho, 389 p.
MORIN, Edgar (2000). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 128 p.
LEÃO, Isabel Vaz Ponce de & CASTELO-BRANCO, Maria do Carmo (1999). Os círculos da leitura (em torno do romance de Saramago, Memorial do Convento). Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 121 p.
SARAMAGO, JOSÉ (1997). Memorial do convento . Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 352 p. (MC)
______ (1998). O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo, Cia. das Letras, 415 p. (AMRR)
______ (1999). A jangada de pedra. Rio de Janeiro, Record, 317 p. (JP)
SARTRE, Jean-Paul (1993). Que é a literatura. São Paulo, Ática, 2ª edição, 231p.