São Francisco de Assis e Dom Helder Camara

Walter Praxedes

A figura de São Francisco de Assis há mais de oito séculos vem cativando a admiração e o respeito não apenas entre os católicos, mas também em artistas, cineastas, escritores, acadêmicos e até fiéis de outras confissões religiosas.

Essa reverência a Francisco também parece crescer na medida em que se tornam praticamente inacessíveis as fontes com informações seguras sobre a vida, os pensamentos e as ações do santo que nasceu em Assis (Itália) em 1181 ou 1182 com o nome de Giovanni Bernardone, e faleceu em Porciúncula, em 1226, um ano depois de compor o seu famoso Cântico do irmão sol, sendo canonizado pelo Papa Gregório IX apenas dois anos depois da sua morte.

Mas como enfatizou o historiador Jacques Le Goff, toda a trajetória de Francisco passou por inúmeras revisões por parte dos seus seguidores, membros da Ordem religiosa que fundou e da própria Santa Sé católica, recebendo versões mais rigorosas, no sentido da observância aos votos de pobreza e simplicidade, ou mais espiritualistas, a depender dos pontos de vistas e até interesses dos revisores, a tal ponto que a historiografia franciscana pode ser dividida em duas tendências:

“De um lado, os rigoristas, que exigiam dos Frades Menores, a prática de uma pobreza total, coletiva e individual, a recusa a todo o aparato na liturgia dos ofícios da Ordem, assim nas igrejas e nos conventos, e a guardar distância da Cúria romana, suspeita de pactuar muito facilmente com o século. De outro lado os moderados, convencidos da necessidade de adaptar o ideal da pobreza à evolução de uma Ordem de frades cada vez mais numerosa, de não repelir, por uma recusa a toda a influência exterior, as multidões sempre mais densas que se voltavam para os Frades Menores, e da necessidade de ver na Santa Sé a fonte autêntica da verdade e da autoridade numa Igreja de que a Ordem era uma parte integrante. Onde situar o verdadeiro Francisco?” (Le Goff, 2001, p. 48-49).

Talvez a melhor resposta para a pergunta apresentada pelo historiador – Onde situar o verdadeiro Francisco? –  não seja nem a procura obsessiva por fontes que atestem o modo de vida e o pensamento do Francisco histórico, e nem uma tentativa de desconstrução do mito franciscano, mas a adoção da forma de interpretação figural de São Francisco proposta pelo crítico literário Erich Auerbach, interpretação esta que poderia prevalecer mesmo se contássemos com o acesso às fontes fidedignas sobre a vida do santo de Assis, uma vez que adotamos o modo de representar um acontecimento do passado como prenúncio de acontecimentos posteriores, considerando o fato anterior como anunciador e precursor de um acontecimento que ocorreu depois, ou este como realização e preenchimento de uma figura que o anunciava no passado.

O conceito de figura proposto por Auerbach é uma forma de interpretação tipológica da história e da realidade que dominou a Idade Média europeia e que chegou até o presente através do cristianismo, “que estabelece uma relação entre dois acontecimentos, ambos históricos, na qual um deles se torna significativo não apenas em si mesmo mas também para o outro, que, por sua vez, enfatiza e completa o primeiro. Nos exemplos clássicos, o segundo é sempre a encarnação de Cristo e dos acontecimentos ligados à encarnação que levaram à libertação e ao renascimento do homem…” (Auerbach, 1997, p. 79). Assim, a vida de São Francisco é considerada como uma imitação da vida humilde de Cristo. E foi assim que “nenhum outro estilo de vida, voz ou comportamento” da Idade Média teve tanta repercussão ao longo da história como a representação construída e difundida sobre a vida de São Francisco.  “Sua personalidade sobressai em virtude de seus muitos contrastes. Sua piedade, ao mesmo tempo solitária e popular, seu caráter, ao mesmo tempo doce e austero, e seu comportamento, ao mesmo tempo humilde e áspero, tornaram-se inesquecíveis” (Auerbach, 1997, p. 65).

É precisamente esta figura de Francisco de Assis que inspirou o romancista grego Nikos Kazantzakis a reescrever a sua biografia no livro O pobre de Deus. Adotando como foco narrativo do ponto de vista de Frei Leão, o mais próximo seguidor de Francisco, Kazantzakis narra como o futuro santo buscava a coerência com a vida de Cristo, mesmo em meio aos maiores sofrimentos, provações e angústias.

Também José Saramago não resistiu à figura de Francisco quando escreveu a peça A segunda vida de Francisco de Assis, enfatizando como a prática de muitos de seus continuadores e da própria Ordem que fundou adotaram práticas que seriam inaceitáveis aos olhos do santo. Adotando a figura da reencarnação de Francisco, Saramago discute na peça como seria constrangedor para o santo presenciar as ações temporais de sua Ordem.

Essa ideia de Saramago nos inspira a pensar como São Francisco se sentiria infeliz e frustrado vendo como a sua Ordem se tornou uma grande proprietária de escravos na época do Brasil colonial. Mas só podemos ter esse raciocínio comparativo sobre a prática da Ordem Franciscana no Brasil em relação à pregação da humildade, da pobreza, da igualdade e da dignidade humana por São Francisco, porque temos como parâmetro a sua figura exemplar.

No livro que o meu querido professor e amigo Nelson Piletti e eu escrevemos sobre a vida do inesquecível Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara: o profeta da paz, dedicamos um capítulo para tratar da identificação de Dom Helder com a figura de São Francisco. (Piletti; Praxedes, 2008, p. 123-130)

Para Dom Helder viver segundo o Evangelho significava encarnar a origem popular do cristianismo, que tornava a ética da humildade e o estilo de vida simples e despojado, em elementos importantes do ideal de santidade cristã que incorporara desde jovem. Por isso a figura de São Francisco, com o seu casamento com a pobreza, é aceita por Helder como guia para a vida terrena que antecipa a vida celestial. O Francisco de Assis representava, assim, a encarnação da plenitude que conduziria à presença de Cristo.

Inspirado em São Francisco de Assis, Dom Helder concebe para si a missão de profetizar o retorno a uma Igreja Servidora e Pobre, de acordo com os princípios que orientaram o famoso “Pacto das Catacumbas”, no qual participa da celebração com um grupo de padres e bispos no final do Concilio Vaticano II, na Igreja de Santa Domitila, em 16 de novembro de 1965.

A presença de São Francisco no mundo foi um acontecimento histórico interpretado pelos seus seguidores e por Dom Helder como prenuncio de outros acontecimentos históricos concretos. Por isso, em seu apostolado ele buscava colocar em pratica os ensinamentos de Francisco, encarnando a verdade anunciada pelo santo de Assis.

Considerando Francisco como um precursor, encarnando-o em sua vida através de sua palavra e da sua ação, Dom Helder se legitimava dentro e fora da instituição católica para trabalhar em defesa dos pobres. Da perspectiva de muitos dos seus colaboradores, dos fiéis católicos e dos admiradores de todas as religiões espalhados pelo Brasil e pelo mundo Dom Helder preenche a demanda que muitas vezes sentimos por uma força messiânica, que encarne na vida real a figura de um líder religioso e até político com uma espiritualidade profunda e com um senso de realidade histórica para anunciar que um novo mundo é possível, inspirando e mobilizando muitos que estão insatisfeitos com o mundo existente.

Referências

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo, Ática, 1997.

KAZANTZAKIS, Nikos. O pobre de Deus. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro, Record, 2001.

PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara – o profeta da paz. São Paulo, Contexto, 2008.

SARAMAGO, José. “A segunda vida de Francisco de Assis”. In: Que farei com este livro?. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

Serenidade em favor dos excluídos (Entrevista ao jornalista Dalwton Moura)

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diario do nordeste

Fortaleza/CE. Suplemento Especial: “Os Pacifistas”, 10.09.2006

Entrevista ao jornalista Dalwton Moura*

O Diário do Nordeste publica neste domingo, Dia Municipal da Paz, uma edição especial da série “Os Pacifistas”. Desta vez o enfocado é dom Hélder Câmara, o primeiro cearense a estar entre os escolhidos na coleção.

Arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder foi uma voz altiva e ativa em defesa dos excluídos, principalmente durante a ditadura militar, de 1964 a 1985.

No caderno, que estará encartado gratuitamente no jornal, os leitores poderão conhecer mais detalhadamente sua história, bem como uma entrevista exclusiva com o co-autor do livro “Dom Hélder Câmara – Entre o Poder e a Profecia”, Walter Praxedes.
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O escritor denuncia o complô do governo brasileiro, tendo como presidente Emilio Garrastazu Médici, para evitar que o religioso fosse indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Como surgiu o projeto de um livro sobre a vida de Dom Hélder Câmara?

A idéia do livro surgiu de um projeto de dissertação de mestrado, que foi concluída e aprovada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na qual busquei pesquisar a trajetória de Dom Hélder Câmara como um sacerdote envolvido com a área educacional do Ceará e do Brasil, e sua influência sobre a participação dos católicos, sacerdotes e leigos, em projetos voltados para a educação dos mais pobres. O meu orientador foi o historiador Nelson Piletti. Como tivemos acesso a fontes inéditas de pesquisa decidimos juntos ampliar  o projeto para a elaboração de uma biografia de Dom Hélder, que contextualizasse a sua trajetória religiosa e política na história da Igreja católica e da sociedade brasileira, mas que não descuidasse de sua vida pessoal e familiar, para não reduzirmos o ser humano Hélder Câmara à personagem conhecida publicamente. Desde os anos sessenta, o Nelson, que foi seminarista, tinha uma verdadeira adoração pela figura de Dom Hélder. Como nasci em 1965, só conheci a trajetória de Dom Hélder nos anos oitenta. Como fiquei fascinado por sua obra, tentei realizar um trabalho científico de recuperação da memória de sua vida para as gerações futuras. No final também me envolvi emocionalmente com o trabalho de resgate histórico da vida de Dom Hélder, que se tornou o trabalho intelectual mais gratificante que realizei na minha vida.

O livro “Entre o Poder e a Profecia” surpreendeu ao revelar o início de militância de Dom Hélder entre os integralistas, nos anos 30. Como se deu essa aproximação?

Para começar, gostaria de esclarecer a escolha do título do livro, “Dom Hélder Câmara – entre o poder e a profecia”, que só apareceu no final do trabalho, quando já tínhamos uma idéia de conjunto sobre a trajetória religiosa e política de Dom Hélder. Quem ler o livro vai perceber que durante toda a sua vida de sacerdote, Hélder Câmara manifestou uma vocação para o profetismo. Mas o profetismo é fundamentalmente a atitude de um indivíduo independente que quer propagar uma verdade que acredita revelada por Deus, para ajudar na salvação dos fiéis e na melhoria de sua condição de vida. A profecia deve ser realizada de  forma independente, sem apoio de qualquer instituição religiosa ou estatal, como fizeram os profetas do Antigo Testamento. No entanto, quer como seminarista, quer como jovem padre ou como bispo,  Hélder Câmara jamais optou pela profecia de forma incondicional e independente, sempre evitou desobedecer aos seus superiores na hierarquia da Igreja, o poder eclesiástico, e boa parte de sua vida ele manteve uma forte atitude de colaboração com os governos e com os donos do poder econômico. Em resumo, no nosso ponto de vista, Dom Hélder viveu sempre no meio caminho entre o poder e a profecia, jamais optando incondicionalmente por um ou por outro destes pólos. Mas esta é uma interpretação sociológica e política de sua trajetória. Reconheço que a dimensão espiritual e religiosa não está contemplada nesta interpretação. Quando era jovem Hélder Câmara teve uma formação doutrinária muito conservadora, anticomunista, antiliberal, antidemocrática. Nos anos trinta muitos jovens talentosos e honestos acreditavam que o caminho para solucionar os problemas do país passava por um regime de governo totalitário, como o de Mussolini, na Itália. Entre estes estavam os amigos mais próximos do jovem Hélder e ele próprio. Por isso ele optou pela militância política fascista, que no Brasil era representada pela Ação Integralista Brasileira (AIB), comandada por Plínio Salgado, de quem Hélder se tornou amigo.

E de que modo o jovem hélder foi se afastando dos ideais integralistas, em busca da direção mais humanista que acabaria por consagrá-lo?

Foi um longo e demorado percurso de conversão para as idéias democráticas e humanistas. O radicalismo fascista dos integralistas tornou-os inconvenientes até para um regime ditatorial como o de Getúlio Vargas que colocou a AIB na ilegalidade. A Igreja Católica tinha um pacto informal de colaboração com o Governo de Vargas e isso fez com que o Cardeal Sebastião Leme, do Rio de Janeiro,  na época a maior autoridade eclesiástica no país, ordenasse que o jovem Padre hélder Câmara deveria se afastar da Ação Integralista Brasileira. Mas houve também uma influência intelectual muito importante sobre o padre Hélder que foi a leitura da obra Humanismo Integral de Jacques Maritain, e a convivência com Alceu Amoroso Lima, no Rio de Janeiro, que também passava por uma transição intelectual para um pensamento democrático.

De que modo a formação clerical de Dom hélder o influenciou, de que modo a própria Igreja foi influenciada por ele?

A formação católica conservadora e autoritária que Hélder recebeu no Seminário da Prainha, em Fortaleza, o influenciou profundamente até o fim dos anos trinta, quando então ele começa a desenvolver concepções baseadas na tolerância e na convivência democrática. Mas até meados dos anos quarenta o padre Hélder ainda não havia se tornado um sacerdote com propostas inovadoras e divergentes em relação às idéias da cúpula conservadora da Igreja. Foi a partir do seu envolvimento nos movimentos de Ação Católica que ele teve que enfrentar questões políticas e organizacionais práticas, que envolviam credenciar a Igreja católica para manter e ampliar a sua influência em um país que estava se urbanizando rapidamente, com grandes movimentos migratórios do campo para as cidades, que estava se industrializando, e que após o fim da ditadura de Getúlio Vargas em 1945, estava também democratizando a sua vida política, com uma influência crescente dos movimentos sociais no campo e na cidade e do Partido Comunista. No campo religioso a Igreja católica começava a se deparar com a expansão das denominações protestantes. Então o Padre Hélder Câmara propôs e organizou uma vigorosa participação do laicato católico na vida política do país, através dos Movimentos de Ação Católica, particularmente os voltados para a juventude, e agregou os bispos brasileiros na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que ele funda e comanda como Secretário Geral até 1964, e que viria a se tornar a instituição que mais influência teve sobre a atualização da inserção política e social da Igreja católica no Brasil nos últimos 50 anos. Só até este momento da fundação da CNBB, em 1952, já bastaria para que fosse marcante a sua influência sobre o catolicismo e a sociedade brasileira. Mas ele ainda conseguiu difundir entre os católicos a idéia de uma missão temporal, de  responsabilidade de todos com o cuidado com as condições de vida, com a integridade dos mais pobres, ao invés da preocupação exclusiva com a salvação da alma dos fiéis, que caracterizava o ideário católico até então. Mas Dom Hélder na década de 1950 ainda estava só começando… O melhor de sua atuação ainda estava por vir nos seus anos de maturidade.

O papel de Dom Hélder na resistência às agruras do regime militar e na denúncia das arbitrariedades do regime é sempre ressaltado. Por que o nome de Dom Hélder foi especialmente associado a essa luta?

Porque ele era uma autoridade eclesiástica institucional, como arcebispo e exercia uma autoridade carismática como pessoa. Na década de 1960 ele era reconhecido na prática como a principal liderança política da Igreja Católica no Brasil, mesmo sem ser Cardeal, por pessoas de dentro e de fora da Igreja, pelos movimentos sociais de oposição, pelos militares que comandavam o governo e pelas elites econômicas. Desde o Concílio Vaticano II ele conquistou uma projeção na Igreja Católica internacional, entre sacerdotes, teólogos e leigos. Mesmo com toda a responsabilidade e até o cerceamento de sua liberdade para manifestar livremente suas opiniões que este reconhecimento público implicava, ele teve a coragem de dizer “não” aos poderosos, em denunciar publicamente que o Regime Militar promovia torturas e o extermínio físico de membros da oposição ao governo. Sua atuação foi de fato heróica e destemida, um exemplo extraordinário de um homem indignado com as circunstâncias em que viviam os seus semelhantes em nosso pais.

Que conseqüências essa atitude custou a Dom Hélder, dentro e fora da comunidade religiosa?

Em primeiro lugar ele se tornou esta figura emblemática inesquecível pelo seu exemplo de vida. Publicamos a sua biografia em agosto de 1997 e desde então, em nove anos de história deste livro, nunca houve um mês sequer que o livro deixou de ser procurado nas livrarias até ficar com a sua edição esgotada na editora nesse último mês de julho. A cineasta Erika Bauer declarou que após ler a biografia que escrevemos resolveu fazer esse documentário maravilhoso que atualmente está em cartaz sobre Dom Hélder. Freqüentemente recebo mensagens solicitando informações sobre como pesquisar a trajetória de Dom Hélder. Inúmeros outros pesquisadores escreveram estudos, ensaios, artigos científicos e o interesse pela sua obra é crescente entre pesquisadores dentro e fora do país.

O silenciamento que Dom Hélder sofreu por anos, por parte do Regime Militar brasileiro, que promoveu a censura aos meios de comunicação; o fato dele ter sido preterido várias vezes para ganhar o Prêmio Nobel da Paz e até mesmo o silenciamento que o Vaticano impôs, restringindo suas viagens internacionais e suas manifestações públicas,  considero que são secundários diante da grandeza de sua obra e do seu legado. Ele não deixou de fazer o que acreditava que fosse a sua missão enquanto teve condições para isso. Avalio que mesmo que tivesse sido mais difundida a sua influência religiosa e política no Brasil, as forças conservadoras que comandavam o governo no país e a reação conservadora que se deu no Pontificado de João Paulo II não teriam sido menos perniciosas para a vida social, política e religiosa. Então ele fez o que pode e não fez mais porque as circunstâncias em que vivemos também restringem as influências das nossas ações. A despeito de tudo isso ele deixou um legado e por isso estamos conversando sobre sua obra neste momento.

A comunidade internacional reagiu de que modo às denúncias feitas por Dom Hélder, quanto às violações dos direitos humanos pelo regime militar no Brasil?

Não podemos esquecer  que as atitudes autoritárias e de intolerância do comando do IV Exército em Recife fez com que ocorresse uma ruptura entre Dom Hélder e o Regime Militar. Logo após o Golpe Militar, em março d 1964, Dom Hélder manteve um extraordinário relacionamento com os presidentes Castelo Branco e depois com Costa e Silva e vários oficiais bem graduados. A partir de 1966, a defesa que Dom Hélder fazia dos presos políticos, inclusive visitando vários na cadeia e tentando libertá-los, tornou-se inaceitável para os militares de Pernambuco. Não podendo atingir Dom Hélder diretamente, os seus inimigos atingiram um dos seus principais colaboradores, o padre Antonio Henrique, que foi assassinado em 1969. A partir daí, em suas conferências no estrangeiro, Dom Hélder passou a denunciar os abusos contra os direitos humanos praticados pelo regime ditatorial. Dom Hélder descrevia publicamente os casos de tortura que tomava conhecimento, e por isso tornou-se um forte candidato a receber o Prêmio Nobel da Paz, como grande defensor dos direitos humanos e da paz mundial.

A pesquisa documental empreendida para o livro revela que olhar do regime militar sobre Dom Hélder? Nas ações do religioso, o que era considerado particularmente perigoso aos interesses do governo?

Combinado com o fato de que Dom Hélder foi considerado adversário do Regime Militar por ter sido o grande animador do engajamento dos católicos na busca de soluções para os problemas sociais e políticos do país, que envolveu iniciativas como o Movimento de Educação de Base, a atuação importante da Juventude Universitária Católica e depois do movimento Ação Popular, o aspecto central desta questão, ao meu ver, se refere à falta de legitimidade política do Regime Militar, e o receio de que a inserção social de Dom Hélder entre as classes dominantes, seu prestígio internacional e a sua influência sobre os movimentos sociais comandados pelo laicato católico o credenciassem como uma alternativa civil para comandar um governo de transição para a democracia, colocando fim ao comando militar do Estado brasileiro. Daí a necessidade de neutralizar sua influência, silenciando-o e isolando-o politicamente dos movimentos sociais, muitos dos quais colocados na ilegalidade e sofrendo forte perseguição política.

O livro também revela informações inéditas sobre as relações entre Igreja e governo, ao longo da ditadura militar. Poderia fazer um resumo dessas revelações? Comenta-se uma ingerência dos militares para evitar que o religioso fosse laureado com o Nobel da Paz. É fato? Há planos para novas edições do livro ou continuidade da pesquisa?

Como demonstramos no livro apresentando farta documentação que não foi contestada pelos setores envolvidos, a relação da instituição Igreja Católica e dos seus membros com o Regime Militar que comandava o país não pode ser simplesmente classificada como totalmente favorável ou totalmente contrária e oposicionista. A Igreja Católica não é uma instituição homogênea e fechada como podemos pensar a primeira vista. É uma instituição que possui ramificações em todos os setores das sociedades em que está presente. Atua junto às diferentes classes sociais, grupos étnicos e raciais, gêneros etc… e procura, de alguma forma, atender as demandas dos diferentes segmentos.

É também uma instituição preocupada com a sua permanência no tempo. Apoiar o Regime Militar no Brasil foi o meio utilizado pelos setores mais conservadores da hierarquia católica para que a instituição não rompesse sua relação com os poderes estabelecidos. Por outro lado, muitos leigos e sacerdotes foram severamente punidos pelo regime militar porque não adotaram o posicionamento da cúpula da instituição.

Duas décadas depois do fim do Regime Militar, avalio que esta atuação em duas frentes, se assim podemos dizer, mesmo que na época isso não tenha sido fruto de um planejamento consciente das lideranças católicas, foi uma maneira de garantir a influência católica no país, ainda mais porque muitos leigos e sacerdotes católicos militavam em favor dos direitos humanos, denunciavam as torturas praticadas pelo regime e eram favoráveis a uma maior distribuição da riqueza.

Porém, sem os hierarcas conservadores, ou seja, apenas com os membros politicamente oposicionistas, a Igreja ficaria sem interlocutores na relação com o Estado. Recordemos que durante o período anterior, 1945-1964, os governos populistas dialogavam mais com o chamado clero progressista liderado por Dom Hélder Câmara e pela CNBB. O setor da Igreja que se relacionava melhor com os grandes empresários e com os políticos mais conservadores estava melhor posicionados para negociar a influência da Igreja católica no país. Mas a Igreja como um todo também era formada pelos setores participativos que estavam presentes no Movimento de Educação de Base e que depois formariam as Comunidades Eclesiais de Base.

Na pesquisa para a elaboração do livro tivemos acesso a uma documentação até então inédita que comprovou o envolvimento do governo brasileiro em gestões junto ao Comitê que atribui o Prêmio Nobel na Noruega para evitar que Dom Hélder fosse agraciado e amplificasse o prestígio alcançado o seu discurso em favor dos direitos humanos, da democracia e contra o terrorismo de Estado que era praticado no Brasil pelos militares que comandavam o governo.

Quanto à reedição do livro, estamos preparando um capítulo final ou um posfácio para sair em uma nova edição ainda sem data prevista de lançamento. Mas os entendimentos com uma nova editora estão avançados. Desde  o final de julho deste ano o livro não está mais disponível nas livrarias, nem por encomenda, por estar esgotado na editora Ática. Isso é uma pena porque, ao meu ver, o público que freqüenta as livrarias deve ter acesso à biografia de uma personalidade insubstituível e rara como Dom Hélder.

Quais as principais características pessoais de Dom Hélder que se sobressaíram nos momentos de maior tensão entre sua atuação e o governo?

Sem dúvida a firmeza dos seus princípios combinada com uma atitude totalmente aberta para o diálogo. Dom Hélder sabia sempre onde pretendia chegar com a sua voz e com o testemunho da sua vida, neste sentido ele pode ser considerado um grande estrategista político, mas ele usava a sua capacidade pessoal extraordinária para defender os posicionamentos políticos mais democráticos e socialmente generosos. Mas não podemos esquecer o seu incansável e esperançoso esforço como religioso, para reformar a Igreja de Cristo, livrando-a dos compromissos com os poderosos e aproximando-a cada vez mais das necessidades das camadas populares.

Há, hoje em dia, uma revisão na historiografia referente ao período da ditadura militar brasileira? Algum dado novo sobre a ação de religiosos como Dom Hélder?

No momento várias pesquisas estão em andamento. Mas inúmeros arquivos do Regime Militar, da Igreja Católica no Brasil e do Vaticano ainda não são acessíveis aos pesquisadores e ao público. Nos próximos anos, talvez décadas, provavelmente serão divulgadas novas informações que podem levar a novas interpretações de um período tão conturbado da história do Brasil e da Igreja Católica.

Para concluir: como o senhor avalia o trabalho de Dom Hélder pela paz e pela não-violência? O que o exemplo dele pode representar para a sociedade de hoje?

Como exemplo deixado por Dom Hélder, esta a sua capacidade de dialogar e conviver com pessoas e grupos políticos que o consideravam um adversário político. Também a sua firmeza para denunciar os desmandos das corporações de empresas multinacionais, e para propor mudanças profundas na estrutura da Igreja Católica. Ao mesmo tempo ele deixou o exemplo de sua serenidade na busca do entendimento através de uma atuação política pacífica. Hoje quando propomos o respeito às diferenças e a tolerância nas relações sociais não estamos apresentando nenhuma novidade em relação ao discurso e à prática de  Dom Hélder nas décadas de 1960 e 1970.  Ele soube preservar e nos transmitir estes valores que hoje animam os espíritos mais generosos e comprometidos com a busca de uma sociedade justa, democrática e igualitária.

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